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Cefaleia recorrente na criança

Autor:

Rosa Resegue

Médica pediatra da disciplina de Pediatria Geral e Comunitária do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Coordenadora do Projeto Desenvolver do Programa de Integração Docente Assistencial/Embu da UNIFESP. Doutora em Ciências pela UNIFESP.

Última revisão: 24/05/2016

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Versão resumida do capítulo original, o qual pode ser consultado, na íntegra, em Gusso & Lopes, Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática (2 vols., Porto Alegre: Artmed, 2012). Obra indicada também para consulta a outros temas de Medicina de Família e Comunidade (MFC), pela abrangência e a forma como o conteúdo é abordado, além de reunir importante grupo de autores.

 

Do que se trata

A cefaleia é queixa comum em crianças, grande parte apresentando queixa em algum período de sua vida, geralmente concomitante a processos infecciosos, nos quais é comum a presença de outros sintomas associados. Nesses casos, a cefaleia não costuma ser o principal motivo do atendimento médico. No entanto, em muitas crianças, ela costuma manifestar-se de forma crônica, atrapalhando a rotina de vida. Em estudo pioneiro, realizado na Suécia, com mais de 9 mil crianças e adolescentes, verificou-se que 48% da população estudada apresentava cefaleia ocasional e 7% relatava quadros frequentes dessa queixa. Estudos populacionais indicam que a queixa de cefaleia aumenta com a idade: aos 7 anos, a prevalência varia entre 37 e 51% e, aos 15 anos, entre 57 e 82%. Até a puberdade, a queixa de cefaleia ocorre mais entre os meninos, tornando-se nitidamente mais prevalente entre as meninas após os 12 anos de idade.1

 

O que pode ocasionar

De acordo com a Classificação Internacional das Cefaleias, proposta pela Sociedade Internacional de Cefaleia,2 as cefaleias podem ser catalogadas em 14 grandes grupos. Os quatro primeiros grupos estão representados pelas cefaleias primárias, e os demais, pelas cefaleias secundárias a uma determinada moléstia.2

 

Cefaleias primárias

A maioria das crianças com quadros recorrentes de cefaleia tem diagnóstico de cefaleia primária, particularmente quadros de enxaqueca e de cefaleia tipo tensional.

A enxaqueca é frequente entre crianças e adolescentes. Em uma revisão sistemática acerca das pesquisas relacionadas à frequência da enxaqueca, no período entre 1990 e 2007, observou-se uma prevalência média de cerca de 8% das crianças e adolescentes estudados nas diversas regiões do mundo.3

O diagnóstico de enxaqueca é realizado exclusivamente por meio da anamnese e do exame físico dos indivíduos acometidos, não existindo, na prática clínica, um exame laboratorial que comprove esse diagnóstico.

A enxaqueca mais frequente nas crianças é a sem aura (antes chamada de enxaqueca comum), que, na criança, costuma ser bilateral, mais comumente localizada na região frontal. A criança com enxaqueca em geral tem sintomas neurovegetativos associados aos períodos dolorosos, principalmente náuseas, vômitos e dor abdominal. Ainda em relação aos fatores associados, vale lembrar que, na maioria das vezes, a presença de fotofobia e fonofobia é mais bem verificada indagando-se à família sobre o comportamento da criança no momento da dor. Em muitas situações, embora a criança negue incomodar-se com a luz ou com o barulho, a família relata que, no momento da dor, é comum que ela procure repousar em um lugar calmo e escuro, sugerindo a presença de foto e fonofobia. Outra particularidade importante relacionada à enxaqueca em crianças refere-se à grande prevalência de familiares próximos (pais e irmãos) com esse diagnóstico.

Os critérios diagnósticos propostos pela SIC para a enxaqueca sem aura em crianças estão descritos no Quadro 105.1.

 

Quadro 105.1. Critérios diagnósticos para enxaqueca sem aura

Pelo menos 5 ataques preenchendo os critérios de B a D.

Cefaleia com duração entre 1 e 72 horas, quando não tratadas ou tratadas sem sucesso (nos casos em que a criança adormeceu com a dor e acordou sem ela, o tempo de sono deve ser incluído na duração da dor).

Cefaleia com pelo menos 2 das seguintes características:

Localização unilateral (em crianças pequenas a localização é geralmente bilateral; o padrão hemicraniano da cefaleia ocorre na adolescência ou no início da vida adulta).

Caráter pulsátil.

Intensidade moderada ou muito intensa.

Agravada por atividade física rotineira ou provocando o afastamento dessas atividades.

Pelo menos um dos seguintes sintomas durante a cefaleia:

Náusea e/ou vômitos.

Fotofobia e fonofobia.

As crises não são atribuídas a outras doenças.

Fonte: Internacional Headache Society.2

 

A enxaqueca com aura (anteriormente denominada enxaqueca clássica) é menos frequente em crianças. Acomete principalmente os adolescentes, provavelmente em consequência da dificuldade de caracterização dos sintomas relacionados à aura nas crianças com menor idade. A aura típica consiste em sintomas visuais e/ou sensoriais e/ou da fala. Os distúrbios visuais são os mais frequentes, precedendo ou acompanhando o quadro doloroso e durando entre 5 minutos e 1 hora. Salvo a maior frequência de dores unilaterais, os episódios dolorosos das enxaquecas com aura em nada diferem daqueles encontrados nas enxaquecas sem aura.

Pessoas com quadros dolorosos sugestivos de enxaqueca, mas que apresentam queixa concomitante de fraqueza muscular, perda abrupta de visão, vertigem, disartria, diplopia, perdas flutuantes da acuidade auditiva e perda de consciência devem ser obrigatoriamente encaminhadas para acompanhamento especializado. Embora essas pessoas possam apresentar alguns tipos raros de enxaqueca, em decorrência do diagnóstico diferencial com doenças intracranianas graves e da possibilidade de evolução atípica com presença de sequelas, sempre devem ser investigadas.

A cefaleia tipo tensional (anteriormente denominada cefaleia tensional, cefaleia por contração muscular, cefaleia psicogênica e cefaleia essencial) é o tipo mais frequente de cefaleia primária em adultos. Embora inicialmente considerada como uma cefaleia de origem psicogênica, estudos recentes sugerem uma base neurobiológica para esses quadros, particularmente aqueles de maior gravidade. Além disso, ainda persiste a hipótese de que a cefaleia tipo tensional e a enxaqueca sejam expressões diferentes da mesma base fisiopatológica.

Em comparação com a enxaqueca, pouco se sabe sobre a cefaleia tipo tensional em crianças. Muito do conhecimento atual acerca desse tipo de cefaleia foi extrapolado dos estudos com adultos. Da mesma forma que a enxaqueca, o diagnóstico de cefaleia tipo tensional é realizado por meio dos critérios propostos pela SIC (Quadro 105.2). Ressalta-se, entretanto, a baixa sensibilidade e especificidade desses critérios, uma vez que o diagnóstico de cefaleia tipo tensional é feito quando não há sintomas associados ao diagnóstico de enxaqueca. Assim sendo, na prática clínica, esse diagnóstico é feito por exclusão naquela criança com quadro clínico não sugestivo de enxaqueca ou de outras enfermidades.

 

Quadro 105.2. Critérios diagnósticos para cefaleia tipo tensional

Pelo menos 10 crises ocorrendo em < 1 dia por mês em média (< 12 dias por ano) e preenchendo os critérios de B a D.

Cefaleia durando de 30 minutos a 7 dias.

A cefaleia tem pelo menos 2 das seguintes características:

•      Localização bilateral.

•      Caráter em pressão/aperto (não pulsátil).

•      Intensidade fraca ou moderada.

•      Não é agravada por atividade física rotineira, como caminhar ou subir escadas.

Ambos os seguintes:

•      Ausência de náusea ou vômito (anorexia pode ocorrer).

•      Fotofobia ou fonofobia (apenas uma delas pode estar presente).

Não atribuída a outras doenças.

Fonte: Internacional Headache Society.2

 

Cefaleias secundárias

Processo expansivo intracraniano

A grande preocupação da equipe de saúde e de muitas famílias, ao defrontar-se com uma criança com queixa de cefaleia recorrente, é a possibilidade da presença de um processo expansivo intracraniano.

Embora a cefaleia seja comumente o primeiro sintoma de um tumor cerebral, tumores cerebrais são causas pouco frequentes de cefaleia. Classicamente, a cefaleia secundária a tumores intracranianos apresenta evolução crônica e progressiva, acometimento principalmente no período matutino e exacerbações relacionadas a mudanças na posição da cabeça, tosse ou manobra de Valsalva.

A incidência de cefaleia nos tumores intracranianos depende de sua localização e velocidade de crescimento. Os tumores supratentoriais, de crescimento lento, costumam causar mais quadros convulsivos, enquanto os tumores infratentoriais causam mais comumente cefaleia por obstruírem a passagem do líquido cerebrospinal. Os tumores cerebrais primários constituem o segundo tipo mais comum de neoplasias malignas na infância, situando-se em 60 a 70% das vezes na fossa posterior, onde o astrocitoma e o meduloblastoma são os mais diagnosticados. O meduloblastoma é o tumor cerebral maligno mais comum na infância. A cefaleia é, portanto, um sintoma precoce e frequente nas crianças com tumores intracranianos.

Em um grande estudo realizado nos Estados Unidos e no Canadá, observou-se que 62% das crianças com tumores cerebrais apresentavam queixa de cefaleia. No entanto, apenas 1% dessas crianças apresentava a cefaleia como único sintoma, e 3% tinha exame neurológico normal no momento do diagnóstico.4

A presença das condições de alerta listadas a seguir indica a necessidade de uma investigação mais dirigida:

 

-Alterações neurológicas

-Alterações oculares, como edema de papila, anisocoria, nistagmo, instalação de estrabismo, diplopia e diminuição da acuidade visual

-Vômitos persistentes com aumento na frequência ou de início recente

-Mudança no padrão da cefaleia, com aumento na intensidade e frequência

-Cefaleia recorrente matinal ou que repetidamente desperta a criança

-Crianças com desaceleração da velocidade de crescimento

-Diabetes insípido

-Pessoas com neurofibromatose

-Crianças com idade inferior a 5 anos

 

Cabe ressaltar que o início recente do quadro de cefaleia é também um sinal de alerta, sendo necessário o seguimento ambulatorial frequente para averiguar a evolução e a identificação de outros sinais que possam sugerir a necessidade de aprofundamento diagnóstico.

 

Rinossinusite

Embora a rinossinusite seja uma causa frequentemente aventada nas crianças com cefaleia recorrente, poucas são as que têm essa queixa e que apresentam sinusopatia. A sinusopatia crônica não é causa de cefaleia, a menos que haja crises de agudização.

Nessas pessoas, é comum a história de infecção precedente de vias aéreas superiores ou de exacerbações de rinite alérgica.

A cefaleia aparece como queixa relacionada à sinusopatia nas crianças em idade escolar. Crianças pré-escolares ou lactentes com esse diagnóstico costumam apresentar-se com queixa de tosse, irritabilidade, febre, rinorreia e obstrução nasal.

No entanto, mesmo em escolares, a cefaleia isolada raramente é causada por sinusopatia, sendo fundamental que haja associação com sintomas ou sinais respiratórios ao aventar-se esse diagnóstico.

Além disso, a rinossinusite, quando presente, pode não ser a causa da cefaleia recorrente, mas apenas uma doença associada que deve ser tratada, sem encerrar, no entanto, a investigação diagnóstica do quadro.

 

Erros de refração

Na prática clínica, a maioria das crianças com cefaleia recorrente é encaminhada para o oftalmologista com suspeita de apresentar erro de refração como causa da queixa. Embora alguns erros de refração possam desencadear cefaleia, geralmente com características muito específicas, a maioria das cefaleias na população pediátrica não é originada por erros de refração.

A cefaleia decorrente de erros de refração ocorre após o esforço visual, localiza-se, geralmente, na região frontal bilateral e melhora muito rapidamente após breve período de repouso visual.

 

O que fazer

O diagnóstico da criança com cefaleia, na maioria das vezes, baseia-se na história e no exame físico.

 

Anamnese

A caracterização dos episódios dolorosos e da evolução do quadro é decisiva para o diagnóstico diferencial. No Quadro 105.3, destacam-se algumas características importantes que, sempre que possível, devem ser obtidas.

 

Quadro 105.3. Características relevantes da anamnese na criança com cefaleia

Idade de início

Evolução desde o início do quadro (houve piora, melhora ou está estável?)

Localização

Intensidade da dor (impede as atividades da criança ou é agravada por elas?)

Duração

Tipo de dor

Frequência

Horário preferencial

Sintomas concomitantes

Fatores de melhora (incluindo repouso, sono, uso de medicamentos e doses ingeridas)

Fatores desencadeantes (incluindo atividades, alimentos ou algumas medicações)

Atitude da família no momento da dor

Interpretação da dor pela família e pela criança

Presença de sintomas precedendo o quadro doloroso

Presença de outros sintomas

História de outras dores associadas ao quadro de cefaleia ou precedentes ao seu início

História de outros problemas de saúde

Uso crônico de medicações

Rotina de vida da criança

Antecedentes familiares de cefaleia

 

Idade de início > Apesar de a maioria das crianças com queixa crônica de cefaleia apresentar início precoce da queixa, há aumento progressivo da prevalência a partir dos 6 anos de idade, com pico ao redor dos 12, quando ocorre predomínio no sexo feminino.

 

Localização > Em geral, quando indagada sobre a localização da dor, a criança costuma apontar toda a cabeça. Em crianças maiores, a localização frontal bilateral aparece mais frequentemente, mesmo nos casos típicos de enxaqueca. A localização hemicraniana é mais comumente descrita em adolescentes e nas crianças pré-púberes. A localização occipital aparece menos frequentemente como sede da dor na infância.

 

Intensidade > A intensidade do sintoma deve ser inferida pela interferência nas atividades habituais da criança. A mudança progressiva para quadros de maior intensidade é um sinal de alerta que indica a necessidade de aprofundar a pesquisa diagnóstica.

 

Duração > Episódios de curta duração são os mais frequentes. Esse fato pode estar relacionado ao fato de a criança só parar suas atividades (geralmente as brincadeiras) quando a dor atinge seu pico máximo. A duração do episódio de dor não apresenta relação com a gravidade da doença.

 

Tipo > A maioria das crianças não sabe caracterizar o tipo de dor que sentem. A dor de caráter pulsátil é mais comum nas crianças maiores e adolescentes, provavelmente pela maior facilidade na descrição dos sintomas.

 

Frequência > A frequência é um sinal indireto da repercussão da queixa no cotidiano dessas crianças e de sua família. A mudança do padrão da cefaleia com aumento da intensidade e da frequência é sinal de alerta para a presença de hipertensão intracraniana.

 

Horário preferencial > Crises matinais recorrentes ou que repetidamente despertam o indivíduo do sono são sinais de alerta importantes, que indicam a necessidade de investigação diagnóstica de processos intracranianos.

 

Sintomas concomitantes > As crianças com enxaqueca apresentam mais comumente sintomas neurovegetativos acompanhando as crises dolorosas. Vômitos persistentes com aumento de frequência ou de início recente são sinal de alerta para a presença de hipertensão intracraniana.

 

Fatores de melhora > O repouso e o sono aparecem como os principais fatores de melhora. É sempre importante indagar sobre o uso de analgésicos e averiguar a dose da medicação oferecida à criança, pois não é raro o uso crônico de medicações, muitas vezes em subdosagem.

 

Fatores desencadeantes > A ansiedade aparece como fator desencadeante principal, mesmo que haja diagnóstico de enxaqueca. Deve-se verificar se a cefaleia está relacionada com atividades que exigem esforço visual, como períodos de leitura e escrita. No Brasil, a associação com a exposição solar é também frequente. São poucas as crianças que descrevem seus quadros dolorosos relacionados à ingestão de algum tipo de alimento. Outros fatores desencadeantes são jejum prolongado, fadiga e diminuição ou aumento das horas de sono.

 

Atitude da família no momento da dor > É importante que o profissional de saúde identifique a atitude da família diante da queixa de cefaleia. Em algumas famílias, a criança só consegue fazer-se percebida por meio da dor. Em outras, a postura ansiosa em relação à dor pode estar atuando como um fator de manutenção dessa queixa.

 

Interpretação da dor pela família e pela criança > É frequente a família procurar o atendimento médico receosa de uma doença grave associada ao sintoma. A avaliação da criança e a tranquilização da família quanto ao diagnóstico têm efeito terapêutico.

 

Sintomas precedendo o quadro doloroso > A presença de pródromos é pouco frequente em crianças, provavelmente pela dificuldade da descrição desses sintomas.

 

Presença de outros sintomas > Cinetose, enurese, vômitos cíclicos e distúrbios do sono são sintomas mais comuns em crianças com enxaqueca. Queixas respiratórias, como obstrução e prurido nasal, espirros em salva e tosse, podem indicar a presença de sinusopatia. É sempre importante averiguar a presença de sinais de alerta para a presença de processos expansivos intracranianos.

 

Presença de outras dores > A simultaneidade ou a migração de sintomas dolorosos é frequente, sendo comum a associação com as dores recorrentes abdominais e nos membros.

 

Rotina de vida da criança > A descrição de um dia típico da criança com registro das suas atividades desde a hora em que acorda até a hora em que vai dormir (constando as atividades realizadas, o horário, a quantidade e a qualidade das refeições, o tempo dedicado às tarefas escolares, à televisão e ao uso de jogos eletrônicos) é um dado importante que auxilia no encontro de possíveis fatores desencadeantes da dor.

 

Antecedentes familiares de cefaleia > os quadros de enxaqueca apresentam alta incidência familiar. No entanto, cabe destacar que, nas famílias em que há história de quadros frequentes de cefaleia, desde muito cedo algumas crianças rotulam qualquer desconforto que apresentam como dor de cabeça, simplesmente por terem observado que toda vez que os adultos ao seu redor estão mais incomodados dizem estar com cefaleia. Nesses casos, é importante averiguar se, no momento da dor, a criança tem expressão facial ou corporal de sofrimento.

 

Exame físico

Além das medidas de peso, estatura e da pressão arterial em todas as crianças com cefaleia, deve-se obter a medida do perímetro cefálico, particularmente nas crianças de até 5 anos de idade. Na inspeção geral, é importante observar se existem manchas café com leite na pele, marcador da neurofibromatose, que pode se manifestar com processos tumorais no sistema nervoso central.

No exame físico especial, é importante a realização da rinoscopia anterior, a palpação dos seios da face e a avaliação da oclusão dentária. A má oclusão dentária pode indicar alterações da articulação temporomandibular, que podem provocar cefaleia, geralmente biparietal, que piora com movimentos mastigatórios. O exame da coluna, principalmente cervical, deve ser feito pela inspeção e pela mobilização do pescoço.

O exame neurológico inicia-se desde o momento em que a criança entra na consulta, sendo importante observar sua interação com os familiares, sua atitude, comportamento, estado emocional, atenção, memória, raciocínio, percepção e atividade. Além disso, é importante realizar o exame neurológico sistematizado, incluindo o exame ocular, avaliando o tamanho das pupilas, o reflexo fotomotor e a motilidade ocular. Vale ressaltar que o exame de fundo de olho normal, na presença de sinais de alerta para hipertensão intracraniana, não afasta a possibilidade desse diagnóstico, sendo necessário prosseguir na investigação laboratorial.

 

Exames complementares

Não existem exames de rotina para a abordagem diagnóstica da criança com cefaleia. Os exames dependem das hipóteses cogitadas. As crianças com quadros agudos e intensos de cefaleia, na maioria das situações, requerem a realização de exames complementares para esclarecimento diagnóstico. As crianças com dores de evolução progressiva e/ou com sinais de alerta para hipertensão intracraniana devem ser encaminhadas para avaliação neurológica especializada. Diante de uma criança com suspeita de processo expansivo intracraniano, a presença de fundoscopia ou tomografia de crânio normais não afastam esse diagnóstico, sendo indicada a realização de ressonância magnética, que apresenta maior acurácia diagnóstica em tumores de pequeno tamanho.

Não há indicação de realização de eletrencefalograma (EEG) em crianças com cefaleias recorrentes. Embora indivíduos com enxaqueca possam apresentar mais comumente alterações eletrencefalográficas, essas alterações são inespecíficas e em nada auxiliam no diagnóstico de enxaqueca.

A solicitação do EEG deve se ater às pessoas com cefaleias recorrentes e sintomas associados que sugiram a presença de síndromes convulsivas. No entanto, é preciso lembrar que quadros tipo enxaqueca, seguidos de crises convulsivas, sugerem fortemente a presença de alterações estruturais, que devem ser investigadas e seguidas exaustivamente.

 

Conduta proposta

Tratamento

O tratamento da criança com queixa de cefaleia recorrente deve ser realizado por medidas gerais – relacionadas ao modo de vida da criança – e medicamentosas. É importante a implementação de uma proposta terapêutica que se fundamente no conhecimento da vida da criança. O primeiro passo efetivo, portanto, baseia-se no estabelecimento do vínculo equipe-família. Na grande maioria dos casos, a realização de anamnese detalhada e de exame físico pormenorizado é suficiente para o diagnóstico e também para o bom estabelecimento desse vínculo.

Nos casos em que a anamnese e o exame físico sugerem alguma doença específica, a terapêutica ser determinada pela etiologia do sintoma. As pessoas com rinossinusites ou erros de refração devem ter essas condições tratadas, mas é importante o acompanhamento evolutivo dessas crianças. Em algumas situações, esses diagnósticos fazem parte de quadros de comorbidade com outras moléstias ou podem ser fatores desencadeantes ou mantenedores de crises de enxaqueca.

Uma ferramenta importante para o aconselhamento terapêutico e o acompanhamento dessas crianças é o registro dos episódios dolorosos. Orienta-se os familiares ou, preferencialmente, as próprias crianças, para que anotem o dia e horário de suas dores, as características das mesmas, possíveis fatores desencadeantes e o que foi feito para que a dor melhorasse.

 

Tratamento da enxaqueca

Uma vez estabelecido o diagnóstico de enxaqueca, o plano terapêutico deve ser traçado de forma compartilhada com a criança e sua família, levando-se em conta a gravidade do quadro, a presença de comorbidade, os tratamentos pregressos já realizados e o estilo de vida da criança.

As opções de tratamento para a enxaqueca incluem:

 

-Abordagem dos fatores desencadeantes e das rotinas de vida que estejam impactando nas crises dolorosas;

-Medicações para tratamento agudo (abortivos ou sintomáticos);

-Medicações para tratamento preventivo (profiláticos);

-Intervenções não farmacológicas.

 

Fatores desencadeantes e rotinas de vida

Alguns fatores, como diminuição das horas de sono, jejum e horários irregulares das refeições são mais comumente descritos como desencadeantes. O diário das crises dolorosas é uma importante ferramenta para a percepção desses fatores e a implementação de orientações específicas para cada criança avaliada.

 Muitos fatores dietéticos, como queijo, chocolate, embutidos, aspartame, cafeína, frutas cítricas, álcool e glutamato monossódico, têm sido relatados como desencadeantes de crises de enxaqueca. No entanto, são inconclusivas as pesquisas realizadas com o objetivo de demonstrar a relação entre a ingestão desses alimentos e o desencadeamento das crises. Nessa perspectiva, não há indicação de dietas restritivas no manejo dessas pessoas, salvo nos casos em que o alimento esteja claramente relacionado com as crises dolorosas.

 

Tratamento agudo

O tratamento das crises de enxaqueca tem como objetivo o alívio completo da dor, propiciando à pessoa o pronto restabelecimento de suas atividades normais. Elas devem ser tratadas rapidamente e de forma eficaz, visando a não recorrência em curto período de tempo. É importante ressaltar que, para muitas crianças, o sono é suficiente para abortar o quadro doloroso, sendo o repouso em ambiente escuro e silencioso indicado em todos os casos.

Os analgésicos habitualmente utilizados, como paracetamol ou dipirona, são suficientes para o tratamento da crise de enxaqueca para a maioria das crianças e adolescentes. Os analgésicos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) também apresentam eficácia clínica comprovada. Não há evidências de diferenças entre as eficácias desses dois tipos de medicações. É importante a utilização das doses corretas, pois é frequente o uso, por parte dos familiares, de subdoses. No entanto, deve-se evitar o uso frequente de analgésicos por ser um dos principais fatores desencadeantes da cefaleia crônica diária.

Nos quadros com náuseas e vômitos, recomenda-se a administração do analgésico junto com um fármaco antiemético, como a metoclopramida ou a domperidona.

Os triptanos, agentes agonistas sobre os receptores de serotonina 5HT1B e 5HT1D, têm se mostrado eficazes no tratamento abortivo da enxaqueca em adultos. Em crianças, o sumatriptano na forma de spray nasal mostrou-se eficaz, podendo ser indicado em adolescentes, em decorrência do pequeno número de crianças estudadas.5

Os derivados de ergot foram pouco estudados nas enxaquecas em crianças. Em um estudo comparando o uso de di-hidroergotamina com placebo, não foram observadas diferenças significativas no alívio da dor entre as pessoas dos dois grupos.5 O uso de derivados de ergot também está associado a maior efeito rebote (retorno do quadro doloroso, horas após o uso da medicação) e a mais sintomas gastrintestinais.

 

Tratamento preventivo

O tratamento preventivo da enxaqueca tem como objetivo a redução da frequência, duração e intensidade das crises, melhora da resposta às medicações sintomáticas e melhora da qualidade de vida da criança. Deve-se avaliar a introdução de tratamento profilático quando a frequência média de crises for igual ou superior a dois episódios por mês (avaliado por meio de um diário da dor). Entretanto, crises de longa duração (2 a 3 dias) e de grande intensidade podem justificar um tratamento profilático, mesmo com crises mais espaçadas. A indicação do uso profilático de medicamentos, portanto, é preconizada quando as crises de enxaqueca determinam interferência significativa nas atividades diárias da criança.

Ressalte-se que, apesar de ser comum a criança apresentar, na primeira consulta, história de enxaqueca que poderia indicar a introdução de profilaxia, após uma abordagem geral, em que se diminui o receio de doença grave e são indicadas mudanças nos hábitos de vida, há alteração na intensidade do quadro. Raras são as pessoas que permanecem com o padrão de crises inalterado. Diante desse fato, os casos com indicação de profilaxia devem ser encaminhados para avaliação especializada, tanto para reavaliação do diagnóstico como para a instituição da terapia profilática.

Os medicamentos mais habitualmente utilizados são o propranolol, os antagonistas da serotonina (pizotifeno e ciproeptadina), os bloqueadores do canal de cálcio (flunarizina), a amitriptilina e o divalproato de sódio. Há, entretanto, poucos estudos confiáveis abordando o uso de medicamentos profiláticos para as crises de enxaqueca em crianças.

 

Intervenções não farmacológicas

As intervenções não farmacológicas podem ser divididas em terapias comportamentais e acupuntura.

Os estudos disponíveis que avaliam terapias comportamentais em crianças, como, por exemplo, a terapia cognitivo-comportamental, técnicas de relaxamento e biofeedbacktérmico, são, em geral, mal conduzidos e levam a resultados conflitantes.6 Entretanto, parece haver algum benefício relacionado à utilização de técnicas de relaxamento. Apenas um estudo com número pequeno de pessoas avaliou a acupuntura no tratamento de crianças com enxaqueca. Os resultados apontam para um possível benefício, podendo ser utilizada como terapia adjuvante em escolares e adolescentes com crises frequentes.6

 

DICAS

- Em crianças, é muito difícil a diferenciação entre o diagnóstico de enxaqueca e a cefaleia tipo tensional. O acompanhamento evolutivo é uma importante ferramenta nesse processo.

- A anamnese ampliada, com registro acerca do modo de vida da criança, suas relações familiares e na comunidade, é uma ferramenta auxiliar fundamental para o diagnóstico e também para a terapêutica.

- Pequenas mudanças na rotina de vida (como horas de sono, horário e qualidade das refeições, controle do tempo dedicado aos jogos eletrônicos e à televisão) geralmente acarretam melhora na frequência dos quadros dolorosos.

- Medidas de relaxamento são comprovadamente eficazes no tratamento não farmacológico de crianças com cefaleia recorrente e diagnóstico de enxaqueca.

- A criança responde mais ao repouso e ao sono como fatores de melhora das crises de enxaqueca.

- Os analgésicos comuns são os mais indicados para a maioria das crianças com diagnóstico de enxaqueca.

 

Quando encaminhar

O encaminhamento para avaliação especializada deve ser feito nos casos de cefaleia de evolução progressiva ou com sintomas/sinais neurológicos concomitantes. Crianças com diagnóstico de enxaqueca, que tenham indicação de medicação profilática, também devem ser encaminhadas, em decorrência da pouca familiaridade do generalista em relação ao uso dessas medicações.

O encaminhamento para o profissional de saúde mental deve ser realizado de forma criteriosa, mesmo nas crianças com quadros dolorosos relacionados à ansiedade. Na maioria das situações, a abordagem da equipe de saúde da família é suficiente para a diminuição dos episódios dolorosos.

 

Erros mais frequentemente cometidos

- A avaliação da acuidade visual não é obrigatória em toda criança com quadro de cefaleia recorrente.

- O mesmo se aplica para a realização de radiografias de seios da face.

- Mesmo que os quadros dolorosos estejam relacionados à possibilidade de ganhos secundários (como, p. ex., a falta na escola), é importante sempre partir da premissa da veracidade da dor.

- É sempre importante o acompanhamento evolutivo dessas crianças. Esse processo é ferramenta para o diagnóstico e para terapêutica.

- Medidas dietéticas (suspensão da ingestão de alguns alimentos) só devem ser realizadas quando houver indicação na anamnese de que o alimento é fator desencadeante da dor.

 

Prognóstico e complicações possíveis

Ainda são poucos os estudos relacionados ao prognóstico das crianças com cefaleia. Em um estudo que acompanhou crianças com quadro de enxaqueca frequente por 40 anos, observou-se que, aos 25 anos de idade, 23% dos indivíduos não apresentavam mais os quadros de dor. No entanto, por volta dos 50 anos, mais da metade desse grupo ainda era sintomático. Os indivíduos do sexo feminino ou aqueles com mais tempo de queixa no momento do diagnóstico foram os que tiveram prognóstico mais desfavor·vel.1

 

Referências

1.        Bille B. A 40-year follow-up of school children with migraine. Cephalalgia. 1997;17(4):488-91.

2.        International Headache Society. The International Classification of Headache Disorders 2nd Edition. Cephalalgia. 2004;1 Suppl: 1-160.

3.        Abu-Arafeh I, Razak S, Sivaraman B, Graham C. Prevalence of headache and migraine in children and adolescents: a systematic review of population-based studies. Dev Med Child Neurol. 2010;52(12):1088-97.

4.        Honig PJ, Charney EB. Children with brain tumor headaches. Am J Dis Child. 1982;136:121.

5.        Damen L, Bruijn JKJ, Verhagen AP, Berger MY, Passchier J, Koes Bw. Syntomatic treatment of migraine in children: a systematic review of medication trails. Pediatrics. 2005;116(2):295-302.

6.        Damen L, Bruijn J, Koes BW, Berger MY, Passchier J, Verhagen AP. Prophylactic treatment of migraine in children. Part 1. A systematic review of non-pharmacological trials. Cephalalgia. 2006;26(4):373-83.

Leituras recomendadas

Gherpelli JLD. Cefaleia na criança. Recomendações. Atualização de Condutas em Pediatria. Sociedade de Pediatria de São Paulo. 2004-2006;18:6-14.

Lewis D, Ashwal S, Hershey A, Hirtz D, Yonker M, Silberstein S. Practice parameter: pharmacological treatment of migraine headache in children and adolescents: report of the American Academy of Neurology Quality Standards Subcommittee and the Practice Committee of the Child Neurology Society. Neurology. 2004;63(12):2215-24.

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