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Dispepsia e Helycobacter Pylori

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 25/05/2015

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Introdução e definições

A dispepsia é uma síndrome extremamente comum do ponto de vista clínico e com múltiplas etiologias, com definições diferentes na literatura e manifestações clínicas diversas, exigindo uma abordagem crítica para economia de recursos sem prejuízo para o paciente. Estatísticas americanas sugerem que 25% da população a cada ano apresente sintomas dispépticos, porém apenas a minoria destes pacientes procura atenção médica. Em muitos casos, os pacientes não apresentam doença orgânica associada, neste caso a dispepsia é denominada de funcional, porém apesar da condição ser benigna e não implicar em aumenro de mortalidade deve-se considerar que está associada com absenteísmo e custos com medicamentos e exames subsidiários que podem ser significativos, além de piora da qualidade de vida.

Como comentado, existem diferentes definições na literatura para dispepsia, mas universalmente podemos considerar a dispepsia como qualquer sintoma relacionado ao trato digestivo alto causado pela alteração da digestão dos alimentos (equivalendo ao termo leigo “má-digestão”). Os sintomas podem incluir dor abdominal ou desconforto doloroso localizado em região de epigástrio, dor retroesternal ou pirose retrosternal, azia, sensação de regurgitação, empachamento ou plenitude epigástrica, saciedade precoce, náuseas, vômitos, eructação, entre outros sintomas.

 

Um consenso internacional chamado de Roma Comittee III definiu dispepsia como a presença de um ou mais dos seguintes sintomas:

- sensação de plenitude pós-prandial (denominada de síndrome de desconforto pós-prandial);

- saciedade precoce (definida pela incapacidade de terminar uma refeição de tamanho normal ou a sensação de plenitude pós-prandial acompanhando esta refeição);

-dor epigástrica ou queimação (denominada de síndrome de dor epigástrica).

 

Estes critérios são preferidos para utilização na prática clínica em relação aos critérios previamente utilizados Roma II, que incluíam ainda dor localizada no centro do abdome.

Os pacientes apresentando sintomas de pirose retroesternal ou outros sintomas compatíveis com refluxo gastro-esofágicos não devem ser rotulados como apresentando dispepsia. A American Gastroenterology Association considera que estes pacientes devem ser definidos como apresentando doença do refluxo gastro-esofágico mesmo que apresentem endoscopia sem evidências de esofagite.

A dispepsia é denominada orgânica quando os sintomas relacionados ao aparelho digestivo alto são secundários às doenças orgânicas específicas, como a úlcera péptica, a pancreatite, a colelitíase, a neoplasia, entre outras doenças. Estes casos representam 25% dos casos de dispepsia. A dispepsia não ulcerosa é outro termo utilizado para dispepsia funcional, que é uma condição em que os pacientes apresentam sintomas do aparelho digestivo alto, com duração de mais de quatro semanas, e não relacionados à atividade física, que não são secundários a doenças orgânicas localizadas ou sistêmicas.

Considerando que o diagnóstico de dispepsia funcional depende da ausência de doença secundária que causa  os sintomas, portanto sendo um diagnóstico de exclusão, seria necessária a realização de exames subsidiários, mas considerando que a maioria dos quadros é realmente funcional, esta não é uma abordagem custo-efetiva, mesmo quando o quadro é aparentemente funcional e com a aplicação de questionários específicos para dispepsia, ainda assim uma margem de erro ocorre de 20 a 50% no seu diagnóstico. Uma abordagem que busca  excluir os sinais que aumentam a probabilidade de causas secundárias e a realização  de prova terapêutica inicial medicamentosa e observação da evolução parece ser a forma mais adequada de conduzir estes pacientes.

Uma dúvida da literatura é como rotular os pacientes com gastrite crônica,  processo inflamatório do estômago que pode ser originado por diferentes etiologias, mas a grande maioria dos pacientes que apresentam diagnóstico histológico de gastrite não apresentam sintomas, tornando difícil correlacionar os sintomas destes pacientes com achado histológico, de forma que as gastrites crônicas entram na definição de dispepsia funcional, principalmente porque o diagnóstico delas é histológico, não havendo um padrão endoscópico macroscópico que pudesse definir e correlacionar  achados histológicos e sensação de dispepsia.

Para caracterizar a dispepsia, é necessária a duração dos sintomas maior que quatro semanas e não estar relacionada à realização de exercícios físicos, pois estes pacientes podem apresentar outros diagnósticos diferenciais inclusive do ponto de vista cardiológico e de abordagem mais complexa.

 

A tabela abaixo classifica as síndromes dispépticas:

DISPEPSIA: qualquer sintoma relacionado ao trato digestivo alto, segundo o critério de Roma com a presença de um ou mais dos seguintes sintomas:

-plenitude pós-prandial

-saciedade precoce

-dor epigástrica ou sensação de queimação

 DISPEPSIA ORGÂNICA: sintomas  relacionados à presença de uma doença orgânica                   

DISPEPSIA NÃO ULCEROSA ou FUNCIONAL: sintomas do aparelho digestivo alto não relacionados às doenças orgânicas

TIPO ÚLCERA: predomina dor epigástrica

TIPO DISMOTILIDADE: predomina alteração de motilidade

INESPECÍFICA: predominam outros sintomas

 

Epidemiologia

Dispepsia é um diagnóstico frequente em todo o mundo, mas com prevalência extremamente variável, variando entre 30 a 40% dependendo da população estudada. Em estudo populacional foi verificado que a prevalência nos Estados Unidos da América gira em torno de cerca de 25% da população, que descreve dor epigástrica crônica ou recorrente na parte superior do abdome, sendo a dispepsia funcional o diagnóstico mais frequentemente encontrado. A incidência de novos casos é de cerca de 1% ao ano. A maioria dos dispépticos permanece sintomática  por longos períodos, apesar de períodos de remissão espontânea. O risco de desenvolver doença ulcerosa péptica, contudo não parece ser diferente da população assintomática. A prevalência é menor em idosos e parece ser discretamente maior no sexo masculino. A minoria dos pacientes procura atenção médica por esta queixa, representando apenas 25% dos pacientes em um estudo. Outro estudo demonstrou que entre pacientes com queixa compatível com dispepsia, 50 a 60% apresentam dispepsia funcional, 15 a 20% tem úlcera péptica, 20 a 30% doença de refluxo gastro-esofágico e 0,5 a 2% neoplasia gástrica, quando submetidos à endoscopia digestiva alta.

Alguns dados epidemiológicos são importantes, como a idade, pois patologias orgânicas são mais frequentemente causadoras de sintomas dispépticos em pacientes com idade de 50 anos de idade. A úlcera péptica e neoplasias gástricas são mais frequentes com o avançar da idade, o que não se observa com relação à dispepsia funcional e à doença do refluxo.

O tabagismo e o etilismo são fatores de risco tanto para sintomas dispépticos como para desenvolver doença péptica e neoplasias. A ingestão abusiva de sal e conservas também aumenta o risco de câncer gástrico.  O uso de medicamentos como anti-inflamatórios não esteroidais deve ser interrogado, pois é comum a incidência de úlcera péptica com o uso destas medicações anti-inflamatórios. Alguns pacientes não conseguem identificar estas medicações, assim perguntas específicas como se usa diclofenaco, AAS, naproxeno, tenoxicam entre outras medicações do gênero mais comuns.

 

Fisiopatologia

Os mecanismos que participam da origem dos sintomas na dispepsia funcional não são completamente conhecidos. Três fatores parecem ser os mais relevantes, que são os seguintes:

-anormalidades da motilidade gastrointestinal,

-aumento da sensibilidade a estímulos provenientes do lúmen do tubo digestivo,

- anormalidades psicológicas e emocionais.

 

Discutiremos a seguir estes e outros fatores envolvidos na fisiopatologia da dispepsia funcional:

-Dismotilidade: alterações da motilidade do aparelho gastrointestinal, em particular a motilidade antro-piloro-duodenal  provavelmente consiste na alteração mais estudada e demonstrada  em associação com a dispepsia, estudos realizados há algumas décadas têm demonstrado que pacientes com dispepsia funcional podem apresentar alterações da atividade mioelétrica gástrica, redução da contratilidade do antro, incoordenação antro-piloro-duodenal e anormalidades da atividade motora duodeno-jejunal. Estas alterações resultam em retardo do esvaziamento gástrico, que são demonstráveis em cerca de metade dos casos de dispepsia funcional em estudos mais antigos e em um estudo recente verificou-se que 30% dos pacientes apresentam alteração do esvaziamento gástrico. A diminuição da capacidade de acomodação do estômago também tem sido demonstrada de modo consistente em pacientes com dispepsia funcional, sobretudo naqueles em que predominam os sintomas de saciedade precoce e desconforto epigástrico pós-prandial, com estudos demonstrando em 40% dos pacientes ocorrem alterações da acomodação gástrica, com melhora demonstrada com o uso do sumatriptano desta acomodação e do sintoma de saciedade precoce. Embora a complacência gástrica não esteja particularmente alterada quando os pacientes são estudados em jejum, na pós-refeições muitos pacientes são incapazes de conseguir um relaxamento significativo da porção proximal do estômago, que é a principal porção envolvida em efetuar a acomodação do alimento ingerido, sendo este alimento acomodado principalmente nas porções distais do estômago com distensão acentuada de suas paredes, estimulando dois receptores gástricos específicos que são os receptores de pressão no fundo gástrico e os receptores sensíveis à distensão do fundo gástrico. Outros estudos demonstram também refluxo duodeno-gástrico e discinesias biliares nestes pacientes, mas muitos indíviduos sem queixas dispépticas apresentam estas mesmas anormalidades e não mostram concomitância de distúrbios de motilidade sempre concordantes com a sintomatologia dispéptica.  É provável que estes mecanismos apresentem complexidade e variabilidade individual mediada por secreções hormonais e ou alterações nervosas originadas do sistema nervoso central ou sistema nervoso entérico, com participação de mecanismos psicológicos. Um grande número de pacientes apresenta melhora com o uso de medicações pro-cinéticas, sugerindo que realmente estes mecanismos devam ter um papel importante na fisiopatologia desta síndrome. Alterações de motilidade ainda parecem estar associadas à sídrome do colon irritável.

-Hipersensibilidade visceral: a diminuição do limiar para o aparecimento de dor, ou aumento de sensibilidade a certos estímulos tem sido demonstrada em pacientes com dispepsia funcional, uma das constatações nestes pacientes é que os dispépticos funcionais podem apresentar sintomas, desencadeados pela distensão do estômago com volumes bem menores do que os que seriam necessários para causar qualquer tipo de sensação desagradável em pessoas sem dispepsia normais, ocorrendo de três a quatro vezes mais sintomas com o enchimento isobárico do estômago. É importante notar que esta anormalidade parece restringir-se às vias sensoriais viscerais, uma vez que as medidas de tolerância a estímulos aplicados em órgãos de inervação do tipo somático, como a pele ou a musculatura esquelética, não revelem anormalidades ou sugiram, mesmo que os pacientes funcionais pareçam  ter tolerância aumentada, e não esteja associada ainda com alterações em testes psicométricos específicos. Um estudo ainda mostrou sensibilidade aumentada também à infusão de ácido no duodeno. Esta anormalidade, por sua vez, é associada à alteração da motilidade duodenal, que resulta em deficiência da remoção do ácido infundido, o que pode mantém o estímulo para a ocorrência de sintomas.

-Alterações Psicológicas: há dados indicativos de maior prevalência, dentre os pacientes com dispepsia funcional, de antecedentes de dificuldades emocionais na infância ou na adolescência, de história prévia de abuso físico ou sexual e de anormalidades como ansiedade, depressão, hipocondria e neuroses. Quando se compara pacientes com dispepsia funcional e paciente com úlcera péptica verificamos maior número de eventos estressantes e maior intensidade de estresse nos dispépticos funcionais em comparação com os ulcerosos,  relacionando ainda a dispepsia funcional com maiores níveis de ansiedade, depressão e outras psicopatias.  Estes pacientes com dispepsia funcional apesar de ter em associação várias psicopatologias não parecem apresentar, entretanto perfil psicológico característico podendo apresentar perfil depressivo, ansioso ou neurótico, existindo grande dificuldade em caracterizar estas alterações como causa da dispepsia ou se são consequências secundárias da dispepsia. Ainda história de abuso sexual na infância parece relacionar-se com aparecimento de patologias funcionais do trato digestivo. 

Hipersecreção gástrica: a presença de sintomas muitas vezes similares aos da doença ulcerosa pépticas levanta a possibilidade de fisiopatologia semelhante com a doença ulcerosa, em particular em relação à hipersecreção de ácido e maior ativação de pepsina, porém diversos trabalhos mostraram que não há correlação de hipersecreção ácida e a dispepsia funcional e diferente da úlcera péptica, a maioria dos dispépticos funcionais não melhoram com a supressão ácida.

Infecção pelo Helicobacter pylori: a associação da bactéria com a doença ulcerosa péptica é inequívoca, o que levanta a hipótese de sua participação na dispepsia funcional. Ainda devemos acrescentar que a infecção pelo Helycobacter Pylori está invariavelmente associada a um quadro de gastrite. Vários estudos foram realizados para demonstrar esta associação, porém estes resultados ainda são conflitantes, os estudos que avaliaram papel da erradicação do H.pylori demonstraram benefício pequeno, mas ainda assim o consenso americano propõe a erradicação como forma de terapia nestes pacientes, mas a dificuldade de sua erradicação deve ser levada em conta nos países subdesenvolvidos.  No consenso europeu para manejo e tratamento da úlcera péptica, admite-se como uma proposta de abordagem da dispepsia a erradicação do Helicobacter pylori, naqueles dispépticos onde a bactéria tenha sido detectada (por processos não invasivos), quando sejam pacientes jovens sem sinais de alarme, antes mesmo de realizar endoscopia digestiva, devido ao potencial de cura de 15 a 30% de dispépticos que são na verdade ulcerosos, associado a mais um percentual de dispépticos funcionais que também apresentariam melhora com esta erradicação, evitando deste modo necessidade de outros exames na investigação da dispepsia. No Brasil, várias dificuldades limitam esta prática: não existe em nossa saúde pública disponibilidade fácil dos métodos não invasivos de detecção da bactéria, o custo e a complexidade do tratamento são altos e as cepas da bactéria apresentam alta taxa de resistência antimicrobiana. O consenso brasileiro sobre H.pylori não chegou a um acordo   quanto à realização ou não de pesquisa de H.pylori em pacientes dispépticos, com 40% dos participantes favoráveis a sua pesquisa e 60% contrários, quanto à erradicação do H.pylori na dispepsia funcional, 48% dos participantes do consenso sendo favoráveis e 52% contrários, portanto um assunto ainda de grande controvérsia em relação ao tema. Outro fato importante a se considerar é que a maior parte dos pacientes  infectados pelo Helicobacter pylori são assintomáticos e mesmo em países subdesenvolvidos onde esta infecção tem maior prevalência, não se observa maior prevalência de dispepsia.

-Irritantes da mucosa gastro-intestinal: fatores como tabagismo, alcool, café e os condimentos têm relação em estudos com a dispepsia. Alguns trabalhos demonstram que o tabagismo propicia resistência à cicatrização de úlceras e é associado com maior recidiva e que alterações do fluxo sanguíneo mucoso podem explicar estas observações. O uso de condimentos, como a pimenta parece apresentar ação similar aos anti-inflamatórios, com potencial de lesar a mucosa gastrointestina. Poucos trabalhos, deve-se acrescentar, documentaram uma relação causal isolada entre álcool, fumo, cafeína e dispepsia. Em relação aos anti-inflamatórios, por conceito, a dispepsia a eles associada é considerada orgânica e a primeira conduta em pacientes com sintomas dispépticos e uso destas medicações é a retirada desta medicação antes de outras intervenções terapêuticas medicamentosas, ou não, ou de procedimentos diagnósticos.

-Infecções: alguns quadros infecciosos não H.pylori na infância têm maior associação com aparecimento de síndrome dispéptica posteriormente.

A fisiopatologia da úlcera péptica, por sua vez, é mais bem compreendida apesar de também multifatorial, com alguns casos com hipercloridria, como na síndrome de Zolliger - Ellison, mastocitose, entre outras, quando a intensidade da agressão ácida é o principal fator determinante de lesão da mucosa. Um grande número de casos é associado  ao uso de anti-inflamatórios, pois estes medicamentos diminuem a produção de muco, bicarbonato e prostaglandinas, diminuem ainda a resistência da mucosa, facilitando o surgimento da lesão.

A infecção da mucosa de padrão gástrico pelo Helicobacter pylori pode ser determinada  em pacientes com predisposição genética para desenvolvimento de úlcera duodenal, uma disfunção da célula D do antro gástrico, que deixa de suprimir a função das células G, com hipergastrinemia e consequente metaplasia gástrica duodenal. A presença da bactéria nesta mucosa determinará uma inflamação crônica, mais especificamente uma antrite crônica, que facilitará a lesão ulcerosa no duodeno. Nestes pacientes com propensão à úlcera gástrica, a infecção da mucosa do estômago leva à pangastrite crônica que facilita a ulceração da mucosa. A infecção pelo H.pylori é o  determinante de maior  ocorrência de lesão mucosa neste tipo de úlcera, ocorrendo infecção por este agente em até 95% dos pacientes com úlcera duodenal.

A Doença do Refluxo Gastroesofágico está associada, por sua vez, com alterações de fatores funcionais e mecânicos principalmente na transição esofago-gástrica que dificultam o refluxo, ao potencial ácido do conteúdo do refluído gástrico, do poder tamponante da saliva e da capacidade de clareamento ácido do esôfago. Assim algumas doenças que afetam de maneira intensa a anatomia da região da cárdia e do esôfago distal como, por exemplo, a hérnia de hiato e a disfunção muscular do esôfago distal da dermatomiosite determinam um maior risco de doença de refluxo. A saliva, a motilidade e a capacidade de clareamento ácido do esôfago determinam, entretanto uma ação protetora contra o refluxo ácido do estômago, assim nem sempre a hérnia de hiato condiciona uma esofagite grave. Em geral, a maioria das pessoas apresentam episódios de refluxo, normalmente de curta duração, intensidade e em pequeno número. Em alguns pacientes devido ao aumento da intensidade, número de episódios, maior acidez gástrica e perda dos fatores de proteção esofágicos e salivares a pessoa tende a apresentar doença de refluxo. Diversas situações podem ainda modificar funcionalmente a transição esofago-gástrica e o clareamento ácido do esôfago, seja por diminuirem o tônus do esfíncter inferior do esôfago, seja porque modificar a motilidade esofágica, ou ainda por diminuirem a secreção salivar ou causar lesão direta da mucosa esofágica. Alguns medicamentos, tabagismo, alimentos gordurosos, predispõem ao aparecimento de doença do refluxo gastroesofágico.  Outras condições que diminuem o esvaziamento gástrico, funcionais ou orgânicas, definitivas (estenoses) ou transitórias (medicamentos) tendem a propiciar refluxo gastroesofágico porque aumentam o volume da secreção e a pressão intragástrica.

A relação do H.pylori com o refluxo gastroesofágico, por sua vez, não é bem estabelecida, alguns autores postulam que o H.pylori é um fator protetor contra a doença do refluxo gastroesofágico e apresentam como prova desta afirmação o aumento de incidência do câncer de esôfago, em particular do adenocarcinoma (que apresenta associação com o esôfago de Barret) após o ínicio da terapia de erradicação deste agente, porém a maioria dos autores consideram que não existe influência nem positiva ou negativa do H.pylori na doença do refluxo. O consenso brasileiro considera que o H.pylori não é causa e nem prejudica a evolução destes pacientes. Algumas doenças estão associadas com maior incidência de sintomas dispépticos incluindo alterações digestivas, endocrinológicas entre outras analizadas  na tabela abaixo.

 

 

Condições associadas  à Dispepsia

 

Digestivos

Não Digestivos

Medicamentos

Úlcera Péptica

Diabete Mellitus

Anti-inflamatórios

Refluxo-Gastroesofágico

Tireoidopatias

Antibióticos Orais

Doença Biliar

Hiperparatireoidismo

Digital

Gastrite e Duodenite

Alterações Eletrolíticas

Teofilina

Pancreatite

Isquemia Coronariana

 

Neoplasia

Colagenoses

 

Disabsorção

Síndrome de Cushing

 

Doenças infiltrativas

 

 

 

Adapatado com modificações de Misiewicz, JJ: Dyspepsia, in Gastrointestinal Disease, 5a. ed, MH Sleisenger and JS Fordtran (eds) Philadelphia, Saunders 1993.

 

Quadro Clínico

A história, o exame físico e o uso criterioso e apropriado dos exames complementares levam ao diagnóstico da dispepsia de forma correta na grande maioria dos casos. Existem três formas principais de dispepsia que são os seguintes:

-Dispepsia do tipo ulcerosa ("ulcer-like dyspepsia"), as queixas de dor epigástrica assemelham-se às da úlcera péptica, muitas vezes com periodicidade, com melhora ainda com ingestão de substâncias alcalinas. A dor localiza-se no epigástrio, podendo irradiar para outros locais e geralmente não é de forte intensidade. Pode apresentar caráter noturno (clocking), ritmo associado com a alimentação (melhorar ou piorar com a ingestão de alimentos), embora estes dados não sejam suficientes para diferenciar a úlcera péptica da dispepsia funcional. A presença de vômitos frequentes, perda de peso ou disfagia são características de gravidade em doença orgânica e exigem investigação diagnóstica precoce. Pacientes com maior idade apresentam com mais  frequência doença orgânica. Dor de forte intensidade em hipocôndrio direito irradiada para dorso ou ombro tem alto valor preditivo para colecistopatia (sinal de Kerr). Sintomas dispépticos associados com sintomas digestivos baixos (evacuação ou eliminação de gases) sugerem o diagnóstico de doenças intestinais.

-Dispepsia tipo Dismotilidade: predominância de sintomas sugestivos de alteração de motilidade, como a plenitude epigástrica, empachamento, saciedade precoce, náuseas (principalmente matinal) e vômitos, sendo a dor de menor intensidade, referida frequentemente como desconforto ou sensaçao de peso abdominal e, ocasionalmente, náuseas, sintomas que sugerem que ocorram alterações da motilidade gastroduodenal.

-Dispepsia tipo Inespecífica: o paciente deste grupo refere sintomas vagos, mas mantendo relação com a alimentação e com características de sintomas digestivos altos, por exemplo, eructação ou aerofagia. Ainda em alguns casos, sintomas semelhantes aos da úlcera péptica superpõe-se aos que sugerem alterações motoras, sem haver predominância clara de um ou outro grupo de manifestações. Isto também caracteriza estes pacientes, também como apresentando o tipo inespecífico da dispepsia funcional.

Ao avaliar pacientes com suspeita de dispepsia é importante não considerar certos sintomas relacionados ao trato digestivo baixo como tenesmo, urgência fecal, cólica intestinal, meteorismo entre outros sintomas como parte de um quadro dispéptico. Algumas expressões regionais podem ainda serem interpretadas pelos médicos como referência a quadro dispéptico, por exemplo, o termo “Gastura” tem como significado mais comum a sensação de aflição, angústia e não queimação gástrica. Ainda deve ser acrescentado que em pacientes com a chamada dispepsia tipo dismotilidade e dispepsia inespecífica é necessário excluir causas orgânicas de doença, não digestivas como doenças metabólicas, distúrbios hidroeletrolíticos, endocrinopatias, infecções crônicas, doenças do tecido conectivo, distúrbios do humor, entre outros, que podem mimetizar quadros dispépticos. Alguns autores não consideram o terceiro grupo dos pacientes com dispepsia de padrão inespecífico, considerando, entretanto outro grupo com predominância de queixa de pirose retroesternal, mas a tendência é a de classificar estes casos, que apresentam sintomas semelhantes aos da esofagite de refluxo ("reflux-like dyspepsia"), como portadores de doença funcional do esôfago, ou como doença do refluxo gastroesofágico, pois são pacientes que em mais de 50% dos casos apresentam endoscopia digestiva alta negativa, o que é muito significativo, pois este exame é o padrão-ouro para avaliação complementar de pacientes com dispepsia, ainda assim estes pacientes apresentam a doença. Ainda em muitos casos, sintomas semelhantes aos da úlcera péptica superpõe-se aos que sugerem alterações motoras, sem haver predominância clara de um ou outro grupo de manifestações. Isto caracteriza o tipo inespecífico da dispepsia funcional.

Apesar desta classificação em subgrupos dos pacientes, não necessariamente facilitam abordagens diagnóstica ou terapêutica, apenas é importante salientar novamente que em quadros sugestivos de dispepsia tipo refluxo faremos o diagnóstico de Doença de Refluxo Gastroesofágico.

Do ponto de vista sindrômico, os dados de história e exame físico não permitem diagnóstico clínico em mais de 50% das vezes para as principais doenças digestivas que se caracterizam com dispepsia, em especial a úlcera péptica, a doença de refluxo e a dispepsia funcional. Assim na caracterização de dispepsia é importante tentar identificar sinais ou sintomas que possam indicar gravidade e maior probabilidade de presença de doença orgânica, o que é denominado pela literatura de sinais de alarme.

Na presença destes sintomas de alarme, está indicada investigação diagnóstica com exames complemetares, dos quais se deve detacar a endoscopia digestiva alta. Portanto, emagrecimento, sangramento digestivo, anorexia, icterícia, visceromegalia, anemia e outros, são sinais ou sintomas que sempre vão exigir investigação diagnóstica com exames complementares.

 

Abordagem diagnóstica

A abordagem do paciente com dispepsia pressupõe avaliação econômica, pois os recursos não são abundantes e exames desnecessários devem ser evitados. O exame clínico e a história em poucas ocasiões ajudam a distinguir que pacientes necessitam de investigação complementar.

São dados importantes na história destes pacientes a caracterização do tipo de dispepsia, que já foram descritos no capítulo.  Achados alterados no exame físico como massa palpável também são indicativos de causa orgânica.

A idade, conforme comentado, é um fator que aumenta a chance de doença orgânica. Em pacientes com menos de 55 anos de idade, não são necessários  exames complementares desde que o paciente não apresente sinais de alarme, indica-se exames complementares a partir desta faixa etária, devem ser considerados exames complementares, principalmente endoscopia, a partir dos 55 anos de idade, em outros pacientes a realização de prova terapêutica com antiácidos em dose baixa, associado a pró-cinético como tratamento adequado para estes pacientes com menos de 55 anos sem sinais de alarme.  Se em quatro  semanas o paciente apresentar melhora da sintomatologia, pode manter-se o tratamento, em média por quatro semanas, mas até máximo de 8 a 12 semanas.

Caso o paciente não apresente melhora em duas semanas, ou se com a suspensão da terapêutica medicamentosa os sintomas recidivarem, deve-se iniciar a investigação armada.

 

Os sinais de alarme que indicam a investigação complementar são os seguintes:

-Disfagia ou odinofagia;

-Icterícia;

-Sangramento evidenciado por hematêmese ou outra forma;

-Anemia;

-Deficiência de ferro inexplicada;

-Perda de peso não itencional;

-Massa palpável e linfadenopatia;

-História familiar de câncer gástrico;

-Cirurgia gástrica prévia;

-História familiar de câncer gástrico;

-Vômitos persistentes.

 

Estes sintomas podem ser resumidos na sigla DISPE (disfagia, icterícia sangramento, perda de peso, alteração de exame físico).

Outra opção, que é mais aceita nos Estados Unidos, é em pacientes com menos de 55 anos de idade e sem sinais de alarme, realizar o tratamento empírico para Helycobacter pylori. Em 1985, o American College of Physicians passou a considerar a possibilidade da realização de terapia empírica para Helycobacter em pacientes com dispepsia sem causa orgânica evidente e menos de 55 anos de idade, o problema com esta abordagem é que grande número de pacientes serão tratados para o agente sem apresentarem infecção, por isto a maior parte da literatura favorece o uso de teste não invasivo para pesquisa de Helycobacter pylori, em nosso meio não é recomendado esta abordagem. As recomendações da Associação Americana de Gastroenterologia preferem esta abordagem em locais com alta prevalência de Helycobacter pylori.

Uma terceira abordagem é a realização de endoscopia digestive alta em todos os pacientes com sintomas dispépticos, neste caso pode-se ainda realizar pesquisa opcional de Helycobacter pylori através do exame endoscópico através da histologia. Outros exames que podem ser eventualmente considerados são exames protoparasitológicos de fezes seriados, hemograma, bioquímica, pesquisa de sangue oculto nas fezes e ultrassonografia de abdomem (descartar cólica biliar) em casos em que ainda houver aguma dúvida diagnóstica, em nosso meio existe um número aumentado de parasitoses algumas como a giardíase e ancilostomíase, podem evoluir com sintomas dispépticos e até com anemia ferropriva, assim este exame muitas vezes é realizado nestes pacientes.

 

Tratamento

A primeira conduta em pacientes com dispepsia é verificar quais medicações o paciente está usando, em caso de uso de anti-inflamatórios não esteroidais, a simples descontinuação destes pode ser suficiente para melhora dos pacientes. Uma das mais importantes abordagens é explicar da benignidade da condição, cafeína e abstinência ao cigarro e álcool podem melhorar os sintomas, mas o benefício de maiores restrições dietéticas é questionável e o paciente deve ser orientado a evitar alimentos que em ocasiões anteriores causaram sintomas dispépticos para estes pacientes.

Caso decidida a abordagem de tratamento empírico, conforme já comentado pode-se iniciar com anti-ácido ou bloqueador H2 associados ou não a medicações  pró-cinéticas. Os estudos demonstram superioridade tanto dos pró-cinéticos quanto dos bloqueadores H2 em relação ao placebo, mas com resultados um pouco superiores com os pró-cinéticos, já os bloqueadores de bomba de prótons, apesar de superiores em úlcera péptica em comparação outras medicações,  apresentaram benefício inferior e apenas marginal em relação ao placebo nestes pacientes.

A preferência atualmente em relação à terapia secretora é por bloqueadores de bombas de prótons, usados uma vez ao dia (sem benefícios adicionais com duas doses ao dia). A terapia empírica é utilizada por quatro a oito semanas, se em quatro semanas o paciente apresentar melhora da sintomatologia, deve-se manter o tratamento entre quatro a no máximo de 12 semanas. Como já discutido, caso o paciente não apresente melhora em duas semanas, ou se com a suspensão da terapêutica medicamentosa os sintomas retornarem, deve-se iniciar a investigação armada, em pacientes com endoscopia digestiva alta normal e sem explicação alternativa para os exames consideramos que apresentam diagnóstico de dispepsia funcional.  O tratamento deve usar dose plena inibidores de bomba de prótons: omeprazol 20mg/dia, lanzoprazol 30mg/dia, pantoprazol 40mg/dia ou rabeprazol 20mg/dia. Pacientes com lesões agudas da mucosa gástrica tendem a ser superficiais e podem cicatrizar rapidamente. O uso de inibidor de bomba de prótons é associado com cicatrização de mais de 90% das úlceras pépticas, também a doença do refluxo pode apresentar importante melhora com estas medicações, mesmo a presença do H. pylori poderá ser mascarada na vigência do uso de inibidores de bomba de prótons, podendo apresentar resultados falso-negativos.

Em pacientes sem resposta, a erradicação do Helycobacter pylori e ao uso de bloqueadores de bombas de prótons por oito semanas, recomenda-se a utilização de antidepressivos tríciclicos iniciando em pequena dose (amitriptilina 10 mg à noite ou desipramina 25 mg ao dia ou tradozona 25 mg ao dia), a dose inicial pode ser aumentada em até duas a três vezes, este teste terapêutico é mantido por 8 a 12 semanas, caso não haja resposta este pode ser desontinuada.

Em pacientes sem resposta, a terapia antissecretora e antidepressivos podem ser utilizados os pró-cinéticos como a metoclorpramida 5 a 10 mg duas a três vezes ao dia, este teste pode ser mantido por quatro semanas.

Uso de medicina alternativa e complementos alimentares está sendo avaliado nestes pacientes, mas a evidência de benefício é insuficiente  até o momento e não pode ser realizada nenhuma recmendação até o momento.

 

Referências

Talley NJ, American Gastroenterological Association. American Gastroenterological Association medical position statement: evaluation of dyspepsia. Gastroenterology 2005; 129:1753.

 

Tack J, Talley NJ, Camilleri M, et al. Functional gastroduodenal disorders. Gastroenterology 2006; 130:1466.

 

Malfertheiner P, Megraud F, O'Morain CA, et al. Management of Helicobacter pylori infection--the Maastricht IV/ Florence Consensus Report. Gut 2012; 61:646.

 

Goodwin RD, Cowles RA, Galea S, Jacobi F. Gastritis and mental disorders. J Psychiatr Res 2013; 47:128.

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