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Fasceíte necrotizante

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 27/02/2015

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As infecções de pele podem classificadas em três categorias dependendo de sua extensão e profundidade:

 

        - Infecções de derme e hipoderme: são as celulites e erisipela bacteriana simples, estas infecções envolvem a hipoderme até uma profundidade variável, sem necrose ou dano a tecidos musculares.

        - Infecções de derme e hipoderme com necrose: são as infecções cutâneas como as celulites, mas com necrose dos tecidos conjuntivos e adiposos,  sem lesões musculares profundas.

        - Fasceíte necrotizante: infecção muscular com necrose, que envolve e se estende além da fáscia periférica profunda.

 

          As celulites e erisipelas apresentam resposta satisfatória a tratamento com antibióticoterapia isoladamente, mas as infecções com necrose necessitam de intervenções cirúrgicas como debridamento nas celulites com necrose de pele e intervenções mais extensas, como as necessárias na Fasceíte necrotizante.  Discutiremos a seguir o diagnóstico e o manejo da Fasceíte necrotizante.

 

Definição e Epidemiologia

           Fasceíte necrotizante é uma infecção bacteriana rapidamente progressiva e com potencial letal elevado, a infecção é rara e não existem dados confiáveis de literatura brasileira para definir sua incidência, mesmo a literatura norte-americana e europeia tem dados pouco confiáveis, mas acredita-se que ocorram cerca de 1000 casos/ano nos EUA e 500 casos/ano no Reino Unido.

           A infecção usualmente se inicia na fáscia superficial e posteriormente os tecidos moles profundos são envolvidos, o diagnóstico é difícil e o limiar para suspeição deve ser baixo, pois vários casos têm diagnóstico apenas em necropsia. Os pacientes não tratados evoluem com sepse grave e refratária a antibióticoterapia, mesmo com o tratamento cirúrgico a mortalidade se situa entre 20 a 40%.

           Diversos micro-organismos estão associados com o quadro, mas os estreptococos são os mais comumente implicados, em particular o Streptococos pyogens, e menos comumente os estreptococos do tipo B, outros agentes infecciosos relevantes incluem o Stafilococos aureus e agentes anaeróbios, em algumas séries, flora microbiana chega a ser encontrada em 40% dos casos. Quando a infecção é causada por uma população mista de agentes anaeróbios, e envolve região perineal, pode ocorrer a chamada Síndrome de Fournier resultando em  quadro de gangrena escrotal. Quando há envolvimento por Clostridium pode ocorrer formação de gás em tecido muscular, caracterizando a chamada gangrena gasosa comum,  mionecrose clostridial. A mionecrose é um quadro mais raro que a Fasceíte necrotizante.

           Do ponto de vista microbiológico, as infecções podem ser divididas em tipo I, na qual pelo menos uma espécie anaeróbia é isolada, e tipo II, em que não são encontrados anaeróbios.

 

Fisiopatologia

           O envolvimento inicial é limitado à fáscia superficial, ocorre posteriormente rápida extensão secundária a trombose de pequenos vasos sanguíneos da fáscia e o processo necrótico se alastra para as fáscias profundas, o tratamento antibacteriano é prejudicado, pois os tecidos moles e os músculos servem como barreira à penetração dos antimicrobianos. O baixo suprimento sanguíneo local facilita o alastramento do quadro infeccioso.

           A Fasceíte necrotizante pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é rara em crianças, um estudo demonstrou que a média de idade nestes pacientes é entre 40 e 50 anos de idade, a condição está associada com internação hospitalar prolongada, procedimentos cirúrgicos, história de trauma, uso de drogas injetáveis, varicela em crianças, internação em UTI. O risco aumenta ainda quando se tem comorbidades associadas, mas particularmente em crianças não se encontra comorbidades na maioria dos casos, em adultos ausência de comorbidade ou trauma ocorre em mais de 25% dos casos.

 

Manifestações Clínicas e Diagnóstico

            As manifestações não são específicas, de forma que o diagnóstico pode ser difícil, na maioria dos casos a manifestação inicial é de alterações cutâneas compatíveis com infecção local ou febre, usualmente a febre é associada com dor muscular. O paciente pode apresentar curso rápido e fulminante com desenvolvimento de choque séptico em horas a dias, mas em geral a evolução é consideravelmente mais lenta particularmente em pacientes idosos ou com diabetes. As alterações cutâneas podem mimetizar hematomas, celulites, erisipelas, artrite séptica ou trombose venosa. A descrição clássica de "bolhas hemorrágicas", creptação e necrose tecidual não são frequentes e só ocorrem com pelo menos cinco dias de infecção estabelecida. Linfangite e linfadenite satélite são frequentes, mas podem não aparecer. Edema do membro envolvido ocorre em cerca de 80% dos pacientes e eritema e lesões cutâneas em cerca de metade dos casos.

            O paciente pode se manter em estado geral relativamente bom até fases avançadas da doença e muitas vezes apresenta apenas dor, sem febre, e outras alterações sistêmicas. A dor costuma ser intensa e desproporcional aos sinais flogísticos encontrados, com a evolução do quadro infeccioso pode ocorrer perda da inervação local com alterações de sensibilidade, hipersensibilidade local é um achado sugestivo, porém inespecífico. Os locais mais comumente acometidos são a parede abdominal, as extremidades, pelve e parede torácica, mas outras regiões podem ser acometidas.

 

O diagnóstico de Fasceíte necrotizante depende dos seguintes critérios:

            -Achado de biópsia;

            -Achado intraoperatório de fáscias com alteração de cor e necrosada com fácil ruptura de tecidos com sonda;

             -Resposta inadequada de tratamento antibiótico para infecções cutâneas.

 

Exames complementares

              Os exames complementares não são diagnósticos na Fasceíte necrotizante, mas marcadores inflamatórios costumam estar alterados e a proteína C reativa costuma estar significativamente elevada mesmo nos primeiros dias do quadro, leucocitose costuma ocorrer e hemoculturas devem ser colhidas em todos os pacientes. A presença de hiponatremia em pacientes com quadro séptico é sugestiva de infecção de tecidos moles e pode ser uma pista diagnóstica.

              A radiografia simples pode mostrar espessamento e hiperdensidade relativa dos tecidos moles, assim como gás, em raros casos visíveis, mas é um exame que costuma pouco auxiliar no diagnóstico.

              A tomografia computadorizada (TC) mostra edema das fáscias e gás entre os tecidos musculares, a sensibilidade do espessamento assimétrico das fáscias ocorre em 80% dos casos, a presença de gás em tecidos musculares aparece em pouco mais de 50% dos casos. O exame é sensível, com uma série de casos com sensibilidade próxima a 100% dos casos, mas os achados são pouco específicos, os pacientes podem ainda ter insuficiência renal como complicação do quadro infeccioso o que contraindica o uso de contraste e prejudica a performance do exame.

              A ressonância magnética (IRM) é um método também sensível e que documenta com maiores pormenores as lesões dos tecidos moles e permite avaliar a sua distribuição melhor que a TC, porém tem menos sensibilidade para detectar gás nos tecidos musculares e fáscias. A principal anormalidade encontrada nestes pacientes é o espessamento das fáscias profundas, com hipersinal em T2. As lesões podem ser diferenciadas das encontradas na piomiosite pelo predomínio das lesões em fáscias comparadas às lesões musculares predominantes encontradas na piomiosite. Podem ainda ser encontrados abscessos e bolhas de gás. A sensibilidade da IRM em pequenas séries chegou a 100%, o exame, entretanto é considerado por alguns como hipersensível e seus achados nem sempre podem diferenciar a Fasceíte necrotizante de outras infecções como a celulite necrotizante.

              A ultrassonografia é um exame de menor utilidade nestes pacientes, mas eventualmente pode ser diagnóstica, embora seja dependente para sua realização de treinamento altamente especializado. O benefício da ultrassonografia parece ser maior em pacientes da faixa etária pediátrica, pois os tecidos moles são menos espessos e permitem uma avaliação mais precisa dos planos profundos.

              O esteio diagnóstico continua sendo, mesmo nos dias atuais, a exploração cirúrgica. A decisão de exploração cirúrgica dos tecidos moles deve idealmente ser tomada precocemente e a extensão da incisão deve ser de quantidade de pele suficiente que permita a exploração de tecidos moles. Se durante a exploração é encontrada fáscia necrótica e liquefação de tecidos, a ressecção deve ser continuada até que se atinjam novamente tecidos saudáveis.

 

Tratamento

             O debridamento cirúrgico deve ser precoce, em pacientes sépticos a intervenção cirúrgica não leva à melhora imediata, mas estabilização do quadro é esperada após algumas horas, embora seja esperada ainda a permanência do paciente por dias ainda em UTI.

            O uso de antibioticoterapia de amplo espectro é indicado, e deve ser adaptado aos resultados de cultura, à combinação de carbapenêmico ou outro beta-lactâmico com betalactamase e clindamicina, que são uma boa opção. A clindamicina tem um papel adicional por seu papel bacteriostático e seu uso associado à inibição de antígenos pelos estreptocos com menor evolução para choque. Em pacientes graves alguns autores indicam também cobertura para estafilococos meticilino-resistentes com Vancomicina, esta cobertura antibiótica pode ser retirada, conforme resultados de cultura. Como a infecção é principalmente por estreptococos, muitas vezes estes são suscetíveis à penicilina cristalina ou oxacilina que poderão substituir os antibióticos de maior espectro comumente utilizados.

           A gamaglobulina teve efeito benéfico em  estudo pequeno e pode ser utilizada, embora a dose recomendada seja  de 1 grama por Kg no primeiro dia e 0,5 grama por Kg no segundo e terceiro dia.

           A utilidade da terapia hiperbárica nestes pacientes é discutível. Uma revisão de 54 pacientes com Fasceíte necrotizante de tronco demonstrou que nos 30 pacientes tratados com câmara hiperbárica houve nove mortes, ou seja, 30% da amostra, e 10 mortes ocorreram nos 24 pacientes com tratamento convencional, ou seja, 42% da amostra, esta diferença não é estatisticamente significante e um maior número de intervenções cirúrgicas tiveram de ser realizadas no grupo submetido à terapia hiperbárica, não houve diferenças quanto a tempo de internação hospitalar, permanência em unidade de terapia intensiva e duração da antibioticoterapia entre os dois grupos. Outro estudo observacional com 29 pacientes, destes 12 recebendo apenas antibioticoterapia e realizando debridamento, e 19 com tratamento convencional e terapia hiperbárica, a mortalidade foi de 66% na terapia convencional e 23% no grupo com terapia hiperbárica. Esta diferença é significativa estatisticamente e cerca de duas intervenções cirúrgicas com debridamento ocorreram a menos a cada paciente no grupo de terapia hiperbárica, estes resultados não podem ser atribuídos a diferenças de gravidade entre os dois grupos, pois o grupo submetido à terapia hiperbárica era inicialmente mais grave. Os autores deste estudo sugerem que terapia com câmara hiperbárica deveria ser indicada em todos os pacientes com Fasceíte necrotizante, porém esta ainda é uma indicação controversa.

 

Bibliografia

1-Sultan H et al. Necrotizing fasciitis.  BMJ 2012;345:e4274

2-Malguem J et al. Necrotizing fasciitis: Contributions and limitations of diagnostic imaging. Joint Bone Spines 2012.

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