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Hipernatremia

Autores:

Fabio Gusmão

Médico Nefrologista e Intensivista do Hospital das Clínicas da FMUSP

Regina Abdulkader

Médica Assistente do Laboratório de Fisiopatologia Renal da Disciplina de Nefrologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Doutora em Fisiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP

Última revisão: 10/11/2008

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INTRODUÇÃO E DEFINIÇÕES

            A hipernatremia é definida como um sódio sérico maior do que 145 mEq/L. Como o que se mede laboratorialmente é o sódio, seria lógico assumir que a hipernatremia, via de regra, fosse causada por um excesso de consumo ou incapacidade de excretar o sódio. No entanto, a concentração de sódio reflete predominantemente a condição osmótica da água corpórea total, de forma que a hipernatremia é mais frequentemente causada por um estado de deficiência de água livre em relação ao sódio. Menos comuns são as causas de hipernatremia por excesso de sódio. Geralmente, nestes casos, a hipernatremia é iatrogênica e ocorre por excesso de infusão de soluções ricas em sódio (p. ex., bicarbonato ou soluções hipertônicas).

            A hipernatremia é menos freqüente do que a hiponatremia e, diferentemente desta, sempre leva a um estado hiperosmolar. É clinicamente melhor tolerada do que a hiponatremia, e as condutas terapêuticas são mais simples e bastante eficazes.

 

ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA

            O efeito da hipernatremia sobre a osmolalidade plasmática e, portanto, sobre a tonicidade dos fluidos corpóreos, pode ser estimada pela seguinte fórmula:

 

Osmolalidade efetiva = 2 x [Na] + [glicose]/18

(normal = 270 a 285 mOsmL/kg)

 

            Nesta equação, despreza-se a ação da uréia, uma vez que, por se tratar de uma molécula difusível através das membranas celulares, não exerce ação osmótica. Logo, observa-se que o sódio é o principal íon osmoticamente ativo, motivo pelo qual a hipernatremia sempre reflete um estado de hiperosmolaridade.

            Uma vez que a natremia reflete o equilíbrio entre os íons osmoticamente ativos (Na+ e K+) e a água corpórea total, depreende-se que a hipernatremia é consequência do excesso de Na em relação à água, que pode ocorrer por perda de água livre ou por excesso absoluto de sódio. Destes, a causa mais comum é a deficiência de água livre, e a análise dos dados clínicos e de provas complementares permite uma correta interpretação de qual componente da equação predomina.

            Em termos fisiológicos, a elevação da natremia e a hipertonicidade por ela gerada desencadeiam respostas homeostáticas que produzem a ativação da sede e a secreção de ADH (cuja secreção máxima ocorre quando a osmolalidade plasmática atinge cerca de 295 mOsmoL/Kg), de forma a aumentar a água livre corpórea.

            O ADH atua sobre a permeabilidade dos ductos coletores à água, causando o aumento na absorção de água e a eliminação de uma urina concentrada. A produção de urina concentrada requer o correto funcionamento de dois mecanismos: o mecanismo de contracorrente concentrador da medula renal, mediada por mecanismos ativos na porção espessa da alça de Henle, e a difusão da água a partir do ducto coletor, sensibilizado pelo ADH, para a medula renal hipertônica.

            Uma série de condições interfere nos mecanismos produtores da urina concentrada, levando à perda de água livre e à hipernatremia. A partir do comportamento fisiopatológico, a hipernatremia pode ser classificada em dois grandes grupos: aquela que ocorre por perda de água livre e aquela decorrente de excesso de sódio (Tabela 1).

 

Tabela 1: Causas de hipernatremia

Perda de água

Perdas insensíveis

Suor: febre, exercícios físicos, alta temperatura ambiente

Queimaduras

Infecção respiratória

Perdas renais

Diabetes insípido central

Diabetes insípido nefrogênico

Diurese osmótica: glicose, manitol e uréia

Perdas gastrintestinais

Diarréia osmótica: lactulose, síndromes mal-absortivas, infecções

Distúrbios hipotalâmicos

Hipodipsia primária

Reset osmostat

hipernatremia essencial por perda de função osmorreceptora

Shift intracelular de água

Convulsões e exercício intenso

Rabdomiólise

Retenção de sódio

Administração de NaCl ou NaHCo3 hipertônicos

Excesso de ingestão de sódio

 

Perda de Água Livre

Perdas Insensíveis e pelo Trato Gastrintestinal (TGI)

            Grandes perdas podem advir do aumento da perda habitual pelo trato gastrintestinal e pela pele (em geral, de 800 a 1.200 mL) por condições patológicas como diarréia, febre, queimaduras etc.

 

Diabetes Insípido (DI)

            A hipernatremia decorre da perda de grandes quantidades de água livre na urina pela impermeabilização dos ductos coletores em função da ausência de ADH circulante, como nos casos de DI central, ou em função da resistência do ducto coletor a sua ação, no caso de DI nefrogênico.

Inúmeras condições estão relacionadas ao desenvolvimento do DI (Tabela 2), e seus contextos clínicos devem ser familiares aos clínicos para facilitar a identificação dessa etiologia, que frequentemente produz distúrbios metabólicos graves.

 

Tabela 2: Etiologia do diabetes insípido

Central

Neurocirurgias: craniofaringioma, cirurgias de acesso transesfenoidal

Traumatismo cranioencefálico

Encefalopatia anóxico-isquêmica: estado pós-PCR, choque e síndrome de Sheehan

Neoplasia: primária ou metastática

Miscelânea: sarcoidose, histiocitose X, encefalite, meningite e aneurisma intracraniano

Nefrogênico

Congênito

Distúrbios hidroeletrolíticos:

         hipercalcemia

         hipocalemia

Drogas:

         lítio

         demeclociclina

         estreptozocina

         diurético de alça

Síndrome de Sjögren

Amiloidose

Diurese osmótica (p. ex., diabetes descompensado, manitol)

Insuficiênica renal aguda e crônica

Anemia falciforme

Gravidez

Intoxicação por propoxifeno

 

Disfunção Hipotalâmica

            Diversas situações que alteram a integridade do eixo hipófise-hipotálamo podem cursar com graus variáveis de DI, como pós-operatório de neurocirurgia (especialmente naquelas de acesso transesfenoidal), acidente vascular encefálico, trauma, neoplasias intracranianas, doenças infiltrativas etc.

 

Diurese Osmótica

            Sob a ação de agentes osmoticamente ativos como glicose, manitol ou aminoácidos, a água passa por processo de “arraste” osmótico na luz tubular sem o transporte equivalente de sódio, produzindo urina diluída e pobre em sódio.

 

Insuficiência Renal

            Uma série de alterações na insuficiência renal aguda pode causar perda de água livre: sobrecarga osmótica sobre néfrons residuais, perturbação do mecanismo de contracorrente (dependente de grandes quantidades de energia), resistência à ação do ADH por lesão direta do epitélio do ducto coletor, entre outros.

 

Shifts de Água

            Condições de sobrecarga metabólica ou lesão celular direta levam à quebra de macromoléculas em moléculas menores, osmoticamente mais ativas, como ocorre com quebra do glicogênio em lactato nos exercícios extenuantes, na rabdomiólise e em convulsões.

 

Sobrecarga de Sódio

Iatrogenia

            O excesso de sódio está relacionado basicamente a situações iatrogênicas, como administração de soluções hipertônicas de bicarbonato de sódio, emprego de dietas enterais ricas em sódio ou uso de soluções de manutenção com excesso de Na.

 

ACHADOS CLÍNICOS

            Os sintomas da hipernatremia decorrem das alterações do volume celular em resposta às variações da natremia e, portanto, da osmolaridade. Assim, da mesma forma que na hiponatremia, na hipernatremia o sistema nervoso central é o principal órgão atingido. Os sintomas neurológicos são inespecíficos e podem variar desde cefaléia, vômitos e fraqueza, até letargia, coma, convulsões e sangramentos de localizações diversas. Os demais achados clínicos decorrem das condições de base do paciente.

            O cérebro adapta-se à hipertonicidade por meio de desidratação do interstício e influxo de água a partir do líquido cefalorraquidiano. A seguir, os neurônios iniciam a retenção intracelular de Na e K e, no intervalo de horas, iniciam a síntese e o acúmulo de osmolitos (glutamina, glutamato e inositol), o que evita desidratação severa do neurônio, pois os íons e osmolitos causam retenção de água no espaço intracelular. Quando se iniciam as medidas terapêuticas e a tonicidade do líquido extracelular (LEC) é restaurada, tem início o influxo de água para o líquido intracelular (LIC) hipertônico. Como a reversão desse processo e a destruição dos osmolitos levam horas a dias, o cérebro torna-se muito sensível às quedas bruscas da tonicidade plasmática precipitadas pela rápida correção do sódio, que pode levar ao edema cerebral.

 

EXAMES COMPLEMENTARES

            A abordagem específica da hipernatremia requer a interpretação correta da fisiopatologia do distúrbio em cada caso. O simples reconhecimento da hipernatremia já designa a presença de hipertonicidade dos fluidos corpóreos e autoriza o clínico a adotar medidas gerais de controle.

            Muitos pacientes apresentam-se com hipernatremia e causa de base bem evidente, como diarréia e desidratação importantes, estado hiperosmolar hiperglicêmico ou idosos com rebaixamento de nível de consciência por processos infecciosos (p. ex., pneumonia ou infecção urinária) e que se desidrataram por perda de acesso a água. Nestes pacientes, geralmente não é necessário investigar a hipernatremia, sendo necessários apenas os exames para avaliar e tratar adequadamente a causa de base.

            Outros pacientes, no entanto, não têm uma causa de base evidente para hipernatremia na apresentação, necessitando de exames adicionais. Nestes casos, o primeiro passo diagnóstico consiste em avaliar a osmolalidade urinária. Em condições nas quais os sistemas de preservação de água estão íntegros, espera-se, a partir de natremia de 150 mEq/L, uma estimulação máxima da secreção do ADH que, agindo em rim normal, leva à produção de urina com osmolalidade entre 800 e 1.400 mOsmoL/kg (o que corresponde a uma densidade de 1.025 a 1.035 no exame de urina habitual). Este achado é muito importante, pois afasta a possibilidade de DI, central ou nefrogênico.

            O achado de urina com osmolalidade < 300 mOsm/kg (densidade específica ~ 1.010) atesta a falência do sistema concentrador e um teste de estimulação com ADH permite distinguir o DI central do nefrogênico.

            Por outro lado, o achado de osmolalidade urinária entre 300 e 800 mOsm/kg pode ocorrer numa série de condições clínicas, como distúrbios mistos, presença de hipovolemia, diabetes insípido parcial etc.

            Além da medida direta da osmolalidade urinária, recomenda-se a medida, em separado, das concentrações de Na e K urinários que, multiplicadas por dois, dão um valor próximo da osmolalidade. Tal abordagem informa a exata proporção de água livre que é perdida na urina por desconsiderar as moléculas em concentrações desprezíveis ou osmoticamente neutras, bem como os agentes exógenos concentrados na urina (p. ex., manitol).

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

            Como na hiponatremia, o diagnóstico da hipernatremia é evidente, com o achado de concentração plasmática de sódio > 145 mEq/L. Assim, os esforços devem ser concentrados na pesquisa da sua etiologia.

 

TRATAMENTO

            O tratamento da hipernatremia é feito em duas fases. Inicialmente, a hipertonicidade deve ser corrigida por meio do emprego de soluções hipotônicas de composições variáveis (solução glicosada a 5%, salina a 0,45%, salina a 0,23% e água destilada), escolhidas em função da composição do fluido perdido ou da velocidade com que se deseja repor a água.

            O ritmo de correção é determinado pela existência ou não de sintomas neurológicos, bem como por eventual instabilidade hemodinâmica associada. Nesta circunstância, o emprego de soluções isotônicas é mandatório.

            O primeiro passo no tratamento da hipernatremia consiste na estimativa do déficit de água livre (fórmula abaixo), seguido da definição da velocidade de correção. Considera-se uma velocidade de correção segura uma redução na concentração plasmática de sódio de até 0,5 mEq/L/h.

 

Déficit de Água = ACT* x [(Naplasma / 140) - 1]

*ACT = água corporal total = 0,6 x peso para homens e 0,5 x peso para mulheres

 

            Recentemente, a abordagem baseada na estimativa da variação de concentração plasmática de sódio induzida pela administração de 1 litro de solução com teor de Na pré-determinado ganhou aceitação em função da praticidade conferida pela escolha prévia da solução a ser infundida.

 

VARIAÇÃO [Na] = ([Na]solução – [Na]sérico) / ACT + 1

 

            Seja qual for o método adotado para estimar a reposição de água, os pilares principais do tratamento consistem no respeito à velocidade da correção da natremia e a constante reavaliação da condição hidroeletrolítica, no sentido de proceder ajustes às possíveis perdas de fluidos em curso, bem como à variação de sua composição.

            O segundo componente do tratamento da hipernatremia consiste na remoção ou controle da causa básica que levou ao transtorno, para evitar seu agravamento e sua recidiva.

            Nesse componente, merece destaque o tratamento do DI. Na sua forma central, a reposição das diversas formulações do ADH (DD-AVP, AVP sintética) ou o uso de drogas que estimulam sua liberação (clofibrato) são tratamentos específicos e bastante eficazes. Na variante periférica ou nefrogênica, drogas que sensibilizam o rim à ação do ADH podem ser empregadas: clorpromazina, carbamazepina e antiinflamatórios não-hormonais.

            O tratamento da hipernatremia decorrente da sobrecarga de Na em paciente com função renal normal consiste em medidas de suporte. A principal medida é a reposição de água livre. A correção do distúrbio pode ser acelerada com o uso de diuréticos associado à reposição da água livre excretada.

 

TÓPICOS IMPORTANTES

         A hipernatremia é mais frequentemente causada por um estado de deficiência de água livre em relação ao sódio.

         As causas de hipernatremia por excesso de sódio são menos comuns e geralmente são iatrogênicas.

         No DI a hipernatremia decorre da perda de grandes quantidades de água livre na urina pela impermeabilização dos ductos coletores em função da ausência de ADH circulante, como nos casos de DI central, ou em função da resistência do ducto coletor a sua ação, no caso de DI nefrogênico.

         Em pacientes com hipernatremia associada a desidratação e causa de base evidente não há necessidade de se investigar a hipernatremia per se.

         Em pacientes nos quais a hipernatremia não tiver causa de base evidente, o principal exame é a osmolaridade urinária.

         A presença de uma urina adequadamente concentrada com osmolaridade entre 800 a 1400 mOsmol/kg (corresponde a densidade de 1025 a 1035 na urina) afasta a possibilidade de DI.

         Urina com baixa osmolaridade (<300 mOsm/Kg) e baixa densidade atesta falência do sistema concentrador, levando a hipótese de DI.

         Considera-se segura a correção da hipernatremia na velocidade de até 0,5 mEq/L/hora. Correções mais rápidas podem levar a edema cerebral, portanto a monitorização é fundamental.

 

ALGORITMO

Algoritmo 1: Diagnóstico de hipernatremia

 

BIBLIOGRAFIA

1.      Adrogué HJ, Madias NE. Hypernatremia. N Engl J Med 2000; 342: 1493-1499

2.      Burton D. Rose, Theodore W. Clinical Physiology of Acid-Base and Electrolyte Disorders; McGrawHill, 2001, 5º edição

3.      Kumar S, Berl T.Sodium. The Lancet 1998; 352: 220-228

4.      Ellison DH. Disorders of sodium and water. Am J Kidney Dis, 2005; 46(2):356-61

Comentários

Por: Deivis Caseres Finger em 09/04/2013 às 23:27:00

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