Autor:
Antonio Paulo Nassar Junior
Especialista em Terapia Intensiva pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP). Médico Intensivista do Hospital São Camilo. Médico Pesquisador do HC-FMUSP.
Última revisão: 19/01/2011
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Necessidades de transfusão após cirurgia cardíaca: o estudo randomizado e controlado TRACS1
A anemia é um fator de risco independente para morbidade e mortalidade no pós-operatório (PO) de cirurgias cardíacas(2). No entanto, a transfusão sanguínea também se associa a uma maior morbimortalidade em pacientes críticos(3). Por outro lado, as evidências quanto à população especial de cirurgia cardíaca são escassas. Assim, os autores deste estudo brasileiro propuseram-se a avaliar em um estudo clínico, prospectivo e randomizado se uma estratégia transfusional restritiva era tão segura quanto uma liberal no PO de cirurgia cardíaca.
Foram incluídos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca (revascularização miocárdica e cirurgia de troca/reparo de válvula) com circulação extracorpórea (CEC). Foram excluídos pacientes menores de 18 anos, cirurgias realizadas sem CEC, procedimentos de emergência, com anemia crônica (Hb pré-operatório < 10g/dl), plaquetopenia<150.000/ml, coagulopatia (história prévia ou TP>14,8s), gestantes, com neoplasia, endocardite, cardiopatia congênita, disfunção hepática (bilirrubina total>1,5mg/dl), dialíticos, participantes de outros estudos e que não forneceram o consentimento informado.
Os pacientes foram randomizados para uma estratégia liberal (manter Ht>30%) ou restritiva (manter Ht>24%) durante o procedimento cirúrgico e a estadia na UTI. Os médicos foram orientados a transfundir apenas uma unidade de hemácias por vez e aguardar o hematócrito para decidir sobre a necessidade ou não de nova transfusão. Em situações de risco de vida, como choque hemorrágico, a transfusão era permitida. Os pacientes e a equipe que avaliou os resultados eram “cegos” quanto ao grupo sorteado.
O principal desfecho analisado foi a combinação de mortalidade em 30 dias e morbidade grave (choque cardiogênico, síndrome do desconforto respiratório agudo – SARA -, insuficiência renal aguda – IRA - dialítica) durante a estadia hospitalar. Como tratou-se de um estudo de não-inferioridade, determinou-se que a diferença entre os dois geupos deveria ser menor que 8%. Além disso, foi avaliada a incidência de transfusões, número de unidades transfundidas, fatores de risco para transfusão e efeitos da transfusão no prognóstico.
Um total de 502 pacientes (253 no grupo liberal e 249 no grupo restritivo) participaram do estudo. A concentração média de hemoglobina foi 10,5g/dl no grupo liberal e 9,1g/dl no grupo restritivo (p<0,001). Como esperado, os pacientes do grupo liberal receberam mais transfusões que o grupo restritivo (78 vs. 47%, p<0,001). O número total de unidades transfundidas foram 613 no grupo liberal e 258 no grupo restritivo (p<0,001).
O desfecho primário (morte em 30 dias, choque cardiogênico, SARA, IRA dialítica durante a estadia hospitalar) ocorreu em 10% no grupo liberal e em 11% no grupo restritivo (diferença de 1%, IC 95% - 6 a 4%; p=0,85). Não houve diferenças quanto à mortalidade em 30 dias (5 vs. 6%; p=0,93) e nem em nenhum dos outros desfechos isoladamente. Não houve diferenças também quanto ao tempo de internação na UTI ou no hospital.
Um total de 316 pacientes (63%) recebeu transfusão. Estes pacientes tinham uma proporção maior de mulheres, índice de massa corporal mais baixo, Euroscore mais alto, maior tempo de CEC, níveis mais baixos de hemoglobina no pré-operatório, lactato mais elevado, usaram mais plasma fresco congelado, tiveram maiores pontuações no APACHE II e SAPS II, maior tempo de internação na UTI e no hospital.
Na análise multivariada, cirurgia cardíaca prévia (OR 8,92), sexo feminino (OR 1,81), lactato ao final da cirurgia (OR 1,02), duração da CEC (OR 1,01) e hemoglobina basal foram fatores preditivos da necessidade de transfusão. Para cada unidade de hemácias transfundida, aumentava o risco de complicações respiratórias (OR 1,27), cardíacas (OR 1,26) e infecciosas (OR 1,20). Transfusão de cinco ou mais unidades associou-se a uma maior mortalidade (OR 5,82 para 5 a 6 unidades e 9,70 para mais de 6 unidades). O número de unidades transfundidas foi independentemente associado a um maior risco de morte em 30 dias (OR 1,2).
Este importante estudo vem-se a somar a literatura atual mostrando em primeiro lugar a segurança de uma estratégia restritiva em pacientes selecionados de cirurgia cardíaca e, em segundo lugar, os riscos associados à transfusão na mesma população. Embora o editorial mencione, com razão, que os concentrados de hemácias não eram leucodepletados, o que reduziria a validade dos seus resultados a populações européias, norte-americanas e canadenses, seus achados são bastante válidos para a realidade brasileira. Assim, pacientes submetidos em centros brasileiros a cirurgias cardíacas de revascularização miocárdica e/ou troca/reparo de válvula não têm risco aumentado de complicações caso se siga uma estratégia restritiva de transfusão. Este dado é importante porque a transfusão nessa população associa-se a uma maior morbimortalidade na internação e em 30 dias.
1. Hajjar LA, Vincent JL, Galas FR, Nakamura RE, Silva CM, Santos MH, et al. Transfusion requirements after cardiac surgery: the TRACS randomized controlled trial. JAMA. 2010 Oct 13;304(14):1559-67.
2. Carson JL, Duff A, Poses RM, Berlin JA, Spence RK, Trout R, et al. Effect of anaemia and cardiovascular disease on surgical mortality and morbidity. Lancet. 1996 Oct 19;348(9034):1055-60.
3. Marik PE, Corwin HL. Efficacy of red blood cell transfusion in the critically ill: a systematic review of the literature. Crit Care Med. 2008 Sep;36(9):2667-74
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