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Intoxicação por Substâncias Anticolinérgicas

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 23/04/2018

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Aproximadamente, 620 compostos têm propriedades anticolinérgicas, incluindo medicamentos e plantas com cerca de 14 mil episódios ao ano de intoxicação aguda, com necessidade de procura do departamento de emergência nos EUA. Felizmente, apenas uma minoria das exposições apresentou efeitos graves, sendo extremamente infrequentes os óbitos.

Muitas dessas substâncias têm atividade anticolinérgica como efeito terapêutico direto ou efeito adverso, além do efeito farmacológico primário ou predominante. Atropina, hiosciamina e escopolamina, por exemplo, são alcaloides de ocorrência natural que representam protótipos de compostos anticolinérgicos. A intoxicação por anti-histamínicos (particularmente a difenidramina) é a mais comumente associada com toxicidade anticolinérgica.

 

O Quadro 1 contém as medicações com ação anticolinérgica.

 

Quadro 1

 

MEDICAÇÕES COM AÇÃO ANTICOLINÉRGICA

               Antidepressivos tricíclicos

               Anti-histamínicos

               Etanolaminas

               Etilenodiaminas

               Alquilamines

               Piperazinas

               Fenotiazinas

               Difenidramina

               Dimenidrinato

               Clorfeniramina

               Loratadina

               Meclizina

               Cetirizina

               Proclorperazina

               Prometazina

               Medicações antiparkinsonianas

               Fenotiazinas

               Clorpromazina

               Tioridazina

               Perfenazina

               Clozapina

               Olanzapina

               Quetiapina

               Antiespasmódicos

               Brometo de metantelínio

               Ciclobenzaprina

               Orfenadrina

               Espécies de Datura

               Espécies de Mandrágora

               Cogumelos Amanitas

 

A administração de agentes contendo hiosciamina para cólicas e o uso tópico de pomadas contendo difenidramina podem causar sintomas anticolinérgicos. No idoso, doses terapêuticas de um ou vários medicamentos com propriedades anticolinérgicas podem produzir sintomas anticolinérgicos ou íleo paralítico sem todos os sinais da sídrome anticolinérgica.

As intoxicações por plantas podem resultar em uma sídrome anticolinérgica. Em Taiwan, a síndrome anticolinérgica é mais comumente associada com exposições de plantas com alcaloides de Beladona, que fortes efeitos anticolinérgicos produzindo toxicidade 1 a 4 horas após a ingestão. As plantas alcaloides são abusadas por seus efeitos alucinógenos.

Os envenenamentos por plantas anticolinérgicas em grupo são comuns em adolescentes que procuram esses efeitos alucinógenos psicoativos. A adulteração de drogas comumente abusadas, tais como heroína ou cocaína, com escopolamina ou atropina é descrita.

 

Farmacologia

 

Os agentes anticolinérgicos inibem por competição ao se ligarem aos receptores colinérgicos muscarínicos, que se encontram em músculos lisos, glândulas, no corpo ciliar e no sistema nervoso central (SNC). Os agentes anticolinérgicos não antagonizam a ação dos receptores nicotínicos que se encontram na junção neuromuscular. A absorção de agentes anticolinérgicos pode ocorrer após ingestão, fumo ou uso ocular. Com a ingestão oral, o início da toxicidade anticolinérgica geralmente ocorre dentro de 1 a 2 horas, com concentrações plasmáticas de pico em 2 horas.

Como o bloqueio muscarínico retarda o esvaziamento gástrico e diminui a motilidade gastrintestinal, a absorção e os efeitos clínicos máximos são muitas vezes atrasados. Um exemplo é o difenoxilato-atropina (Lomotil®), um agente antidiarreico que pode apresentar toxicidade até 12 horas após a ingestão; a escopolamina, por sua vez, pode apresentar toxicidade por mais de 24 horas.

A acetilcolina é o neurotransmissor que modula os receptores nicotínicos e muscarínicos. Cinco genes codificam os receptores muscarínicos através da ativação do receptor de proteína G. A estrutura dos receptores nicotínicos é complexa, composta por várias subunidades codificadas por múltiplos genes.

Os fármacos anticolinérgicos e as toxinas das plantas inibem ou antagonizam competitivamente a ligação do neurotransmissor acetilcolina aos receptores de acetilcolina muscarínicos. Assim, o termo medicações anticolinérgicos é inapropriado, pois esses agentes são antagonistas apenas dos receptores muscarínicos.

As manifestações clínicas desses medicamentos são moduladas por distúrbios no SNC. Os sinais e sintomas da toxicidade anticolinérgica resultam do bloqueio colinérgico central e periférico. A síndrome anticolinérgica periférica refere-se à síndrome observada com a ação nos receptores muscarínicos periféricos com taquicardia, pele seca, boca seca, íleo paralítico e retenção urinária.

Muitos agentes anticolinérgicos têm atividade em outros receptores de membrana celular, e a toxicidade após intoxicações pode ser uma mistura de múltiplos mecanismos farmacológicos. Por exemplo, os achados clínicos da intoxicação por antidepressivos cíclicos são apenas parcialmente caracterizados pelos efeitos anticolinérgicos.

As complicações mais importantes das intoxicações por antidepressivos cíclicos são resultado dos efeitos de bloqueio do canal de sódio no coração, produzindo taquiarritmias complexas. A injeção intravenosa de anti-histamínicos, particularmente aqueles que afetam os antagonistas do receptor de histamina H1 (difenidramina), parece causar euforia em alguns pacientes.

 

Características Clínicas

 

As características clássicas da síndrome anticolinérgica incluem estas seis manifestações cardinais:

               Vermelhidão: os pacientes apresentam importante vasodilatação cutânea para compensar a perda de produção de suor com shunt de sangue em direção à pele. Assim, apresentam-se pletóricos com hiperemia cutânea significativa e com aumento da temperatura local.

               Pele e mucosas secas: perda da produção de suor pelas glândulas sudoríparas inervadas por receptores muscarínicos. Os pacientes apresentam pele seca, principalmente na região de axilas e mucosas secas (por exemplo, boca seca).

               Aumento de temperatura: com a perda de dissipação do calor pelo suor, pode ocorrer hipertermia.

               Alterações visuais: os anticolinérgicos interferem tanto na constrição pupilar como na acomodação visual, que se manifesta como visão turva. Por esse motivo, esses pacientes são referidos como “cegos como um morcego”.

               Alterações do SNC: o bloqueio dos receptores muscarínicos no SNC pode causar manifestações como ansiedade, agitação, disartria, confusão mental, desorientação, alucinações visuais, delirium, psicose, coma e convulsões.

               Retenção urinária: os músculos detrusores e o esfíncter da uretra têm controle muscarínicos e previnem o relaxamento normal do esfíncter da uretra, causando retenção urinária.

 

Outros achados característicos incluem sons intestinais diminuídos ou ausentes secundários à diminuição do peristaltismo e motilidade gastrintestinal. Uma bexiga palpável por retenção urinária pode ser verificada. Os pacientes costumam apresentar taquicardia, comumente sinusal, que costuma ser um dos sinais mais precoces da intoxicação anticolinérgica. Arritmias malignas, por sua vez, são menos comuns.

As ingestões de grandes quantidades de difenidramina foram associadas a taquiarritmias complexas de um efeito de bloqueio de canal de sódio, e não de um efeito anticolinérgico. A overdose de difenidramina causa prolongamento do intervalo QT. As pupilas dilatadas são frequentemente um achado clínico tardio (12 a 24 horas), que pode não ser observado apesar da presença de outros sinais anticolinérgicos.

O quadro de delirium na síndrome anticolinérgica central é caracterizado por agitação, irritabilidade, desorientação, confusão, agitação, alucinações auditivas e visuais e discurso incoerente. O paciente com toxicidade anticolinérgica tem grande dificuldade em interagir adequadamente com estímulos ambientais, com descrição de alucinações liliputianas, com os pacientes descrevendo ver “pequenas pessoas”.

Uma característica do delírio anticolinérgico é a disartria, manifestada por um padrão de fala e discurso difícil de compreender. Isso pode ser exacerbado por disfasia grave por secreção mucosa diminuída. Os pacientes também podem exibir movimentos bruscos das extremidades, bem como apresentar sintomas depressivos, embora esses geralmente estão associadas a doses mais elevadas, e as características incluem letargia, sonolência e coma.

A intoxicação por olanzapina, um antipsicótico atípico com propriedades anticolinérgicas significativas, produz flutuações imprevisíveis no estado mental, desde a sonolência até a agitação durante horas. A hipertermia induzida por agitação é uma complicação da intoxicação anticolinérgica, e seu desenvolvimento pode ser significativamente potenciado pela diminuição da transpiração e pela incapacidade de dissipar o calor.

Uma temperatura corporal marcadamente elevada pode levar à rabdomiólise, além de lesão de múltiplos órgãos, resultando em lesões hepáticas, renais e cerebrais e coagulopatia. O risco de toxicidade da maioria dos agentes anticolinérgicos é relacionado à dose.

Por exemplo, a gravidade da sobredosagem de difenidramina correlaciona-se com a quantidade ingerida, com sintomas moderados após ingestão de 300mg e 7,5mg/kg em crianças e sintomas severos vistos somente após ingestões de 1.000mg ou mais em adultos.

 

Diagnóstico

 

Em pacientes com estado mental alterado, devem ser obtidos exames laboratoriais de rotina, incluindo eletrólitos, glicemia, creatinoquinase (em pacientes com agitação ou convulsões), teste de gravidez para mulheres em idade fértil e oximetria de pulso.

A dosagem do nível sérico de medicações ou agentes anticolinérgicas costuma ser de pouca utilidade, mas muitos autores recomendam a dosagem dos níveis séricos de acetaminofeno, na suspeita de coingestões. Todos os pacientes com intoxicação anticolinérgica têm indicação formal da realização de eletrocardiograma, principalmente quando a intoxicação é por fenotiazidas ou antidepressivos tricíclicos.

 

Diagnóstico Diferencial

 

O diagnóstico diferencial da toxicidade anticolinérgica inclui todos diagnósticos que podem cursar com confusão mental e agitação, incluindo encefalite viral, síndrome de Reye, traumatismo craniano, síndrome de abstinência por álcool ou medicações sedativas, estado pós-ictal, síndrome neuroléptica maligna e transtorno psicótico agudo.

A diferença entre toxicidade anticolinérgica e toxicidade simpaticomimética (como intoxicação por cocaína) pode ser sutil, pois pacientes podem desenvolver taquicardia, midríase e delirium. A presença de pele seca vermelha e a ausência de sons intestinais sugerem intoxicação anticolinérgica.

Por vezes, pacientes com transtornos psicóticos agudos podem ter um estado mental anormal, sugerindo toxicidade anticolinérgica, mas o verdadeiro delírio e déficit de atenção são muito mais característicos da última condição. Outros distúrbios do SNC, como a encefalite viral, também podem ter efeitos anticolinérgicos semelhantes não relacionados a uma exposição tóxica.

 

Tratamento

 

O tratamento da toxicidade anticolinérgica inclui principalmente observação, monitorização com ECG contínuo e oximetria de pulso e cuidados de suporte. A monitorização da temperatura e o tratamento da hipertermia são essenciais. A descontaminação gastrintestinal com carvão ativado pode ser garantida para diminuir a absorção se a ingestão ocorrer em 1 hora.

Embora o benefício do carvão ativado seja duvidoso após 1 hora após a ingestão, a diminuição da mobilidade intestinal associada a ingestões anticolinérgicas pode justificar a administração de carvão além dessa janela de 1 hora. Carvão ativado em doses múltiplas não é recomendado, mas uma dose única de carvão ativada de 1g/kg com dose máxima de 50g é indicada em pacientes com nível de consciência preservado. O xarope de ipeca está contraindicado em intoxicações anticolinérgicas.

A sedação inadequada dos pacientes com intoxicação anticolinérgica pode levar à piora da hipertermia, à rabdomiólise e a lesões traumáticas. Embora sejam necessárias restrições físicas para obter o controle inicial, a sedação farmacológica é fortemente recomendada, porque o uso prolongado de restrições físicas no paciente agitado pode levar a complicações adicionais.

A sedação farmacológica deve começar com a administração intravenosa de um benzodiazepínico, como lorazepam ou diazepam, que, na maioria dos casos, são considerados os medicamentos sedativos de escolha em comparação com a fisostigmina, que pode ser usada em casos refratários. Os benzodiazepínicos não são um antídoto específico, e alguns pacientes podem ser refratários a grandes doses.

As fenotiazinas devem ser evitadas devido aos seus próprios efeitos anticolinérgicos. Em casos graves de agitação, quando a sedação adequada não pode ser alcançada sem prejudicar a respiração, podem ser necessárias ventilação mecânica e sedação profunda.

O bicarbonato de sódio intravenoso deve ser usado para tratar as taquiarritmias complexas, principalmente em pacientes com intoxicação por antidepressivos tricíclicos. Os agentes antiarrítmicos de classe IA devem ser evitados por causa de suas próprias propriedades de bloqueio do canal de sódio.

A maioria dos pacientes necessita apenas de cuidados de suporte, mas alguns pacientes podem se beneficiar do uso de fisostigmina, que é um inibidor de acetilcolinesterase reversível (relacionado com as intoxicações por inseticidas com carbamato) que atravessa a barreira hematoencefálica devido às suas propriedades lipofílicas de amônio terciário.

A inibição da acetilcolinesterase resulta no acúmulo de acetilcolina que reverte os efeitos anticolinérgicos tanto centrais quanto periféricos. A dose recomendada é de 0,5mg a 2mg usada por via intravenosa em 5 minutos. O uso da fisostigmina para reverter a toxicidade anticolinérgica é controverso, e a medicação não deve ser utilizada na suspeita de outras intoxicações associadas.

Os principais efeitos adversos da bradicardia profunda e das convulsões foram historicamente considerados comuns, mas a evidência dessa ocorrência é pequena. O risco de efeitos adversos parece maior em pacientes com toxicidade anticolinérgica, sendo necessário um diagnóstico preciso de toxicidade anticolinérgica antes da administração da fisostigmina.

A evidência de benefícios da fisostigmina na toxicidade anticolinérgica é conflituosa. Uma análise retrospectiva de 52 pacientes e relatos de casos descobriram que a fisostigmina foi bem melhor no controle da agitação e na reversão do delírio em comparação com os benzodiazepínicos, e foi associada com menos complicações e menor tempo de recuperação.

Não houve diferença nos efeitos adversos entre os dois grupos. Por outro lado, uma série de casos diferentes não verificou que a fisostigmina reduziu complicações ou o tempo de permanência em 17 pacientes com agitação e delírio severos após intoxicação por plantas com anticolinérgicos. No entanto, não foram observados efeitos adversos ou complicações do uso de fisostigmina.

A fisostigmina pode ser utilizada em casos de agitação e delírio severos de toxicidade anticolinérgica pura, especialmente em situações que requerem restrições físicas e resistentes a benzodiazepínicos, com estudos demonstrando que a fisostigmina é mais eficaz que os benzodiazepínicos para controlar delírio e agitação nesses pacientes. Quando a medicação é efetiva, uma diminuição significativa da agitação ocorre em 15 a 20 minutos.

Os pacientes que permanecem assintomáticos há mais de 6 horas após a primeira dose de fisostigmina não necessitam da administração repetida de fisostigmina. As contraindicações para o uso de fisostigmina incluem asma, obstrução intestinal e distúrbios da condução cardíaca.

Os pacientes com sintomas leves de toxicidade anticolinérgica que se resolvem após 6 horas de observação no departamento de emergência podem ser considerados para internação fora de ambiente de terapia intensiva. Como a duração da ação da fisostigmina é menor do que a da ação de muitos agentes anticolinérgicos, o efeito de reversão pode se dissipar, resultando em toxicidade recorrente. A maioria dos pacientes sintomáticos, incluindo os que receberam fisostigmina, necessita de observação hospitalar durante, pelo menos, 24 horas.

 

Referências

 

1-Quan D, LoVecchio F. Anticolinergics in Tintinalli Emergency Medicine 2016.

2-Dawson AH, Buckley NA. Pharmacological management of anticholinergic delirium - theory, evidence and practice. Br J Clin Pharmacol 2016; 81:516.

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