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Intoxicação por Ferro

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 01/11/2017

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Os suplementos de ferro (Fe) são amplamente disponíveis para as pessoas em geral. No caso de crianças pequenas e mulheres jovens, a intoxicação por Fe é bastante comum, sobretudo em crianças pequenas - são, aproximadamente, 16 mil casos por ano em crianças com menos de 6 anos de idade nos EUA, sendo a maioria com exposição acidental.

As crianças tornam-se suscetíveis à ingestão dos suplementos de Fe devido à atratividade da cor brilhante e ao revestimento de açúcar dos comprimidos, bem como à sua distribuição inicial em frascos não resistentes a essa classe de público. A epidemiologia das intoxicações por Fe intencionais demonstram que a maioria dos casos envolve mulheres em idade fértil com média de idade de 20 anos, sendo gestantes e mulheres em puerpério precoce com maior risco devido a maior necessidade de Fe e ao estresse associado a essas condições.

 

Farmacologia

 

Os depósitos do Fe corporal total medem, aproximadamente, 4g em adultos, variando entre 2 e 6g, com a quantidade de Fe total nas mulheres maior do que nos homens. Cerca de dois terços do Fe corporal são incorporados na hemoglobina, e o restante é encontrado em outras proteínas contendo Fe, como a mioglobina, o citocromos e outras enzimas e cofatores, ou é armazenado como ferritina. A ingestão diária recomendada de Fe é de cerca de 8mg em homens adultos, crianças e mulheres não menstruadas, 18mg em mulheres menstruadas e 27mg em gestantes.

O excesso de Fe é tóxico, de modo que o organismo utiliza vários mecanismos para manter a homeostase do Fe - entre eles, a ligação do Fe às proteínas séricas, o armazenamento intracelular e, o mais importante, a regulação da absorção do trato gastrintestinal. A biodisponibilidade oral do Fe depende da formulação ingerida. O Fe inorgânico tem uma biodisponibilidade menor que 10%, na formulação de Fe ferroso, sendo melhor absorvido na formulação de Fe férrico (Fe3 +). O sulfato ferroso apresenta 20% de Fe elementar, enquanto o gluconato ferroso possui 12% e o fumarato, 33%.

A maioria do Fe na dieta está na forma férrica sendo quelado pelo heme. Após a ingestão, o Fe férrico é separado do heme e reduzido a Fe ferroso pela enzima ferrorredutase. O Fe quelatado, tal como o encontrado na carne, é mais facilmente absorvido do que o Fe em suas preparações iônicas.

O Fe ferroso é transportado para dentro dos enterócitos por um transportador de membrana protônico. Dentro do enterócito, o Fe ferroso é oxidado em Fe férrico. A transferrina, uma proteína sérica, serve como um carreador do Fe e move o Fe férrico dos enterócitos para a circulação, transportando o Fe através do corpo. O Fe é armazenado no corpo sob a forma de ferritina. A ferritina também pode ser incorporada por fagolisossomos para formar grânulos de hemossiderina.

Em adultos, 0,5 a 1g de Fe elementar é armazenado como ferritina e hemossiderina, sobretudo na medula óssea, no baço e no fígado. Na deficiência de Fe, este é mobilizado a partir de ferritina e transportado via transferrina para as células hematopoiéticas no baço e na medula óssea. Em condições normais, o Fe livre, ou não ligado a proteínas, não existe em circulação e, essencialmente, todo o Fe no plasma circulante está ligado à transferrina.

Não há mecanismo fisiológico para a remoção do Fe, uma vez que ele entra no corpo. A regulação da captação de Fe gastrintestinal e a limitação da absorção por desprendimento de células mucosas contendo excesso de Fe são os principais mecanismos para manter as concentrações fisiológicas de Fe estáveis.

 

Fisiopatologia

 

O Fe é potencialmente tóxico a diversas reações em nosso organismo, sendo um potente catalisador para a produção de oxidantes, como radicais livres. O Fe é um irritante direto do trato gastrintestinal, causando necrose de mucosa, provocando vômitos, diarreia, dor abdominal, ulceração da mucosa e sangramento logo após uma ingestão significativa. À medida que a superfície da mucosa é lesada, a barreira reguladora dos enterócitos é comprometida e o Fe livre passa sem impedimento para o sangue, tornando-se sistêmico.

O Fe livre pode aumentar a permeabilidade capilar, causar vasodilatação direta, inibir proteases séricas como a trombina e interferir em processos celulares críticos como o ciclo de Krebs. O Fe entra na mitocôndria, onde inibe a fosforilação oxidativa por interromper a cadeia de transporte de elétrons, o que resulta em acidose metabólica com um lactato elevado. A produção de radicais hidroxila tóxicos, a indução da peroxidação lipídica da membrana, a liberação de íons hidrogênio da redução do Fe ferroso e a hipotensão contribuem para a acidose metabólica observada com a toxicidade aguda do Fe.

A hepatotoxicidade na intoxicação pelo Fe ocorre quando o suprimento sanguíneo portal fornece uma grande quantidade de Fe ao fígado. As disfunções miocárdicas e vasculares resultam da vasodilatação, do efeito ionotrópico negativo e da deposição direta de Fe do miocárdio. A quantidade de Fe elementar ingerido correlaciona-se com o potencial de toxicidade.

Os efeitos tóxicos são relatados após doses orais tão baixas como 10 ou 20mg/kg de Fe elementar, mas a maioria dos pacientes com ingestão menor que 20mg/Kg é assintomática. Em geral, a toxicidade moderada ocorre em doses de 20 a 60 mg/kg de Fe elementar, embora alguns casos ainda possam ser assintomáticos, e a toxicidade grave pode ser esperada após a ingestão de >60mg/kg de Fe elementar, inclusive com potencial letal.

A formulação mais comumente prescrita - um comprimido de sulfato ferroso de 325mg - contém 65mg de Fe elementar. O envenenamento por cloreto férrico pode ocorrer com inalação ocupacional, ingestão acidental por mal-estar e ingestão suicida. As fontes quelatadas de Fe suplementar são menos tóxicas do que o Fe não clivado, porque o ligante limita o Fe na participação de reações de redução.

 

Manifestações Clínicas

 

Tradicionalmente, descrevem-se cinco estádios de toxicidade clínica, embora, em termos mais práticos, se possa considerar que a toxicidade aguda do Fe se manifesta em dois estádios clínicos: toxicidade local do tubo gastrintestinal e toxicidade sistêmica.

A fase inicial ou 1 da intoxicação pelo Fe ocorre de 30 minutos a 6 horas da ingestão e é caracterizada por dor abdominal, vômito, diarreia e, eventualmente, hematêmese. O Fe é irritante e corrosivo para o trato gastrintestinal e, em geral, induz o vômito nas primeiras horas após a ingestão. O vômito é o sinal clínico mais consistentemente associado à toxicidade aguda de Fe. Os doentes com sintomas de irritação gástrica podem se recuperar durante várias horas ou progredir para a toxicidade sistêmica. A ausência de sintomas gastrintestinais dentro de 6 horas da ingestão exclui uma ingestão significativa de Fe.

O estágio 2, ou “latente”, nem sempre ocorre; essa fase é de 6 a 24 horas após a ingestão. Os pacientes podem apresentar melhora dos sintomas gastrintestinais, tranquilizando, falsamente, o médico. No entanto, essa não é uma fase de recuperação. Os indivíduos com toxicidade significativa têm deterioração sistêmica progressiva devido à perda de volume e ao agravamento da acidose metabólica, apesar da ausência de sintomas gastrintestinais. Em casos de intoxicação leve, a resolução dos achados gastrintestinais pode sinalizar o fim dos sintomas.

A fase 3 caracteriza-se pela toxicidade sistêmica da perturbação do metabolismo celular induzida pelo Fe, com choque, toxicidade sistêmica e acidose lática, ocorrendo de 6 a 72 horas após a ingestão. A coagulopatia induzida pelo Fe pode piorar o sangramento e a hipovolemia, sendo, no início, relacionada com alterações na geração de trombina; posteriormente, a disfunção hepática pode piorar a coagulopatia.

Os doentes apresentam perda de volume para terceiro espaço com choque hipovolêmico, e as alterações de permeabilidade e tônus vascular podem levar a um choque distributivo e, finalmente, o choque cardiogênico pode ocorrer de 24 a 48 horas após a ingestão. Os pacientes podem apresentar acidose metabólica severa nessa fase.

A fase 4, a fase hepática, desenvolve-se de 12 a 96 horas após a ingestão. É resultado da captação de Fe pelo sistema retículo-endotelial com peroxidação lipídica local; manifesta-se como elevação dos níveis de aminotransferases e pode progredir para insuficiência hepática. Os pacientes evoluem com necrose hepática com potencial letal.

O estágio 5 refere-se a sequelas retardadas de obstrução intestinal devido à cicatrização das lesões gastrintestinais, incluindo obstrução da saída gástrica secundária aos efeitos corrosivos do Fe sobre a mucosa pilórica. Essas sequelas são raras e ocorrem de 2 a 8 semanas após a intoxicação.

 

Diagnóstico

 

Os exames laboratoriais devem incluir hemograma completo, eletrólitos, função renal, transaminases hepáticas, bilirrubina, albumina sérica, testes de coagulação, glicemia e níveis séricos de Fe. Em pacientes gravemente intoxicados, a gasometria arterial ou venosa também deve ser realizada, bem como a dosagem de lactato.

Os resultados dos níveis séricos de Fe exigem uma avaliação cautelosa. Em geral, os níveis séricos de Fe, medidos entre 4 e 6 horas após a ingestão aguda, correlacionam-se com a gravidade da toxicidade, mas baixos níveis séricos de Fe não significam, necessariamente, ausência de toxicidade. A capacidade total de ligação do Fe sérico tem pouco valor na avaliação de indivíduos com intoxicação por Fe.

O Quadro 1 apresenta os níveis de Fe sérico e a sua correlação clínica.

 

Quadro 1

 

NÍVEIS DE FERRO SÉRICO

Níveis de Fe sérico

Correlação clínica

<350mcg/dL

Toxicidade mínima

350 a 500mcg/dL

Sintomas gastrintestinais leves a moderados

>500 mcg/dL

Toxicidade sistêmica potencialmente severa

>1.000 mcg/dL

Alta morbidade e mortalidade

 

Os comprimidos de sulfato ferroso e Fe reduzido são radiopacos e, com frequência, visíveis nas radiografias de rotina; isso pode ajudar a orientar a descontaminação gastrintestinal quando presente. No entanto, muitas preparações de Fe não são rotineiramente detectadas, incluindo preparações pediátricas mastigáveis e líquidas, e a ausência de material radiopaco em radiografias não exclui a ingestão de Fe.

 

Tratamento

 

O envenenamento por Fe é um diagnóstico clínico. Os sinais e os sintomas consistentes com envenenamento por Fe devem orientar o tratamento, em vez de concentrações séricas de Fe isoladas. Os pacientes assintomáticos na chegada ao departamento de emergência não têm história de ingerir uma quantidade potencialmente tóxica e com achados normais no exame físico e não necessitam de tratamento médico específico; nesse caso, podem receber alta após 6 horas de observação.

Os pacientes que vomitam uma ou duas vezes pelos efeitos irritantes gástricos do Fe, mas que, de outra forma, são assintomáticos, também podem ser observados e não necessitam de tratamento específico. Já aqueles com toxicidade clínica devem, em primeiro lugar, ser estabilizados com atenção às vias respiratórias, à respiração e à circulação.

Os indivíduos com sintomas gastrintestinais severos devem ter assegurado acesso venoso calibroso, devendo ser iniciada a hidratação em caso de indicação clínica. Os antieméticos como a metoclopramida ou o ondansetrona devem ser utilizados para pacientes com vômitos persistentes. A coagulopatia deve ser tratada com vitamina K parenteral, e o plasma fresco congelado pode ser utilizado em casos de sangramento maior. Uma perda significativa de sangue pode requerer transfusão sanguínea. O uso de xarope de ipeca não é indicado.

O risco da lavagem gástrica costuma ser maior que o benefício potencial, exceto em caso de ingestão muito recente e de um grande número de comprimidos radiopacos detectados em exame de radiografia. Não devem ser administrados carvão ativado, medicamentos catárticos ou bicarbonato de sódio. O carvão ativado não adsorve quantidades significativas de Fe para evitar a toxicidade, e o seu uso pode complicar a endoscopia se isso for necessário.

Os agentes catárticos não devem ser administrados. Não existem dados que comprovem a eficácia do bicarbonato de sódio oral ou a fosfosoda na formação de sais de Fe insolúveis impedindo a absorção. A irrigação gastrintestinal total tem benefício descrito em séries de casos com intoxicação grave, mas nenhum estudo randomizado avaliou a sua eficácia.

A deferoxamina é o agente de escolha na intoxicação por Fe grave. Trata-se de um agente quelante derivado de Streptomyces pilosus utilizado para tratar a toxicidade do Fe. A deferoxamina liga-se ao Fe livre, ao Fe plasmático e ao Fe do interior das células e das mitocôndrias, mas não ao Fe ligado às moléculas orgânicas. Após a ligação, forma a feroxamina complexa, que é excretada por via renal.

A deferoxamina pode ser administrada com segurança em crianças e gestantes. A medicação é utilizada por via endovenosa (EV) em dose de 15mg/Kg/h ou 1.000mg, até uma dose máxima de 35mg/kg/h em paciente com sintomas severos. Inicia-se a infusão em dose de 5mg/kg/h com aumento progressivo; em crianças, a dose recomendada é de 50mg/kg.

A administração de deferoxamina está indicada em pacientes intoxicados com Fe com toxicidade sistêmica, êmese persistente, acidose metabólica, sintomas progressivos ou um nível de Fe sérico preditor de toxicidade moderada a severa. O fabricante recomenda o uso intramuscular (IM) para todos os pacientes que não estiverem em estado de choque. Todavia, a maioria dos toxicologistas aconselha a administração intravenosa, em vez da administração de IM, devido à falta de confiabilidade da absorção de IM e ao aumento da excreção de Fe após a administração EV.

A quantidade recomendada de deferoxamina para uma intoxicação por Fe aguda é de 360mg/kg ou 6g em um adulto durante as primeiras 24 horas. A utilização de doses maiores é associada a complicações, incluindo mucormicose, insuficiência renal (IR) ou toxicidade pulmonar e sepse por Yersinia enterocolitica, que pode estar relacionada com a duração da terapia.

Com a ferrioxamina sendo excretada, a cor da urina muda para o que é classicamente chamado de “vinho rosé”, mas mais tipicamente em uma tonalidade marrom ou enferrujada. O desaparecimento dessa coloração significa, em geral, que o paciente já não tem toxicidade significativa porque não existe mais Fe livre disponível para formar complexos com a deferoxamina e ser excretado, embora, em alguns casos, exista um intervalo de tempo entre a mudança da coloração da urina e a interrupção da toxicidade.

Há incertezas quanto à duração da terapia com deferoxamina. Os parâmetros recomendados incluem a recuperação clínica e os níveis normais de Fe e a recuperação clínica em conjunto com a cor da urina normal. A recuperação do paciente é, provavelmente, o fator mais importante que orienta a decisão de encerrar a terapia porque os níveis de Fe medidos são artificialmente deprimidos pela presença de deferoxamina e a mudança de cor da urina pode não ser confiável.

Os quelantes orais de Fe como a deferiprona e o deferasirox reduzem a absorção de Fe quando administrados de forma simultânea ou dentro de uma hora após a ingestão de Fe. No entanto, não há evidência de benefício em intoxicações em adultos, e a terapêutica oral seria teoricamente útil apenas quando tomada prontamente após a ingestão de Fe. Sendo assim, a sua utilização é limitada pelo tempo de apresentação para tratamento e pelos vômitos significativos esperados com a toxicidade clínica do Fe.

Embora a hemodiálise e a hemofiltração não removam o Fe, esse tratamento pode ser necessário para remover o complexo deferoxamina-Fe em pacientes com IR que não conseguem excretar o complexo na urina. A intoxicação por Fe severa pode, ainda, ser tratada com exsanguinotransfusão, apesar de haver pouca evidência de benefício com esse procedimento.

 

Referências

 

1-Hernandez SH, Nelson LS. Iron in  Tintinalli Emergency Medicine 2016.

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