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Como transformar a assistência a saúde em um processo seguro?

Autor:

Lucas Santos Zambon

Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.

Última revisão: 01/02/2010

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Pontos Fundamentais para Transformar a Assistência em Saúde em um Processo Seguro

 

Transformando a Assistência em Saúde: o Imperativo da Segurança.

Leape, L; Berwick, D; Clancy, C et al. Transforming Healthcare: a safety imperative. Qual. Saf. Health Care 2009;18; 424-428. [Link para o Artigo].


Fator de Impacto (Qual. Saf. Health Care): 2,554


A realidade da assistência em saúde

            A assistência em saúde é definitivamente insegura. Há dez anos o Institute of Medicine dos EUA publicava o livro “Errar é Humano: Construindo um Sistema de Saúde Mais Seguro”, onde se mostravam os dados alarmantes do impacto dos eventos adversos no sistema de saúde norte-americano, que tinha nada menos que cerca de 1 milhão de pacientes sofrendo dano e quase 100.000 morrendo por ano, tudo decorrente de uma assistência inadequada. Muitos estudos subseqüentes mostram inclusive que estes dados ainda subestimam a realidade dessa situação. A despeito de muitos esforços terem se iniciado desde então para melhorar a Segurança do Paciente, os progressos são frustrantes.

            Nas palavras de alguns dos maiores especialistas da área da Segurança do Paciente (autores deste artigo), muito dessa falta de progresso pode ser atribuída à situação estanque da relação dos médicos com o sistema, algo ainda muito institucionalizado na estrutura hierárquica acadêmica e das organizações da área da saúde, o que desencoraja o trabalho em equipe e a transparência, além de prejudicar a criação de sistemas claros de responsabilização quanto a uma assistência segura.

            Obviamente, esforços estão sendo tomados pelo mundo, com instituições privadas e governamentais trabalhando no assunto desde o final da década de 1990 nos EUA, além de diversos programas estarem em andamento na Austrália, Canadá, Dinamarca, Espanha, Suécia, Suíça, apenas para citar alguns exemplos. Há indicadores bem descritos nestes países, metas nacionais de melhoria e programas maciços voltados para a Segurança do Paciente como as campanhas do Institute for Healthcare Improvement (IHI – veja detalhes em: Introdução à campanha “5 Milhões de Vidas” do Institute of Healthcare Improvement (IHI)), além do grande trabalho que vem sendo desenvolvido dentro da Organização Mundial da Saúde a nível mundial. No Brasil os esforços ainda são isolados e pouco consistentes.

            Outras indústrias já tem as lições da área de segurança bem sacramentadas (como por exemplo na aeronáutica, na área de energia nuclear, na indústria automobilística, etc), e sabem que segurança não depende apenas de mensurações, práticas, regras e de métodos de melhoria; depende de uma cultura de confiança, comunicação, transparência e disciplina; e essa é a grande mudança a ser enfrentada.

            Quando pensamos nas instituições de saúde, estas ainda são “doentes” do ponto de vista de seus processos. O respeito mútuo, o trabalho em equipe e a transparência são deficientes e dependentes de hierarquia. O que há nos corredores é culpa e vergonha. A atribuição de responsabilidades é falha. Poucos estabelecimentos da área da saúde têm a capacidade de mudar para o padrão das indústrias de alta confiabilidade, que tem seus processos estruturados de forma segura e consistente. Muitos dirigentes dessas instituições até fazem o discurso de que tem a segurança como prioridade, impulsionados por modismo e processos de acreditação, mas as práticas da instituição continuam inseguras e não há investimento para melhoria. Se de fato entendessem a necessidade da Segurança do Paciente, saberiam que muito mais que uma prioridade, ela é um pré-requisito, uma pré-condição. Não entendem que atender as necessidades de segurança tanto para o paciente, quanto para um ambiente de trabalho adequado à sua equipe contribuem para aumentar a produtividade e a lucratividade.

            Mas os profissionais de saúde também têm problemas. A maioria dos médicos não sabe trabalhar em equipe. As estruturas de ensino médico antiquadas, e todas hierarquizadas, inibem a colaboração e a aprendizagem. As equipes de enfermagem são presas à estrutura burocrática, passando mais tempo em frente a registros do que ao lado dos pacientes. Seu ambiente de trabalho inibe seu potencial de assistência, e tanto os líderes de enfermagem quanto seus processos são frágeis. Os profissionais – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, nutricionistas, psicólogos – trabalham muito focados em seu próprio desempenho, e a comunicação entre eles é muito deficitária, prejudicando ainda mais a possibilidade de um bom trabalho de equipe. E ainda há o fato que os pacientes raramente são incluídos no planejamento organizacional ou na análise de eventos adversos que os prejudicaram.


O que precisa ser feito?

O Lucian Leape Institute, que foi estabelecido pela Fundação Nacional de Segurança do Paciente nos EUA, através de seus grandes especialistas na área de Segurança do Paciente, descreve a visão futura do que seria ideal da assistência em saúde: “Nós prevemos uma cultura que seja aberta, transparente, solidária e comprometida com o aprendizado, onde médicos, enfermeiros e todos os trabalhadores da saúde tratam uns aos outros e seus pacientes com competência e respeito, onde o interesse sobre o paciente é sempre fundamental, e onde os doentes e famílias sejam plenamente envolvidos em seus cuidados. Nós prevemos uma cultura centrada no trabalho em equipe, fundamentada na missão e propósito, em que os diretores e gestores das organizações se consideram responsáveis pela segurança do paciente e por aprender a melhorar. Em uma organização voltada ao aprendizado, cada voz é ouvida e cada trabalhador tem poderes para impedir falhas do sistema e corrigi-los quando eles ocorrerem. A cultura que nós encaramos aspira, se esforça para, e alcança níveis sem precedentes de segurança, eficácia e satisfação nos cuidados de saúde”.

 

Para tanto, são descritas 5 grandes transformações que precisam ocorrer:

 

1.     Transparência: dividir informações de forma livre é provavelmente o mais importante atributo, isoladamente, para se construir uma cultura de segurança. Sua ausência inibe o aprendizado a partir do erro e corrói a confiança do paciente no sistema. E a transparência precisa ocorrer em todos os níveis: entre profissionais, entre profissionais e pacientes, entre as organizações e com a opinião pública. Não pode haver medo de se reportar um evento adverso ou um erro por risco de uma punição. Deve-se falar abertamente com o paciente sobre erros no momento em que eles ocorrerem, pedindo desculpas e isso deve ser endossado pelos chefes e diretores, pois isso é um imperativo do ponto de vista moral. E informações devem ser divididas. Na indústria da aviação, se um mecanismo hidráulico falha em Dallas nos EUA, o sol não se põe antes que os mecânicos de todas as partes do mundo saibam disso. Entretanto, na área da saúde as organizações não trocam informações, e uma das coisas mais importantes para isso acontecer, é permitir que profissionais especializados analisem todo e cada evento ocorrido.

 

2.     Plataforma de Cuidados Integrados: a proposta é garantir eficiência, segurança, qualidade e confiabilidade de forma a produzir desfechos consistentemente de alto impacto e com menores custos, ao longo de todo o sistema de saúde. Para isso é necessário centrar tudo no paciente, atribuir o trabalho de cada profissional de forma a potencializar os desempenhos de cada um, e é necessário fornecer cuidados baseados nas melhores evidências, que sejam apropriados e respondam às necessidades de cada paciente, de forma individualizada para cada grupo de doenças.

 

3.     Engajamento do Paciente: este é um ponto essencial, seja quando um indivíduo é o paciente, seja quando ele está na figura de acompanhante (um dia poderá se tornar um paciente). Em 2001, o Institute of Medicine dos EUA em seu livro “Cruzando o Abismo da Qualidade”, aponta o cuidado centrado no paciente como um dos 6 pilares para a assistência em saúde. O envolvimento do paciente ou da família pode ajudar quanto ao reconhecimento de problemas e para o desenvolvimento de respostas a estes, principalmente dividindo suas experiências. Mas os profissionais, principalmente os médicos, são relutantes em dividir o planejamento terapêutico com o paciente. As análises dos processos e dos eventos adversos não envolvem os pacientes, mesmo em áreas onde eles teriam muito a acrescentar como na segurança de medicações e nas transferências de cuidados (passagens de plantão, troca de unidades, etc). É necessário trazer a família para fazer parte da equipe (não são apenas visitantes), e informar o paciente de forma clara, para que ele tenha poder de dividir decisões quanto a algo que lhe concerne, que é sua própria saúde.

 

4.     Alegria e Significado no Trabalho: os profissionais não têm como fazer uma assistência melhor e mais segura a não ser que se sintam valorizados e encontrem alegria e significado em seu trabalho. Em recente pesquisa nos EUA, 60% dos médicos estão pensando em largar a profissão por estarem desanimados. Em um estudo com enfermeiros recém-formados, também nos EUA, evidenciou-se que 33% dos profissionais tendem a mudar de profissão em 1 ano. Para os médicos, os problemas são a falta de controle sobre sua profissão, os riscos de processos e os honorários inadequados. Para a enfermagem, pesa a falta de respeito por parte de administradores e médicos, a crescente carga de regulamentos e a burocratização do trabalho, que as afasta dos pacientes. O que acontece é que o trabalho dos profissionais está se distanciando de seu significado. Há diversas experiências de hospitais, que mudaram o ambiente de trabalho de seus profissionais, de forma a manter sua moral elevada – o que mostra que os problemas são locais. Líderes, mas principalmente os diretores das organizações, devem propiciar um ambiente de trabalho onde melhorias podem ser feitas, mas levando em conta que as melhores idéias surgem dos trabalhadores da linha de frente, pois são eles que convivem diariamente com os processos, e portanto, são as melhores pessoas para enxergar possíveis melhorias. Deve-se tratar a todos com dignidade e respeito, deve-se fornecer educação, treinamento, ferramentas e encorajamento, e mais importante, deve-se reconhecer e valorizar o que cada um faz.

 

5.     Reforma da Educação Médica: a educação médica deve ser reformulada para reduzir seu foco quase que exclusivo na aquisição de conhecimento sobre fatos clínicos e científicos, e ampliar o desenvolvimento de habilidades, comportamentos e atitudes necessárias para a prática médica. Isso inclui saber lidar com informações, entender conceitos das interações humanas, de segurança do paciente, de teorias sobre sistemas e qualidade, além de habilidades de gerenciamento, comunicação e de trabalho em equipe. E este desenvolvimento deve ser muito concentrado no médico, pois suas decisões influenciam a assistência de todos os outros profissionais da área da saúde, o que nos faz concluir que é a falta dessas habilidades descritas na figura do médico que produzem grande impacto em uma assistência inadequada.  


Comentários Finais

            A história desta nova disciplina, chamada de “Segurança do Paciente”, se iniciou praticamente com a história da medicina ocidental, já nos aforismos hipocráticos (lembremos do “Primo Non Nocere”). Entretanto, a onda se espalhou após a publicação de 1999 do Institute of Medicine dos EUA. O que mudou desde então?

            Esforços estão sendo feitos, é verdade. Há pessoas estudando e tentando entender as falhas da área da saúde, também é verdade. O que nos falta? Consciência e Atitude. Seria mais fácil nos colocarmos a todo tempo no lugar do paciente, imaginar um familiar naquele leito ocupado, e pensar em tudo que gostaríamos que não saísse errado. Seria mais fácil os dirigentes começarem a olhar de forma crítica para tudo aquilo que já se desenvolveu fora da área da saúde, e transportar esses conceitos para hospitais. Custos e investimentos? Sim, eles são inevitáveis. Mas segurança não é uma nova moda. Não é a roupagem nova ser vendida como prioridade para a opinião pública em um anúncio. Segurança é pré-requisito dentro da área da saúde. Está se lidando com vidas humanas com banalismo. Da mesma forma que um edifício não se ergue em uma cidade sem quilos de aprovações técnicas, um processo na área da saúde não deveria ser executado sem ser avaliado por quem é experiente na área de Segurança do Paciente. O que fazer com o que já temos? Transformar, recriar, renovar, utilizando ferramentas que outras áreas muito mais seguras que a da saúde já usam.

            Este artigo traz 5 grandes áreas a serem trabalhadas, cujo reflexo de melhoria poderia ser sentido de forma robusta caso se tornem as bases para a transformação da área da saúde. Estamos não 10 anos atrasados, mas centenas. Precisamos investir em mudanças, e isso deve começar pela mudança de cultura, que deve atingir os profissionais de saúde, os pacientes, e os líderes das áreas privada e pública.

 

Bibliografia

1.     Kohn KT, Corrigan JM, Donaldson MS, eds. To err is human: Building a safer health system. Washington, DC: National Academy Press, 1999.

2.     Pronovost P, Miller MR, Wachter RM. Tracking progress in patient safety—na elusive target. JAMA 2006;296:696–9.

3.     IHI. http://www.ihi.org/IHI/Programs/Campaign/

4.     AHRQ. Quality indicators. 2004. http://www.qualityindicators.ahrq.gov

5.     National Quality Forum. Safe practices for better health care: a consensus report. Washington (DC): NQF, 2003, NQFCR-05-03.

6.     Joint Commission. 2009 Patient safety goals. http://www.jointcommission.org/PatientSafety/NationalPatientSafetyGoals

 

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