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Uso terapêutico de varfarina – Parte 6 manejo da anticoagulação no perioperatório

Autor:

Euclides F. de A. Cavalcanti

Médico Colaborador da Disciplina de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 17/07/2012

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Introdução

A anticoagulação com varfarina é um assunto bastante complexo e de grande importância na prática clínica. As recentes publicações das diretrizes britânicas para o uso de varfarina na anticoagulação oral (British Committee for Standards in Haematology - Guidelines on oral anticoagulation with warfarin – 4th edition1) e das diretrizes sobre anticoagulação de 2012 do American College of Chest Physicians (Antithrombotic Therapy and Prevention of Thrombosis, 9th Ed: ACCP Evidence-Based Clinical Practice Guidelines2) nos dão a oportunidade de rever este assunto e de realizar sugestões para a anticoagulação na prática clínica do dia a dia. Para os interessados no assunto, recomendamos também as revisões práticas do American Family Physician (Evidence-based Initiation of Warfarin3 e Evidence-based Adjustment of Warfarin4).

Os algoritmos de anticoagulação com varfarina estão divididos da seguinte forma:

 

Parte 1.     Indicações, INR recomendado e tempo de anticoagulação.

Parte 2.     Início da anticoagulação no ambiente hospitalar.

Parte 3.     Início da anticoagulação fora do ambiente hospitalar.

Parte 4.     Ajuste das doses de varfarina e frequência de monitoração no paciente em anticoagulação crônica.

Parte 5.     Reversão da anticoagulação e manejo de sangramentos.

Parte 6.     Manejo da anticoagulação no perioperatório.

 

Parte 6 – Manejo da anticoagulação no perioperatório

O manejo perioperatório de pacientes em uso de varfarina que serão submetidos a cirurgia eletiva é um assunto bastante complexo. Logicamente, a preocupação se baseia no maior risco de sangramento nos pacientes anticoagulados que serão submetidos aos procedimentos, assim como no maior risco de tromboembolismo durante o período sem anticoagulação. A abordagem nestes casos deve ser individualizada de acordo com o risco de trombose e de sangramento de cada paciente e, infelizmente, não há estudos bem desenhados comparando diferentes abordagens nesta situação.

As recomendações a seguir se baseiam nas novas diretrizes sobre anticoagulação do ACCP. Recomendamos enfaticamente a leitura do artigo original aos médicos que utilizarão os esquemas aqui propostos.2,5

 

Estratificação do risco de tromboembolismo e sangramento

O manejo perioperatório dos pacientes recebendo anticoagulação baseia-se primeiramente no estabelecimento do risco de tromboembolismo do risco de sangramento perioperatório. Infelizmente, não há esquemas validados para se determinar este risco, e as recomendações do consenso se baseiam em evidências indiretas e experiência clínica.

 

Tabela 1. Estratificação de risco de tromboembolismo perioperatório sugerido no consenso do ACCP.2,5

 

Valva cardíaca mecânica

Fibrilação atrial

Tromboembolismo venoso

Alto riscoa

Qualquer valva protética mitral

Escore CHADS2 de 5 ou 6

TV recente (últimos 3 meses)

Alguns modelos de prótese aórtica (caged-ball ou tilting disc)

AVC ou AIT nos últimos 3 meses

Trombofilia severa (p. ex., deficiência de proteína C, proteína S ou antitrombina; anticorpos antifosfolípides; múltiplas anormalidades)

AVC ou AIT nos últimos 6 meses

CHADS2 < 5 associado a AVC ou AIT há mais de 3 meses

 

 

Doença valvar reumática

 

Médio risco

Prótese aórtica de 2 folhetos e um ou mais dos seguintes fatores de risco: fibrilação atrial, histórico de AVC ou AIT, hipertensão, diabetes, insuficiência cardíaca ou idade > 75 anos

Escore CHADS2 de 3 ou 4

TV nos últimos 3 a 12 meses

 

 

Trombofilia não severa (p. ex., heterozigoto para fator V de Leiden ou mutação no gene da protrombina)

 

 

TV recorrente

 

 

Câncer ativo (tratado nos últimos 6 meses ou paliativo)

Baixo risco

Prótese aórtica de 2 folhetos sem fibrilação atrial ou outros fatores de risco para AVC

Escore de CHADS2 de 0 a 2 (desde que sem AVC ou AIT prévio)

TV > 12 meses sem outros fatores de risco

CHADS2: Cardiac insuficiency (insuficiência cardíaca); Hypertension (hipertensão); Age (idade) > 75 anos; Diabetes; Stroke (AVC ou AIT prévios – soma-se 2 pontos).

a Também podem ser considerados de alto risco pacientes que tiveram tromboembolismo anterior durante suspensão de anticoagulação oral e aqueles que serão submetidos a cirurgias que conferem alto risco para AVC e tromboembolismo (p. ex., troca de valva cardíaca, endarterectomia de carótida, cirurgias vasculares maiores).

 

Tabela 2. Cirurgias e procedimentos associados a um maior risco de sangramento durante a administração de antitrombóticos no perioperatório – consenso do ACCP2,5

Cirurgias e procedimentos urológicos: ressecção transuretral da próstata, ressecção da bexiga, ablação de tumor, nefrectomia, biópsia renal

Colocação de marca-passo ou cardiodesfibrilador implantável

Ressecção de pólipos colônicos grandes (1 a 2 cm)

Cirurgias e procedimentos em órgãos altamente vascularizados, como rins, fígado e baço

Cirurgia de ressecção intestinal

Grandes cirurgias com lesão tecidual extensa (cirurgias de câncer, artroplastia de quadril, cirurgia plástica reparadora)

Cirurgias cardíacas, intracranianas ou de coluna

 

Suspensão e reinício da varfarina no perioperatório

Em pacientes que serão submetidos a cirurgias ou procedimentos maiores, a interrupção da varfarina é mandatória e o consenso do ACCP recomenda que a varfarina seja suspensa 5 dias antes da cirurgia, o que levará a uma queda do INR para níveis < 1,5 (considerados seguros para que não haja um maior risco de sangramento) em 93% dos pacientes segundo um estudo realizado com 224 pacientes.6 O consenso não realiza recomendações claras quanto a monitoração do INR, mas cita que o INR pode ser dosado no dia anterior à cirurgia, e corrigido com 1 mg de vitamina K por via oral para aqueles que tiverem um INR entre 1,5 e 1,9.

A reintrodução da varfarina 12 a 24 horas após uma cirurgia em que a hemostasia está adequada é segura para a maior parte das cirurgias. O tempo médio para que o INR retorne ao nível terapêutico > ou = a 2 foi de 5,1 dias (+ ou – 1,1) em um estudo realizado com 650 pacientes após introdução da varfarina 24 horas após o procedimento.7

 

Indicações de “anticoagulação ponte” (bridging anticoagulation)

Pacientes de alto risco de tromboembolismo

Em pacientes com alto risco de tromboembolismo arterial (AVC ou sistêmico), tais como os pacientes com valva cardíaca mecânica ou com fibrilação atrial que sejam de alto risco, e também nos pacientes em vigência de anticoagulação por tromboembolismo venoso, particularmente naqueles que se encontram nos primeiros 3 meses de anticoagulação (ver Tabela 1 – pacientes de alto risco de tromboembolismo perioperatório), recomenda-se “anticoagulação ponte” (bridging anticoagulation) com heparina não fracionada endovenosa ou heparina de baixo peso molecular durante os 10 a 12 dias em que o INR estará fora da faixa terapêutica devido a suspensão da varfarina.

Em relação às doses, o consenso realiza alguns argumentos favoráveis a que esta “anticoagulação ponte” seja realizada com doses plenas das heparinas, pois estas seriam equivalentes à anticoagulação com varfarina. As doses profiláticas, embora possam prevenir trombose venosa profunda em situações de pós-operatório, não foram estudadas nestas doses para prevenção de tromboembolismo arterial. Apesar disso, o consenso cita 3 esquemas possíveis para a “anticoagulação ponte”:

 

1.   Doses terapêuticas de heparina: por exemplo, enoxaparina 1 mg/kg SC a cada 12 horas ou heparina não fracionada endovenosa procurando manter o R do TTPA entre 1,5 e 2,0. A heparina não fracionada será útil principalmente nos pacientes com insuficiência renal.

2.   Doses baixas/profiláticas de heparina: mesmas doses utilizadas para prevenção de tromboembolismo venoso pós-operatório. Exemplo:  enoxaparina 40 mg SC 1 vez/dia ou heparina não fracionada 5.000 a 7.500 SC a cada 12 horas.

3.   Doses intermediárias de heparina: anticoagulação intermediária entre doses profiláticas e terapêuticas. Exemplo: enoxaparina 40 mg SC a cada 12 horas.

 

Pacientes de baixo risco para tromboembolismo

Nos pacientes com valva cardíaca mecânica, fibrilação atrial ou tromboembolismo venoso que tenham baixo risco de tromboembolismo (ver Tabela 1), o consenso recomenda que não é necessária “anticoagulação ponte” com heparinas.

 

Pacientes com risco moderado para tromboembolismo

Nos pacientes com valva cardíaca mecânica, fibrilação atrial ou tromboembolismo venoso que tenham moderado risco de tromboembolismo (ver Tabela 1), o consenso recomenda a individualização do tratamento.

 

Administração da “anticoagulação ponte” (bridging anticoagulation)

O consenso recomenda que, para pacientes em uso de heparina de baixo peso molecular 2 vezes/dia, a última dose seja administrada 24 horas antes (p. ex., na manhã do dia anterior) e, no caso de pacientes recebendo terapia somente 1 vez/dia, que a dose seja administrada pela metade 24 horas antes. Em caso de heparina não fracionada endovenosa, ela deve ser suspensa 4 a 6 horas antes da cirurgia.

Em relação à reintrodução da anticoagulação, quanto mais precoce for reintroduzida a “anticoagulação ponte” após a cirurgia, maior será o risco de sangramento, sendo o risco menor quando esta for introduzida 24 horas após o procedimento. Desta forma, a “anticoagulação ponte”, principalmente se com doses “terapêuticas” só deverá ser instituída quando a hemostasia estiver adequada, preferencialmente após 24 horas, e um cuidado adicional deverá ser realizado em cirurgias de maior porte ou com maior risco de sangramento. O consenso recomenda que, no caso de cirurgias com alto risco de sangramento, a “anticoagulação ponte” em doses terapêuticas só ocorra após 48 a 72 horas do procedimento. Se houver sinais de sangramento após 72 horas, a terapia “ponte” poderá ser instituída em doses profiláticas ou a varfarina poderá ser reintroduzida sem a terapia “ponte”.

 

Procedimentos dentários, oculares e dermatológicos com baixo risco de sangramento

Alguns procedimentos dentários, cutâneos ou oculares, como cirurgias reconstrutivas dentárias, cirurgias plásticas ou cirurgias de retina, acarretam maior risco de sangramento. Nestes casos, a interrupção da varfarina é mandatória e, se necessário, a “anticoagulação ponte” poderá ser instituída conforme já descrito.

Já em pacientes que serão submetidos a procedimentos dentários menores, o consenso sugere manter a varfarina associando um agente oral pró-hemostático (p. ex., agentes antifibrinolíticos; pode-se realizar bochecho com ácido tranexâmico usando-se 5 mL 5 a 10 minutos antes da cirurgia e 3 a 4 vezes/dia por 1 a 2 dias adicionais) ou suspender a varfarina somente 2 a 3 dias antes do procedimento, o que provavelmente levará a um INR entre 1,6 a 1,9 no dia da cirurgia.

Para pacientes que serão submetidos a cirurgias cutâneas com baixo risco de sangramento, o consenso recomenda manter a terapia com varfarina e otimizar o controle hemostático; para os que serão submetidos a cirurgia de catarata, o consenso sugere manter a terapia com varfarina.

O Algoritmo 1 resume as recomendações do consenso.

 

Algoritmo 1. Manejo da anticoagulação com varfarina no perioperatório de cirurgias eletivas

 

 

Referências bibliográficas

1.   Kelling D, Bagling T, Tait C, Watson H, Perry D, Baglin C et al. Guidelines on oral anticoagulation with warfarin – 4th edition. British Journal of Haematology 2011; 154(3):311-24.

2.   American College of Chest Physicians (ACCP). Antithrombotic Therapy and Prevention of Thrombosis, 9th Ed: American College of Chest Physicians Evidence-Based Clinical Practice Guidelines. Chest 2012;141(2 suppl).

3.   Ebell MH. Evidence-based initiation of warfarin. American Family Physician 2005; 15;71(4):763-5.

4.   Ebell MH. Evidence-based adjustment of warfarin. American Family Physician 2005; 15;71(10):1979-82.

5.   Douketis JD, Spyropoulos AC, Spencer FA, Mayr M, Jaffer AK, Eckman MH et al. Perioperative Management of Antithrombotic Therapy. Antithrombotic Therapy and Prevention of Thrombosis, 9th ed: American College of Chest Physicians Evidence-Based Clinical Practice Guidelines. CHEST 2012; 141(2)(Suppl):e326S–e350S.

6.   Kovacs MJ, Kearon C, Rodger M, Anderson DR, Turpie AGG, Bates SM et al . Single-arm study of bridging therapy with low-molecular-weight heparin for patients at risk of arterial embolism who require temporary interruption of warfarin. Circulation. 2004; 110(12):1658- 63.

7.   Douketis JD, Johnson JA, Turpie AG. Low-molecular weight heparin as bridging anticoagulation during interruption of warfarin: assessment of a standardized periprocedural anticoagulation regimen. Arch Intern Med 2004; 164(12):1319-26.

8.   Lip GYH. Management of anticoagulation before and after elective surgery In Uptodate 2012, This topic last updated: Mar 8, 2012. (www.uptodate.com)

9.   Valentine KA, Hull RD. Therapeutic use of Warfarin. In Uptodate 2012, This topic last updated: Jan 17, 2012. (www.uptodate.com).

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