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Hipoglicemia – F John Service Adrian Vella

Última revisão: 14/06/2013

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F. John Service, MD, PhD

Emeritus Professor of Medicine, Mayo Clinic College of Medicine, Rochester, MN

 

Adrian Vella, MD

Professor of Medicine, Mayo Clinic College of Medicine, Rochester, MN

 

 

Artigo original: Service FJ, Vella A. Hypoglycemia. ACP Medicine. 2011;1-9.

[The original English language work has been published by DECKER INTELLECTUAL PROPERTIES INC. Hamilton, Ontario, Canada. Copyright © 2011 Decker Intellectual Properties Inc. All Rights Reserved.]

Tradução: Soraya Imon de Oliveira

Revisão técnica: Dr. Euclides Furtado de Albuquerque Cavalcanti

 

 

Definição

         A hipoglicemia é uma síndrome clínica cujas causas são diversas. É caracterizada por episódios de baixa glicemia, os quais são tipicamente marcados por manifestações envolvendo o sistema nervoso central (SNC) (isto é, neuroglicopenia). As manifestações autonômicas isoladas não indicam a ocorrência de um distúrbio hipoglicêmico. As diretrizes para avaliação e tratamento de distúrbios hipoglicêmicos em adultos foram publicadas recentemente.1

 

Classificação

         Há muito tempo, os distúrbios hipoglicêmicos foram classificados como sendo de jejum ou pós-prandiais (reativos). Esta classificação carece de valor prático. O insulinoma, que constitui o arquétipo das causas de hipoglicemia de jejum, pode produzir sintomas pós-prandiais e, de fato, pode produzir manifestações somente ao nível pós-prandial.2 Já os pacientes com hipoglicemia factícia evidenciam sintomas independentemente das refeições.

         Uma abordagem mais útil em termos práticos consiste na classificação baseada nas características clínicas do paciente. Indivíduos aparentemente saudáveis apresentam distúrbios hipoglicêmicos que diferem daqueles observados em indivíduos aparentemente doentes.

 

Etiologia

Hipoglicemia em pacientes aparentemente saudáveis

         Em indivíduos aparentemente sadios, episódios isolados de hipoglicemia podem resultar da ingesta acidental de determinadas substâncias (p. ex., ingesta de etanol por crianças). Além do etanol, os salicilatos e o quinino podem baixar os níveis de glicose no sangue. O paciente adulto aparentemente saudável que possui história de episódios repetidos de neuroglicopenia geralmente sofre de um distúrbio envolvendo a produção excessiva de insulina, como um insulinoma ou hipoglicemia hiperinsulinêmica pancreatogênica não-insulinoma (HHPNI). Existem casos raros em que a hipoglicemia é factícia e tem como causa o uso clandestino ou inadvertido de agentes hipoglicêmicos (p. ex., insulina ou sulfonilureia) [ver Condições causadoras de hipoglicemia, adiante].

         A hipoglicemia pode ocorrer em pacientes com doença coexistente, mas cuja doença esteja sob controle com tratamento médico. Nestes casos, a hipoglicemia pode ser um efeito colateral da medicação que está sendo usada no tratamento da doença coexistente ou, mais tipicamente, pode ser resultado da administração errada de uma sulfonilureia no lugar do fármaco prescrito.

 

Hipoglicemia em pacientes aparentemente doentes

         A doença pode levar ao desenvolvimento de hipoglicemia por uma variedade de mecanismos, dos quais somente alguns envolvem a insulina. Nem todos os mecanismos atuantes são conhecidos. Em algumas doenças (p. ex., doença do armazenamento de glicogênio), a hipoglicemia constitui uma característica clínica. Há outras doenças, como a doença hepática em estágio avançado, insuficiência renal e sepse, que comprovadamente impõem risco de desenvolvimento de baixa glicemia [Tabela 1]. A hipoglicemia em um paciente que apresente uma ou mais destas doenças requer pouca (quando requer) investigação de sua causa. Entretanto, nem todos os pacientes que sofrem de determinada doença com propensão à geração de hipoglicemia de fato apresentam baixos níveis de glicose no sangue. Não se sabe por que somente alguns pacientes com doença desenvolvem hipoglicemia.

 

Tabela 1. Classificação clínica dos distúrbios hipoglicêmicos

Paciente aparentemente saudável

Sem doença coexistente

Fármacos

Etanol

Salicilatos

Quinina

Haloperidol

Insulinoma

Nesidioblastose/hipertrofia de ilhotas

HHPI

HHPNI

Hipoglicemia pós cirurgia bariátrica

Hipoglicemia factícia associada à insulina ou sulfonilureia

Exercício vigoroso

Hipoglicemia cetótica

Doença coexistente compensada

Fármacos

Administração por engano

Disopiramida

Agente bloqueador beta-adrenérgico

Fármacos contendo tiol ou sulfidrila aliados à insulina autoimune

Fruta akee ainda não madura e subnutrição

Paciente aparentemente doente

Fármacos

Pentamidina e pneumonia por Pneumocystis

Sulfametoxazol e trimetoprima e insuficiência renal

Propoxifeno e insuficiência renal

Quinino e malária cerebral

Quinino e malária

Salicilatos tópicos e insuficiência renal

Doença predisponente

Bebê pequeno para a idade gestacional

Síndrome de Beckwith-Wiedemann

Eritroblastose fetal

Bebê de mãe diabética

Doença do armazenamento de glicogênio

Defeitos do metabolismo de aminoácidos e ácidos graxos

Síndrome de Reye

Doença cardíaca congênita cianótica

Hipopituitarismo

Deficiência isolada de hormônio do crescimento

Deficiência de hormônio adrenocorticotrófico

Doença de Addison

Intolerância à frutose hereditária

Deficiência de carnitina

Transportador de glicose de tipo-1 defeituoso no cérebro

Doença hepática severa adquirida

Tumor de células beta

Sepse

Insuficiência renal

Insuficiência cardíaca congestiva

Acidose láctica

Inanição

Anorexia nervosa

Remoção pós-operatória de feocromocitoma

Hipoglicemia associada ao anticorpo antirreceptor de insulina

Paciente internado

Doenças predisponentes à hipoglicemia

Nutrição parenteral total e terapia com insulina

Interferência da colestiramina na absorção de glicocorticoide

Choque

HHPI = Hipoglicemia hiperinsulinêmica persistente da infância; HHPNI = hipoglicemia hiperinsulinêmica pancreatogênica não-insulinoma.

 

         Os pacientes internados apresentam maior risco de hipoglicemia, muitas vezes em decorrência de fatores iatrogênicos. Para qualquer paciente com hipoglicemia, a medicação deve ser considerada uma causa em potencial.

         Níveis baixos de glicose no sangue podem ser encontrados nos exames laboratoriais de pacientes doentes que não apresentam sintomas de hipoglicemia. Em pacientes com leucemia ou hemólise severa, a hipoglicemia pode ser um artefato resultante do consumo de glicose no sangue contido no tubo de coleta, por ação de numerosos leucócitos ou hemácias nucleadas, respectivamente.5

 

Diagnóstico

         Embora o diagnóstico de hipoglicemia seja mais bem estabelecido pela determinação da glicemia durante a manifestação dos sintomas espontâneos, esta medida frequentemente é inviável. O médico deve obter uma história detalhada, a fim de determinar a extensão da avaliação. Esta história deve incluir uma descrição completa dos sintomas do paciente e das circunstâncias em que tais sintomas se manifestam.

         Uma história de medicações também constitui um aspecto importante da avaliação de um paciente que apresente manifestações clínicas de hipoglicemia, especialmente se o aparecimento destas manifestações coincidir com a adição de uma nova prescrição. Devido ao potencial de erro farmacológico, a identidade de todos os medicamentos tomados pelo paciente deve ser confirmada por um profissional, como um médico ou farmacêutico.

 

Manifestações clínicas

         Os sintomas de hipoglicemia foram classificados em 2 grupos principais: autonômico e neuroglicopênico. Em um estudo sobre hipoglicemia experimental em indivíduos diabéticos e não diabéticos, uma análise de componentes principais atribuiu sudorese, tremor, sensações de calor, ansiedade e náusea ao grupo autonômico, bem como tontura, confusão, cansaço, dificuldade para falar, cefaleia e incapacidade de concentração ao grupo neuroglicopênico. Fome, visão turva, sonolência e fraqueza não puderam ser atribuídos com segurança a nenhum dos grupos.6 Em uma análise retrospectiva de 60 pacientes com insulinomas, foi observado que 85% dos indivíduos apresentavam diversas combinações de diplopia, visão turva, sudorese, palpitações e enfraquecimento; 80% dos pacientes apresentavam confusão ou comportamento anormal; 53% haviam desenvolvido amnésia ou entrado em coma durante o episódio; e 12% dos pacientes desenvolveram convulsões generalizadas.7

         Os sintomas de hipoglicemia diferem entre as pessoas, mas continuam sendo consistentes a cada episódio em um mesmo indivíduo.8,9 Não existe uma ordem cronológica consistente para a evolução dos sintomas. Os sintomas autonômicos nem sempre precedem os sintomas neuroglicopênicos. Em muitos pacientes, os sintomas neuroglicopênicos são os únicos observados.9 Pacientes com sintomas autonômicos isolados dificilmente tem distúrbios hipoglicêmicos. Um fator adicional que influencia a geração dos sintomas na hipoglicemia consiste no embotamento destes pela ocorrência de episódios hipoglicêmicos anteriores.

 

Exame físico

         Em pacientes aparentemente saudáveis, com ou sem doença compensada coexistente, o exame físico resulta normal ou revela apenas a existência de anormalidades mínimas que provavelmente não são pertinentes ao distúrbio hipoglicêmico subjacente. Em casos de pacientes com suspeita de hipoglicemia factícia decorrente da injeção de insulina, uma ação frutífera consiste na procura de sítios de perfuração de punção feitos com agulha. Em casos de pacientes doentes que apresentam um distúrbio primário capaz de causar hipoglicemia, os resultados do exame físico refletirão a doença. Quando um paciente é observado durante a hipoglicemia, os achados podem incluir diaforese, pressão de pulso aumentada e anormalidades neurológicas que variam de uma atividade mental retardada ou suspensão da comunicação espontânea ao desenvolvimento de uma confusão mais evidente, comportamento errático, coma, convulsão e hipotermia.

 

Exames laboratoriais

Níveis séricos de glicose

         Estudos sobre hipoglicemia induzida por insulina aguda em indivíduos sadios mostraram que o limiar para o desenvolvimento de sintomas é uma concentração sérica de glicose em torno de 60 mg/dL, enquanto o limiar para que a função cerebral seja comprometida é de aproximadamente 50 mg/dL.10,11 Estas medidas foram realizadas no sangue venoso arterializado (isto é, sangue extraído da veia de uma mão aquecida [a aplicação de calor desvia o sangue arterial para dentro do sistema venoso]). É provável que os níveis comparáveis no sangue venoso seriam cerca de 3 mg/dL mais baixos. A velocidade de diminuição dos níveis séricos de glicose não influencia a manifestação dos sinais e sintomas de hipoglicemia.

         Como os sintomas de hipoglicemia são inespecíficos, é necessário verificar suas origens. Para tanto, adota-se um conjunto de critérios que foram propostos pela 1ª vez por Whipple, em 1938. A tríade de Whipple abrange: 1) sintomas espontâneos consistentes com hipoglicemia; 2) um baixa concentração sérica de glicose no momento da manifestação dos sintomas; e 3) o alívio dos sintomas por meio da normalização dos níveis de glicose.12

         Uma concentração sérica de glicose normal, determinada de maneira confiável durante a manifestação dos sintomas espontâneos, elimina a possibilidade de haver um distúrbio hipoglicêmico. As medidas de glicose capilar realizadas pelos próprios pacientes com auxílio de um medidor de glicemia durante a manifestação dos sintomas espontâneos frequentemente não são confiáveis, porque os pacientes não diabéticos em geral são inexperientes em executar esta técnica e também porque as medidas são obtidas sob circunstâncias adversas. Os pacientes com baixos níveis séricos de glicose confirmados (< 50 mg/dL) ou que possuem história de sintomas neuroglicopênicos devem ser submetidos a exames adicionais. A melhor maneira de fazer isto é durante o jejum prolongado, caso os sintomas surjam na condição de deprivação alimentar, ou após uma refeição mista, quando os sintomas são pós-prandiais.

 

O jejum prolongado (72 horas)

         O jejum prolongado (72 horas) é o exame diagnóstico clássico para a condição de hipoglicemia associada ao jejum. Este procedimento deve ser conduzido de forma padronizada [Tabela 2]. O jejum pode ser realizado com o objetivo de revelar a tríade de Whipple e, assim, estabelecer que a hipoglicemia constitui a base dos sintomas apresentados pelo paciente. Se a tríade de Whipple já tiver sido documentada, o jejum pode ser conduzido com o propósito de determinar o mecanismo da hipoglicemia por meio da quantificação dos polipeptídeos de células beta e da medição dos níveis de sulfonilureia. Neste último caso, o jejum pode ser terminado quando os níveis séricos de glicose caírem para 55 mg/dL ou menos (ou, melhor ainda, = 50 mg/dL), que corresponde à concentração em que os polipeptídeos da célula beta devem estar suprimidos. Nem todos os pacientes precisam de 72 horas para alcançar os propósitos do jejum. Em um estudo envolvendo 170 pacientes com insulinomas cirurgicamente comprovados, o jejum foi suspendido nas primeiras 12 horas em 33% dos pacientes; nas primeiras 24 horas em 65% dos pacientes; dentro de 36 horas em 84% dos pacientes; dentro de 48 horas em 93% dos casos; e dentro de 72 horas em 99% dos pacientes.13 A suspensão do jejum em 48 horas, se a hipoglicemia ainda não tiver se desenvolvido, implica no risco de erro diagnóstico.

 

Tabela 2. Protocolo para jejum prolongado tratado

1.    Anotar a data do início do jejum, assim como a última ingesta de calorias. Suspender o uso de todos as medicações não essenciais

2.    Permitir que o paciente consuma bebidas sem calorias e sem cafeína

3.    Garantir que o paciente permaneça ativo durante as horas em que estiver acordado

4.    Medir os níveis plasmáticos de glicose, insulina, peptídeo C, pró-insulina e beta-hidroxibutirato em uma mesma amostra. Repetir as medidas a cada 6 horas, até os níveis plasmáticos de glicose caírem para menos de 60 mg/dL. Então, repetir as medidas a cada 1 a 2 horas

5.    Quando a concentração de glicose no plasma estiver abaixo de 45 mg/dL e o paciente apresentar sinais ou sintomas de hipoglicemia, deve-se determinar os níveis plasmáticos de glicose, insulina, peptídeo C, pró-insulina, beta-hidroxibutirato e sulfonilureia em uma mesma amostra. Em seguida, inocular 1 mg de glucagon por via endovenosa e determinar os níveis plasmáticos de glicose após 10, 20 e 30 minutos

6.    Alimentar o paciente

 

         Iniciar o jejum de um dia para outro permite que 40% dos pacientes (incluindo aqueles com insulinoma e outras causas de hipoglicemia) concluam o jejum na unidade de exames endócrinos ambulatorial. Os pacientes cujo jejum não é concluído ao final de um dia útil são internados no hospital para a conclusão do exame.

         A decisão de terminar o jejum pode não ser uma tarefa fácil, quando a tríade de Whipple é estabelecida como meta. Devido aos atrasos na disponibilização das medidas de glicose, o medidor de glicose de cabeceira talvez tenha que servir de guia. Alguns pacientes apresentam níveis glicêmicos discretamente deprimidos, sem sinais nem sintomas de hipoglicemia. Em outros pacientes, o jejum evoca sintomas que se manifestam no dia a dia, porém seus níveis séricos de glicose estão fora da faixa hipoglicêmica. Nestes casos, os sintomas não podem ser atribuídos à hipoglicemia. Para complicar a situação, mulheres jovens, magras e saudáveis – e, em menor grau, alguns homens – podem apresentar concentrações séricas de glicose na faixa de 40 mg/dL ou até menos durante o jejum prolongado.14 O exame atento e a realização de testes para detecção de sinais ou sintomas sutis de hipoglicemia devem, portanto, ser conduzidos repetidas vezes quando os níveis séricos de glicose do paciente estiverem próximos ou dentro da faixa hipoglicêmica. O encerramento do jejum com base apenas em níveis séricos de glicose baixos, na ausência de sinais ou sintomas de hipoglicemia, pode pôr em risco o diagnóstico correto. Contudo, a falha em avaliar as manifestações de neuroglicopenia e, assim, concluir que os resultados do jejum são negativos são erros igualmente notórios. É essencial monitorar os pacientes de perto durante o jejum e permanecer vigilante quanto ao aparecimento de sinais sutis de neuroglicopenia. Uma elevação progressiva dos níveis de beta-hidroxibutirato durante o jejum pode indicar um resultado negativo e evitar que o jejum se estenda por 72 horas.15

 

Polipeptídeos da célula beta e seus substitutos

         As concentrações de polipeptídeos das células beta (isto é, insulina, peptídeo C e pró-insulina) são interpretadas no contexto da concentração sérica de glicose concomitante. As faixas normais de polipeptídeos no jejum de um dia para outro não são válidas quando os níveis séricos de glicose estão baixos. Com o uso de ensaios altamente sensíveis, os critérios para hiperinsulinemia são os seguintes: insulina sérica = 3 mcU/mL; peptídeo C = 200 pmol/L; e pró-insulina = 5 pmol/L [Figura 1].16

 

 

Figura 1. Durante as 72 horas de jejum, os níveis séricos de glicose são comparados com os níveis séricos de insulina (a), peptídeo C (b), pró-insulina (c) e beta-hidroxibutirato (d). Ao final do jejum, 1 mg de glucagon é injetada por via endovenosa, e o efeito sobre os níveis de glicose é quantificado (e). Em indivíduos normais, os níveis de glicose podem cair para a faixa hipoglicêmica e, por este motivo, é necessário documentar detalhadamente os sintomas de hipoglicemia.

 

         As concentrações de insulina raramente excedem 100 mcL/mL em pacientes com insulinomas. Valores acima desta concentração sugerem a administração recente de insulina ou a presença de anticorpos anti-insulina.

         As proporções glicose:insulina, e vice-versa, não têm utilidade diagnóstica [Figura 1]. A proporção molar insulina:peptídeo C é a mesma para pacientes com insulinomas e indivíduos sadios (em torno de 0,2). A proporção molar pró-insulina:insulina parece ser maior em indivíduos com insulinoma, mas tem pouca utilidade diagnóstica.

         Como a insulina exerce efeito anticeratogênico, os níveis séricos de corpos cetônicos de beta-hidroxibutirato podem ser usados como substituto da quantificação de insulina. Os níveis séricos de beta-hidroxibutirato são baixos (= 2,7 mmol/L) em pacientes com hipoglicemia insulina-mediada, porém são mais altos em indivíduos normais e naqueles com hipoglicemia não insulina-mediada [Figura 1].3

         Ao final do jejum, o paciente recebe uma dose endovenosa de 1 mg de glucagon, e a resposta de glicose subsequente é medida. Como a insulina é glicogênica e antiglicogenolítica, a injeção de glucagon resulta em um aumento = 25 mg/dL dos níveis séricos de glicose nos pacientes com hipoglicemia insulino-mediada. Em indivíduos normais ou naqueles com hipoglicemia não insulina-mediada, contudo, a hipoglicemia sofre aumentos menores [Figura 1].16 Uma exuberante resposta de insulina sérica ao glucagon endovenoso é considerada indicação da existência de insulinomas, no entanto nenhum dado normativo foi criado para este teste. A quantificação dos polipeptídeos de células beta e dos substitutos de insulina (beta-hidroxibutirato e resposta de glicose ao glucagon endovenoso) possui utilidade diagnóstica somente quando os níveis séricos de glicose são = 60 mg/dL.

 

Sulfonilureias

         Indivíduos com hipoglicemia decorrente do uso inadequado de sulfonilureias ou meglitinidas (p. ex., repaglinida) apresentam concentrações de polipeptídeos de células beta idênticas àquelas observadas em indivíduos com insulinoma. Consequentemente, os ensaios com plasma para detecção destes fármacos constituem um aspecto essencial da avaliação. Nós usamos um método altamente sensível e acurado de cromatografia e espectroscopia de massa em tandem para identificar essas substâncias. Um resultado de ensaio positivo sugere o uso clandestino ou inadvertido.

 

Anticorpos anti-insulina

         Um ensaio para detecção de anticorpos anti-insulina deve ser realizado para cada paciente que apresente evidências nítidas de hipoglicemia. A detecção destes anticorpos em um paciente não diabético já foi considerada uma evidência sólida de hipoglicemia factícia associada à insulina, especialmente quando a insulina animal era o único tipo de insulina comercializada. No presente, a maioria dos pacientes com hipoglicemia factícia não apresenta anticorpos anti-insulina detectáveis, possivelmente devido ao uso da insulina humana, que é menos antigênica do que a insulina bovina ou suína. Mais propriamente, a presença de anticorpos anti-insulina, sobretudo em títulos altos, é diagnóstica de hipoglicemia auto-imune causada por anticorpos anti-insulina (ver adiante).16 Títulos muito baixos de anticorpos anti-insulina podem às vezes ser detectados em indivíduos sem hipoglicemia17 e, em raros casos, em pacientes com insulinomas.

 

Hemoglobina glicada

         A medida da concentração de hemoglobina glicada não representa um aspecto padrão da avaliação clínica da hipoglicemia. As concentrações de hemoglobina glicada são estatística e significativamente mais baixas em pacientes com insulinomas do que nos indivíduos normais. Contudo, a sobreposição excessiva existente entre ambos os grupos impede que este teste seja considerado um critério diagnóstico.

 

Teste de tolerância à glicose oral

         O teste de tolerância oral não deve ser usado para avaliação da hipoglicemia, pois está significativamente associado ao risco de erro diagnóstico. Ao menos 10% dos indivíduos saudáveis apresentam nadir de glicose sérica abaixo de 50 mg/dL, sendo que os resultados dos testes não apresentam correlação com as respostas de glicose sérica a uma refeição mista (isto é, uma refeição com conteúdo equilibrado de proteínas, carboidratos e gorduras).

 

Teste da refeição mista

         O teste de refeição mista pode ser conduzido em casos de pacientes com história de sintomas neuroglicopênicos, decorridas 5 horas da ingesta. O teste é considerado positivo se o paciente apresentar sintomas neuroglicopênicos quando a medida dos níveis séricos de glicose concomitantes for = 50 mg/dL. Um teste de refeição mista não fornece o diagnóstico, mas confirmação bioquímica da história.

 

Teste de supressão do peptídeo C

         O peptídeo C é formado durante a conversão da pró-insulina em insulina pelas células beta pancreáticas. No teste de supressão do peptídeo C, o paciente jejua de um dia para outro e, então, recebe uma infusão endovenosa de insulina no decorrer de 1 hora. Os níveis séricos de glicose e peptídeo C são medidos durante a infusão. Em pacientes normais, a hipoglicemia produzida pela insulina exógena resulta na supressão da produção de peptídeo C. Os pacientes com insulinomas apresentam níveis mais altos de peptídeo C. Diante de uma probabilidade de distúrbio hipoglicêmico que não seja alta, um resultado normal no teste de supressão do peptídeo C pode evitar a necessidade de jejum por 72 horas. A interpretação do resultado do teste de supressão do peptídeo C exige dados normativos devidamente ajustados conforme o índice de massa corporal e a idade do paciente.9 Este teste atualmente não é usado com frequência.

 

Teste da tolbutamida endovenosa

         No passado, a resposta de glicose sérica a uma injeção endovenosa de tolbutamida era empregada no diagnóstico de insulinomas. Este teste é potencialmente perigoso e menos acurado do que os outros testes para detecção de insulinoma disponíveis. Por este motivo, o teste da tolbutamida endovenosa passou a ser raramente utilizado nos últimos anos.

 

Condições causadoras de hipoglicemia

         As causas de hipoglicemia em adultos aparentemente sadios incluem as seguintes condições: insulinoma, hipoglicemia factícia decorrente de insulina ou sulfonilureia, HHPNI e hipoglicemia autoimune.

 

Insulinoma

Epidemiologia

         Entre os anos de 1927 e 1986, 224 pacientes hipoglicêmicos foram submetidos a uma primeira exploração pancreática na Mayo Clinic e descobriram que tinham insulinoma. Devido ao número relativamente alto de casos de insulinoma tratados na Mayo Clinic, em comparação ao observado nos demais centros médicos, e graças ao abrangente banco de dados epidemiológicos mantido pela Mayo Clinic para Olmsted County, Minnesota (Estados Unidos), foi possível determinar a incidência do insulinoma com base na população, bem como o risco de recorrência e a sobrevida dos pacientes com insulinoma.18

         A média da idade dos pacientes com insulinoma atendidos na Mayo Clinic era de 47 anos, com uma faixa de 9 a 82 anos, sendo que 52% dos pacientes eram do sexo feminino. Olmsted County apresentava uma incidência de 4 casos para cada 1 milhão de indivíduos ao anos. Entre os 224 pacientes, 7,6% tinham neoplasia endócrina múltipla de tipo I (MEN I) e 5,8% tinham insulinoma maligno. O risco de recorrência era maior entre os pacientes com MEN I (21%) do que entre aqueles sem esta condição (7%). Ao longo de um período de 45 anos, a sobrevida média geral da coorte total era similar à sobrevida esperada (78% vs. 81%).

         Os insulinomas têm sido encontrados em indivíduos de todas as raças, em pacientes gestantes e em indivíduos com diabetes melito de tipo 2. Um caso de insulinoma no diabetes de tipo 1 também foi relatado.19

 

Diagnóstico

         Exames laboratoriais. O insulinoma é caracterizado por uma hipoglicemia decorrente de níveis elevados de insulina endógena. A confirmação do diagnóstico requer a exclusão da hipótese de hipoglicemia associada a fontes exógenas.

 

         Localização. Uma vez estabelecido o diagnóstico bioquímico de insulinoma, a próxima etapa consiste em sua localização. O sucesso alcançado com o uso de várias modalidades reflete a habilidade e a experiência locais. Um índice significativo de sucesso tem sido alcançado com o uso da ultrassonografia transabdominal e da tomografia computadorizada (TC) em espiral de fase tripla. A tomografia por emissão de pósitrons também pode ser uma modalidade útil.20 A imagem de ressonância magnética e a cintilografia com índio-111 (In-111)-pentetreotida (OctreoScan) não se mostraram úteis. A amostragem venosa portal trans-hepática percutânea foi abandonada até mesmo por seus primeiros proponentes.

         Em pacientes cujo tumor não pode ser encontrado por ultrassonografia nem TC, a etapa seguinte é a ultrassonografia endoscópica. Quando todas as outras modalidades falham, o clínico pode considerar o teste de estimulação com cálcio arterial seletivo, que proporciona uma forma de regionalizar e confirmar a hiperinsulinemia endógena. Este teste envolve a aplicação serial de injeções de cálcio dentro das artérias esplênica, gastroduodenal e mesentérica superior. A subsequente duplicação da concentração sérica de insulina junto à veia hepática direita indica o hiperfuncionamento das células beta na parte do pâncreas suprida pela artéria em questão.21

         Existe um consenso geral de que a melhor localização dos insulinomas é alcançada com o uso da ultrassonografia intraoperatória e com a mobilização e apalpação cuidadosa do pâncreas por um cirurgião que tenha experiência em cirurgia de insulinoma. Esta abordagem está associada a um índice de sucesso de 98% na identificação do insulinoma. Após a localização, estes pacientes seguem diretamente para a etapa da remoção cirúrgica.

 

Tratamento

         O tratamento de escolha para os insulinomas é a remoção cirúrgica. Dependendo da lesão, a cirurgia requerida pode variar da enucleação do insulinoma até a pancreatectomia subtotal. É aconselhável realizar a cirurgia em uma instituição que disponha de recursos especializados para o tratamento dos insulinomas.

         A terapia médica é menos efetiva do que a ressecção tumoral, porém a primeira pode ser usada em casos de pacientes que não sejam candidatos à cirurgia, que recusem a cirurgia ou cuja cirurgia resulte em insucesso. A medicação mais efetiva para o controle da hipoglicemia sintomática apresentada por estes pacientes é o diazóxido, que diminui a secreção de insulina. O diazóxido é administrado em doses divididas de até 1.200 mg/dia. Os efeitos colaterais incluem edema (que pode requerer altas doses de diuréticos de alça) e o hirsutismo. Outras medicações que podem ser usadas no tratamento do insulinoma são o verapamil, fenitoína e octreotide.

 

Hipoglicemia factícia

         O termo “factício” tem sido usado na terminologia médica para implicar as atividades secretas dos pacientes. A consideração desta possibilidade muitas vezes altera a relação paciente-médico, fazendo que o médico se sinta enganado, e o paciente, desconfiado. Entretanto, a conotação pejorativa que tem sobrecarregado as doenças factícias precisa ser suavizada, pois alguns pacientes com este tipo de doença padecem sem ter propriamente culpa.

 

Epidemiologia

         A hipoglicemia factícia é mais comum em mulheres e mais frequente durante a 3ª ou 4ª décadas da vida. Muitos destes pacientes possuem ocupações relacionadas à área da saúde.

         Em pacientes diabéticos, a hipoglicemia factícia é provavelmente mais comum do que a incidência descrita nas publicações.22 Nestes casos, a confirmação do diagnóstico pode ser bastante difícil. Quando são deprivados do acesso aos agentes hipoglicêmicos, os pacientes diabéticos tornam-se hiperglicêmicos.

 

Etiologia

         A hipoglicemia factícia resulta do uso de insulina ou de fármacos que estimulam a secreção de insulina (isto é, sulfonilureias ou meglitinidas). A forma mais comum de hipoglicemia factícia consiste na autoadministração escondida de um agente hipoglicêmico ou de insulina por um paciente sem diabetes, ou, ainda, na manipulação inadequada de fármacos hipoglicêmicos ou de insulina por um paciente diabético. Menos frequentemente, os pais podem administrar um agente hipoglicêmico em um paciente pediátrico, e isto constitui uma forma de abuso infantil.23 Em todos os casos relatados, o suposto perpetrador era a mãe do paciente, que tinha acesso imediato à insulina. A insulina também tem sido usada em tentativas de suicídio ou homicídio.24

         Há um número crescente de pacientes que, ao tomarem uma medicação prescrita usando de boa fé, incorrem na hipoglicemia por terem ingerido sulfonilureia por engano.25 Na maioria dos casos, a confusão na hora de administrar o fármaco decorre da similaridade entre a pronúncia do nome da medicação pretendida e a pronúncia da sulfoniluréia em questão. Tais erros podem ser identificados pela simples checagem do rótulo fixado no frasco da medicação. Contudo, há alguns casos em que o erro de administração do fármaco pode resultar de negligência e os conteúdos dos frascos dos medicamentos não correspondem aos respectivos rótulos. Ocasionalmente, há relatos de casos em que um indivíduo não diabético toma por engano a medicação hipoglicêmica que pertence a outro membro da família.

 

Diagnóstico

         A possibilidade de hipoglicemia factícia deve ser considerada em todos os casos de pacientes submetidos a uma avaliação para detecção de distúrbio hipoglicêmico, em especial quando a hipoglicemia está associada a uma ocorrência caótica – ou seja, quando não está relacionada às refeições nem ao jejum. Todos os medicamentos devem ser identificados. A assistência de um farmacêutico é desejável, dada a possibilidade de erro de administração. A prática de vasculhar os pertences pessoais e marcar a insulina com uma substância rastreável que possa ser detectada no sangue ou na urina é provavelmente inaceitável no atual contexto dos direitos do paciente.

         O diagnóstico de hipoglicemia factícia geralmente pode ser estabelecido por meio da quantificação dos níveis séricos de insulina, sulfonilureia e peptídeo C quando o paciente está hipoglicêmico. Se um episódio espontâneo de hipoglicemia não for observado, o paciente deve iniciar um jejum de 72 horas. Os resultados do teste de jejum podem ser negativos, todavia, caso o paciente não tome o agente agressor.

         Em um paciente cuja hiperglicemia resulte do uso clandestino de agente hipoglicêmico, este agente estará presente no sangue. Um método sensível, como a cromatografia líquida acoplada à espectroscopia de massa, deve ser usado para detectar as sulfonilureias e meglitinidas.

         Na hipoglicemia factícia induzida por insulina, os níveis séricos de insulina estão altos, e os níveis de peptídeo C estão suprimidos, geralmente próximo do limite de detecção inferior. Esta observação é valida tanto para pacientes não diabéticos como para aqueles com diabetes de tipo 2. Os pacientes com diabetes de tipo 1 caracteristicamente apresentam uma severa deficiência de insulina e concentrações séricas baixas ou indetectáveis de peptídeo C. Embora os valores de peptídeo C destes pacientes não possam ser ainda mais suprimidos, a confirmação de que os valores estão baixos durante o episódio hipoglicêmico elimina qualquer hipótese de hiperinsulismo endógeno.

 

Tratamento

         O tratamento da hipoglicemia factícia é simples: basta o paciente parar de tomar a medicação agressora. Quando a medicação é tomada por engano, a dificuldade envolvida está na identificação do fármaco. No caso do uso clandestino deliberado, recomenda-se o encaminhamento a um psiquiatra.

 

Hipoglicemia hiperinsulinêmica pancreatogênica não insulinoma (HHPNI)

         A HHPNI é uma síndrome recém-identificada, que possui aspectos clínicos, diagnósticos, radiológicos, cirúrgicos e histológicos exclusivos.26 O caso típico envolve um pacientes adulto sem insulinoma, mas que sofre de hipoglicemia resultante da hipersecreção pós-prandial de insulina pelas células beta pancreáticas.

 

Epidemiologia

         Assim como o insulinoma, a HHPNI afeta pacientes de uma ampla faixa etária – 16 a 78 anos de idade, em um dos estudos26 – e causa neuroglicopenia severa, com perda da consciência e, em alguns casos, convulsões generalizadas. Diferente do insulinoma, a HHPNI ocorre de modo predominante em homens (70%).27 Esta condição é encontrada em nosso centro médico terciário a uma taxa equivalente a 20% da taxa de incidência dos insulinomas.

 

Patofisiologia e patogênese

         A análise histológica do tecido pancreático oriundo de pacientes com HHPNI revela o brotamento de células para fora dos ductos, que é mais bem visualizado com o uso da coloração imuno-histoquímica para cromogranina A e insulina. A hipertrofia das células das ilhotas também é evidente. Nenhum tumor grosseiro nem microscópico foi identificado em cortes corados por hematoxilina-eosina, em nenhum dos casos de HHPNI.

         Ainda é discutível se a hipertrofia das ilhotas, a nesidioblastose ou ambas as condições são patogênicas nestes pacientes. Isto também ocorre na hipoglicemia hiperinsulinêmica persistente da infância (HHPI). Entretanto, um papel para alguma forma de disfunção difusa das células das ilhotas parece estar bem estabelecido nestes casos. Seja qual for o processo patológico, este é não focal, ainda que não necessariamente envolva todo o pâncreas de maneira uniforme.

         Os achados histológicos encontrados na HHPNI são semelhantes àqueles observados na HHPI. Embora as formas familiares de HHPI possam estar associadas a mutações nos genes Kir6.2 e SUR1, a análise destes genes em pacientes com HHPNI não demonstrou a ocorrência destas mutações.28 Todavia, estes pacientes podem ter mutações comuns – ainda não especificadas – em outro locus.

 

Diagnóstico

         Manifestações clínicas. Os sintomas de HHPNI ocorrem primariamente durante o estado pós-prandial, decorridas 2 a 4 horas da refeição.

 

         Exames laboratoriais. Os pacientes com HHPNI apresentam baixos níveis séricos de glicose e níveis séricos elevados de insulina durante o período pós-prandial. Devido à meia-vida curta da insulina, os critérios determinantes de hiperinsulinemia adotados para o estado de jejum parecem ser aplicáveis ao estado pós-prandial, contanto que os baixos níveis de glicose persistam por mais de 30 minutos contados a partir do pico dos níveis de insulina pós-prandial. Os jejuns de 72 horas supervisionados resultaram normais para pacientes com HHPNI. Contudo, um resultado negativo de jejum de 72 horas raramente ocorre em casos de pacientes com insulinoma.

         O teste de estimulação com cálcio arterial seletivo tem resultado positivo em casos de pacientes com HHPNI.29,30 Todos os exames de localização radiológica realizados em pacientes com HHPNI (isto é, ultrassonografia transabdominal, TC de fase tripla, angiografia de eixo celíaco e ultrassonografia intraoperatória) têm resultado negativo para insulinoma.

 

Tratamento

         A pancreatectomia parcial orientada por gradiente tem sido efetiva para aliviar os sintomas apresentados por pacientes com HHPNI. O pâncreas sofre uma excisão à esquerda da veia mesentérica superior, quando os resultados do teste de estimulação com cálcio arterial seletivo são positivos apenas para a artéria esplênica. O pâncreas é seccionado à direita da veia mesentérica superior, quando o teste resulta positivo para outra artéria adicional. Felizmente, desbridamento do pâncreas pode melhorar os sintomas de HHPNI até mesmo em pacientes cuja doença aparentemente tenha envolvido todo o pâncreas. Em ratos, o mecanismo para este efeito pode estar relacionado à secreção diminuída de insulina (atribuída aos níveis reduzidos do cotransportador de glicose GLUT2) pelo pâncreas remanescente após uma pancreatectomia parcial.31 Contudo, alguns poucos pacientes com HHPNI apresentaram hipoglicemia recidivante passados alguns anos livres de sintomas.

 

Hipoglicemia autoimune causada por anticorpos anti-insulina

Epidemiologia

         A hipoglicemia autoimune é um distúrbio raríssimo, que é observado principalmente (embora não forma exclusiva) em indivíduos de etnias japonesa e coreana. O distúrbio pode ocorrer em qualquer idade. A hipoglicemia autoimune tende a ser autolimitada em asiáticos, mas pode ser persistente em brancos. Não há predileção por gênero. Muitos pacientes apresentam um distúrbio autoimune em curso ou uma história de tratamento com fármaco contendo sulfidrila (p. ex., medicação antitireoide). Até agora, nenhum paciente apresentou história de exposição à insulina.17

 

Patogênese

         A hipoglicemia autoimune é caracterizada pela presença de autoanticorpos dirigidos contra a insulina ou o receptor da insulina. Especula-se que, nestes pacientes, a ingesta da refeição pode resultar no desligamento da insulina destes anticorpos. Entretanto, as quantificações de insulina total e de insulina livre demonstraram a ausência de alterações pós-prandiais em suas concentrações relativas. O mecanismo da geração dos anticorpos anti-insulina é desconhecido, mas talvez envolva uma imunogenicidade intensificada resultante de um efeito das ligações dissulfeto existentes em fármacos dotados de um componente sulfidrila.

 

Diagnóstico

         Manifestações clínicas. Os pacientes com hipoglicemia autoimune tipicamente desenvolvem uma hipoglicemia pós-prandial que resulta neuroglicopenia. A severidade sintomática da hipoglicemia autoimune parece ser amplamente variável. Indivíduos brancos podem tornar-se mais seriamente debilitados do que os asiáticos.

 

         Exames laboratoriais. Os níveis séricos de insulina encontram-se acentuadamente elevados na hipoglicemia autoimune, porque os anticorpos anti-insulina interferem neste ensaio. Os valores podem chegar a 1.000 microU/mL. Estranhamente, os níveis de peptídeo C em geral não estão suprimidos. Os títulos de anticorpos são bastante elevados e ultrapassam os títulos detectados em pacientes diabéticos tratados com insulina. Os anticorpos podem ligar-se apenas à insulina humana ou à insulina humana, bovina e suína. Os anticorpos podem ser poli ou monoclonais e geralmente exibem características semelhantes àquelas observadas em pacientes com diabetes melito de tipo 1. É preciso notar que títulos significativamente baixos de anticorpos anti-insulina também podem ser detectados em indivíduos saudáveis não hipoglicêmicos e, às vezes, em indivíduos com insulinoma.

 

Tratamento

         O tratamento de suporte (p. ex., pequenas refeições frequentes) pode ser efetivo na hipoglicemia autoimune, sobretudo em casos brandos. Para os pacientes mais severamente afetados, uma variedade de abordagens tem sido experimentada, incluindo o uso de glicocorticoides, agentes imunossupressores, plasmaférese, octreotide e diazóxido. Contudo, todos estes tratamentos costumam falhar. O uso da pancreatectomia e da esplenectomia têm proporcionado melhoras, mas não promovem a resolução completa dos sintomas.

 

Hipoglicemia pós-desvio cirurgia bariátrica

         Pacientes submetidos ao desvio gástrico Y de Roux, seja em decorrência de uma obesidade medicamente complicada ou por outros motivos, são propensos ao desenvolvimento de hipoglicemia.32

 

Epidemiologia

         Este distúrbio parece ser mais frequente nas mulheres. Sua incidência verdadeira é desconhecida. Um estudo de coorte nacional, que utilizou diagnósticos hospitalares substitutos de hipoglicemia, estimou uma prevalência de 0,2% – 5 vezes maior do que a prevalência na população de referência.33 Em nosso centro terciário, a taxa atual de identificação é várias vezes maior do que para o insulinoma.

 

Patofisiologia

         Especula-se que a cirurgia bariátrica pode levar ao aumento da secreção de hormônios gastrintestinais que estimulam a liberação de insulina (incretinas), entre os quais o peptídeo do tipo glucagon-1 (GLP-1). Por sua vez, níveis aumentados de GLP-1 e outras incretinas podem resultar em hipertrofia de ilhotas pancreáticas32,34 [Figura 2], contudo a mediação das incretinas foi questionada.35

 

 

Figura 2. Ductos pancreáticos com células insulina-positivas associadas (nesidioblastose). Parte de uma das ilhotas hipertróficas corada para insulina é mostrada à direita (x 200, aumento original). A coloração imuno-histoquímica foi realizada empregando-se o sistema do complexo avidina-biotina e anticorpos anti-insulina.

 

Diagnóstico

         A maioria dos pacientes com hipoglicemia pós cirurgia bariátrica desenvolve hipoglicemia pós-prandial. A avaliação é similar à avaliação dos pacientes com HHPNI. Entretanto, alguns pacientes têm insulinoma preexistente, que provavelmente tenha acarretado hiperalimentação, obesidade e, por fim, conduzido à cirurgia bariátrica. Estes pacientes desenvolvem hipoglicemia durante o estado de jejum.

 

Exames laboratoriais

         Estes pacientes apresentam hipoglicemia hiperinsulinêmica endógena. Os critérios diagnósticos são os mesmos adotados para HHPNI ou insulinoma.

 

Tratamento

         Para os pacientes severamente afetados com nesidioblastose, a melhor chance de melhora é a pancreatectomia parcial orientada por gradiente. Para os pacientes com insulinoma, a pancreatectomia parcial ou a enucleação são adequadas. Em alguns casos, a mudança do estilo de vida,36 o uso de acarbose ou octreotida, ou a restauração da restrição com anel Silastic37 costumam proporcionar o controle dos sintomas. Contudo, o glucagon pode não ser útil.38

 

         Os autores não possuem relações comerciais com os fabricantes de produtos ou prestadores de serviços mencionados neste capítulo.

 

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