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Fasceíte necrotizante

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 28/10/2016

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Fasceíte necrotizante

 

As infecções de pele podem classificadas em três categorias dependendo de sua extensão e profundidade.

-Infecções de derme e hipoderme: São as celulites e erisipela bacterianas simples; essas infecções envolvem a hipoderme até uma profundidade variável, sem necrose ou dano a tecidos musculares.

-Infecções de derme e hipoderme com necrose: São as infecções cutâneas como as celulites, mas não ocorre necrose dos tecidos conjuntivos e adiposos, nem lesões musculares profundas.

-Fasceíte necrotizante: Infecção muscular com necrose que envolve e estende-se além da fáscia periférica profunda.

 

As celulites e erisipelas apresentam resposta satisfatória com tratamento com antibioticoterapia isoladamente; porém, as infecções com necrose necessitam de intervenções cirúrgicas como debridamento nas celulites com necrose de pele e intervenções mais extensas como as necessárias na Fasceíte necrotizante. Essas infecções são divididas em dois grupos principais: as causadas por uma infecção por flora polimicrobiana, e um segundo grupo causado por infecção por estreptococos do grupo A.

 

 

Definição e epidemiologia

 

 

Fasceíte necrotizante é uma infecção bacteriana rapidamente progressiva e com potencial letal elevado. A infecção é rara, e não existem dados confiáveis na literatura brasileira para definir sua incidência; mesmo a literatura norte-americana e a europeia têm dados pouco confiáveis, mas acredita-se que ocorram cerca de 1000 casos/ano nos Estados Unidos e 500 casos/ano no Reino Unido. Outras estatísticas estimam 3,5 casos a cada 100.000 pessoas ao ano. Dados nacionais infelizmente não estão disponíveis, e com frequência este é um diagnóstico realizado em necropsia.

A infecção usualmente se inicia na fáscia superficial, e posteriormente os tecidos moles profundos são envolvidos. O diagnóstico é difícil, e o limiar para suspeição deve ser baixo, pois vários casos têm diagnóstico apenas após o óbito. Em pacientes não tratados, o quadro evolui com sepse grave e refratária à antibioticoterapia; mesmo com o tratamento cirúrgico, a mortalidade se situa entre 20 a 40%.

Diversos microorganismos estão associados com o quadro, mas os estreptococos são os mais comumente implicados – em particular, o Streptococos pyogens, e menos comumente os estreptococos do tipo B. Outros agentes infecciosos relevantes incluem o Stafilococos aureus e agentes anaeróbios; em algumas séries, a flora microbiana chega a ser encontrada em 40% dos casos. Devido a essa alta incidência de infecção polimicrobiana, as infecções necrotizantes do tecido mole são divididas em:

1-Tipo I

A infecção é polimicrobiana, e pelo menos um agente anaeróbio está envolvido (mais comumente Bacteroides, Clostridium, Peptoestreptocos) associado com pelo menos um aeróbio facultativo, sendo entre eles o mais comum o estreptococo do grupo A, e também enterobactérias como E.coli, Enterobacter e Klebsiella. Raramente Pseudomonas estão envolvidas neste quadro infeccioso.

2-Tipo II

Causadas por estreptococos do grupo A e também denominada de gangrena estreptocócica. Outras causas são a Aeromonas hydrophyla associada a traumas em ambiente aquático e Vibrio vulfinica. Ocasionalmente pode ser causada por infecções por S.aureus e outros estreptococos beta-hemolíticos.

 

Quando a infecção é causada por uma população mista de agentes anaeróbios e envolve região perineal, pode ocorrer a chamada síndrome de Fournier, em que ocorre quadro de gangrena escrotal. Quando se dá o envolvimento por Clostridium, pode ocorrer formação de gás em tecido muscular, caracterizando a chamada gangrena gasosa comum, mionecrose clostridial; a mionecrose é um quadro mais raro que a Fasceíte necrotizante.

Fatores de risco para o desenvolvimento de Fasceíte necrotizante identificados em estudos incluem diabetes melito, hepatite C, neoplasias, uso de drogas injetáveis e uso prolongado de anti-inflamatórios não esteroidais.

 

Fisiopatologia

 

O envolvimento inicial é limitado à fáscia superficial; ocorre posteriormente rápida extensão secundária à trombose de pequenos vasos sanguíneos da fáscia, e o processo necrótico se alastra para as fáscias profundas. O tratamento antibacteriano é prejudicado, pois os tecidos moles e músculos servem como barreira à penetração dos antimicrobianos. O baixo suprimento sanguíneo local facilita o alastramento do quadro infeccioso.

A Fasceíte necrotizante pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é rara em crianças; um estudo demonstrou que a mediana de idade nestes pacientes é entre 40 e 50 anos de idade. A condição está associada com internação hospitalar prolongada, procedimentos cirúrgicos, história de trauma, uso de drogas injetáveis, varicela em crianças, e internação em unidade de terapia intensiva (UTI). O risco aumenta ainda quando há comorbidades associadas – particularmente em crianças não se encontram comorbidades na maioria dos casos, e em adultos a ausência de comorbidade ou de trauma ocorre em mais de 25% dos casos.

 

Manifestações clínicas e diagnóstico

 

As manifestações não são específicas, de forma que o diagnóstico pode ser difícil. Na maioria dos casos, a manifestação inicial é de alterações cutâneas compatíveis com infecção local ou febre; usualmente a febre é associada com dor muscular. O paciente pode apresentar curso rápido e fulminante com desenvolvimento de choque séptico em horas a dias; porém, em geral a evolução é consideravelmente mais lenta, particularmente em pacientes idosos ou com diabetes. As alterações cutâneas podem mimetizar hematomas, celulites, erisipelas, artrite séptica ou trombose venosa. A descrição clássica de "bolhas hemorrágicas", creptação e necrose tecidual não são frequentes, e só ocorrem com pelo menos cinco dias de infecção estabelecida. Em pacientes com edema local significativo, podem evoluir com síndrome compartimental.

Linfangite e linfadenite satélite são frequentes, mas podem não aparecer. Edema do membro envolvido ocorre em cerca de 80% dos pacientes, usualmente com hipersensibilidade significativa e eritema e lesões cutâneas em cerca de metade dos casos. As lesões cutâneas inicialmente são eritematosas e apresentam partes azul acizentadas, e posteriormente podem evoluir com a formação de bolhas, até para quadros de gangrena.

O paciente pode-se manter em estado geral relativamente bom até as fases avançadas da doença, e muitas vezes apresentar apenas dor, sem febre e sem outras alterações sistêmicas. A dor costuma ser intensa e desproporcional aos sinais flogísticos encontrados. Com a evolução do quadro infeccioso, pode ocorrer perda da inervação local, com alterações de sensibilidade; a hipersensibilidade local é um achado sugestivo, porém inespecífico. Os locais mais comumente acometidos são parede abdominal, extremidades, pelve e parede torácica, mas outras regiões podem ser acometidas.

Os pacientes com quadro séptico podem desenvolver febre –- usualmente com temperatura entre 38,5 e 40 graus, taquicardia e toxicidade sistêmica; outros sintomas incluem mialgias, diarreia, mal-estar e anorexia.

O diagnóstico de Fasceíte necrotizante depende dos seguintes critérios:

-achado de biópsia;

-achado intraoperatório de fáscias com alteração de cor e necrosada com fácil ruptura de tecidos com sonda;

-resposta inadequada de tratamento antibiótico para infecções cutâneas.

 

 

Exames complementares

 

Os exames complementares não são diagnósticos na Fasceíte necrotizante, mas marcadores inflamatórios costumam estar alterados, e a proteína C reativa costuma estar significativamente elevada, mesmo nos primeiros dias do quadro; leucocitose costuma ocorrer e hemoculturas devem ser colhidas em todos os pacientes. A presença de hiponatremia em pacientes com quadro séptico é sugestiva de infecção de tecidos moles, e pode ser uma pista diagnóstica. A dosagem de enzimas musculares deve ser realizada em todos os pacientes; níveis aumentados sugerem necrose muscular e implicam risco aumentado de desenvolvimento de disfunção renal.

As culturas são indicadas e hemoculturas são positivas em mais de 60% dos casos, principalmente em pacientes com flora microbiana.

A radiografia simples pode mostrar espessamento e hiperdensidade relativa dos tecidos moles; e gás é raro em casos visíveis, mas é um exame que costuma pouco auxiliar no diagnóstico.

A tomografia computadorizada (TC) mostra edema das fáscias e gás entre os tecidos musculares; a sensibilidade do espessamento assimétrico das fáscias ocorre em 80% dos casos, e a presença de gás em tecidos musculares aparece em pouco mais de 50% dos casos. O exame é sensível, com sensibilidade próxima a 100% dos casos, mas os achados são pouco específicos. Os pacientes podem ainda ter insuficiência renal como complicação do quadro infeccioso, o que contraindica o uso de contraste e prejudica a performance do exame.

A ressonância nuclear magnética (RNM), que é um método também sensível, documenta com maiores pormenores as lesões dos tecidos moles e permite avaliar a sua distribuição melhor que a TC; porém, tem menos sensibilidade para detectar gás nos tecidos musculares e nas fáscias. A principal anormalidade encontrada nestes pacientes é o espessamento das fáscias profundas, com hipersinal em T2. As lesões podem ser diferenciadas das encontradas na piomiosite pelo predomínio das lesões em fáscias comparadas às lesões musculares predominantes encontradas na piomiosite. Podem ainda ser encontrados abscessos e bolhas de gás. A sensibilidade da RNM em pequenas séries chegou a 100%; o exame, entretanto, é considerado por alguns como hipersensível, e seus achados nem sempre podem diferenciar a Fasceíte necrotizante de outras infecções, como a celulite necrotizante.

A ultrassonografia é um exame de menor utilidade nestes pacientes, mas eventualmente pode ser diagnóstica. Embora sua realização dependa de treinamento altamente especializado, o benefício da ultrassonografia parece ser maior em pacientes da faixa etária pediátrica, pois os tecidos moles são menos espessos e permitem uma avaliação mais precisa dos planos profundos.

O esteio diagnóstico continua sendo, mesmo nos dias atuais, a exploração cirúrgica. A decisão de exploração cirúrgica dos tecidos moles deve idealmente ser tomada precocemente, e a extensão da incisão deve ser de quantidade de pele suficiente que permita a exploração de tecidos moles. Se durante a exploração for encontrada fáscia necrótica e liquefação de tecidos, a ressecção deve ser continuada até que se atinjam novamente tecidos saudáveis.

 

Tratamento

 

O debridamento cirúrgico deve ser precoce e agressivo. Em pacientes sépticos, a intervenção cirúrgica não leva à melhora imediata, mas a estabilização do quadro é esperada após algumas horas, embora o paciente ainda permaneça por dias ainda em UTI. Pacientes com importante dor muscular, com aumento de enzimas musculares e quadro febril e séptico têm indicação de exploração cirúrgica, mesmo se os exames de imagem não forem claros em relação à presença de Fasceíte necrotizante.

A antibioticoterapia de amplo espectro é indicada, e deve ser adaptada aos resultados de cultura; a combinação de carbapenêmico ou outro beta lactâmico com beta lactamase e clindamicina são uma boa opção. A clindamicina tem um papel adicional por seu papel bacteriostático e seu uso associado à inibição de antígenos pelos estreptococos com menor evolução para choque. Em pacientes graves, alguns autores indicam também cobertura para estafilococos meticilino resistentes com Vancomicina; essa cobertura antibiótica pode ser retirada conforme os resultados de cultura. Como a infecção é principalmente por estreptococos, muitas vezes estes são suscetíveis à penicilina cristalina ou oxacilina, que poderão substituir os antibióticos de maior espectro comumente utilizados. A terapia deve ser adaptada em relação ao diagnóstico etiológico microbiológico.

A gamaglobulina teve efeito benéfico em um estudo pequeno e pode ser utilizada; a dose recomendada é de 1g por Kg no primeiro dia, e 0,5g por Kg no segundo e terceiro dia.

A utilidade da terapia hiperbárica nestes pacientes é discutível. Uma revisão de 54 pacientes com Fasceíte necrotizante de tronco demonstrou que, nos 30 pacientes tratados com câmara hiperbárica, houve nove mortes, ou seja 30% da amostra, e 10 mortes ocorreram nos 24 pacientes com tratamento convencional, ou seja 42% da amostra. Essa diferença não é estatisticamente significante, e um maior número de intervenções cirúrgicas teve de ser realizado no grupo submetido à terapia hiperbárica. Não houve diferenças entre os dois grupos quanto ao tempo de internação hospitalar, à permanência em UTI, à duração da antibioticoterapia. Em outro estudo observacional com 29 pacientes, 12 receberam apenas antibioticoterapia e realizaram debridamento, e 19 tratamento convencional e terapia hiperbárica. A mortalidade foi de 66% no grupo com terapia convencional, e 23% no grupo com terapia hiperbárica; essa diferença é significativa estatisticamente. Além disso, cerca de duas intervenções cirúrgicas com debridamento ocorreram ao menos a cada paciente no grupo de terapia hiperbárica. Esses resultados não podem ser atribuídos a diferenças de gravidade entre os dois grupos, pois o grupo submetido à terapia hiperbárica era inicialmente mais grave. Os autores deste estudo sugerem que a terapia com câmara hiperbárica deveria ser indicada a todos os pacientes com Fasceíte necrotizante; porém, esta ainda é uma indicação controversa.

 

 

Referências:

 

1-Sultan H et al. Necrotizingfasciitis. BMJ 2012;345:e4274

2-Malguem J et al. Necrotizing fasciitis: Contributions and limitations of diagnostic imaging. Joint Bone Spines 2012.

3-Naya DA, Dellinger EP.Necrotizing soft-tissue infection: diagnosis and managemet.ClinInfectDiseases 2007; 44: 705.

 

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