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Raiva Humana

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 31/10/2018

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A raiva é uma doença viral que causa em humanos uma encefalite comumente fatal. Existe risco de adquirir raiva em mais de 100 países envolvendo 3 bilhões de pessoas, e entre 10 a 15 milhões pessoas recebem profilaxia pós-exposição a raiva com cerca de 55 mil mortes por raiva humana anualmente.

A raiva é, primariamente, uma doença de animais. A epidemiologia da raiva humana reflete tanto a distribuição da doença em animais quanto o grau de contato humano com esses animais. Nos EUA, cerca de 90% dos casos notificados são associados a morcegos. Em outros países, mordidas de cães costumam ser a maior causa de raiva humana.

 

Fisiopatologia

 

O vírus da raiva é o protótipo do gênero Lyssavirus. Os lyssavirus são vírus em forma de projétil com diâmetro médio de 75 nanômetros. Todos os lyssavirus são adaptados para replicar no sistema nervoso central (SNC) de mamíferos, transmitidos por contato direto, e não estão associados à transmissão ou à replicação natural em insetos.

A infecção viral das glândulas salivares do animal é responsável pela infectividade da saliva. Após uma mordida, a saliva contendo o vírus da raiva é depositada nos tecidos musculares e subcutâneos. O vírus permanece próximo do local de exposição durante a maior parte do período de incubação (geralmente, de 20 a 90 dias).

O vírus da raiva se liga ao receptor de acetilcolina nicotínico no músculo, que é expresso na membrana pós-sináptica da junção neuromuscular. Subsequentemente, o vírus espalha-se através da placa motora, sobe e replica-se ao longo do axoplasma nervoso periférico em direção aos gânglios da raiz dorsal, à medula espinal e ao SNC. Após a replicação do SNC na substância cinzenta, o vírus espalha-se pelos nervos periféricos para praticamente todos os tecidos e sistemas de órgãos.

Histologicamente, a raiva é uma encefalite com aumento de linfócitos, leucócitos polimorfonucleares e plasmócitos, e hemorragia focal e desmielinização na substância cinzenta do SNC, nos gânglios da base e na medula espinal. A replicação viral ocorre nos corpos de Negri, que são lesões intracelulares eosinofílicas encontradas em neurônios cerebrais, e representa um achado altamente específico para o diagnóstico de raiva. Os corpos de Negri são encontrados em 75% dos casos comprovados de raiva em animais. Embora sua presença seja patognomônica para o diagnóstico, sua ausência não a exclui.

Outras rotas de transmissão documentada incluem contaminação de membranas mucosas (olhos, nariz, boca), transmissão de aerossol durante espeleologia (cavernas) em cavernas infestadas de morcegos, exposição durante o trabalho em laboratório com vírus da raiva, transplantes de órgãos infectados e infecção iatrogênica através de vacina inadequadamente inativada.

 

Manifestações Clínicas

 

O período de incubação após uma mordida varia de 20 a 90 dias, mas com descrições de períodos de incubação de 4 dias ou menos ou tão longos como 6 anos. O período prodrômico apresenta sintomas inespecíficos e de difícil diagnóstico; esses sintomas incluem anorexia, fraqueza, mal-estar, vômitos, cefaleia e fotofobia e, tipicamente, duram 4 dias, embora possam se prolongar por até 10 dias.

O edema muscular pode ocorrer, ainda, durante a fase prodrômica, podendo persistir durante toda a doença. Parestesias que se iniciam no local da picada ou mordida são achados sugestivos de raiva. O vírus da raiva causa encefalite aguda em todos os hospedeiros de sangue quente, incluindo humanos, e quase sempre com evolução fatal. O período de incubação é menor quando o local da mordida está na cabeça ou em região cefálica do que quando ocorre na extremidade.

Durante o pródromo, os sintomas e sinais são inespecíficos. No início do curso, alguns pacientes podem relatar sintomas sugestivos de raiva, como dor nos membros, fraqueza dos membros e parestesias no local de exposição ou próximo a ele. Existem duas formas clínicas de raiva: a encefalítica em 80% e a paralítica em 20%.

Na raiva encefalítica, muitas vezes há episódios de excitação generalizada, agitação ou hiperexcitabilidade, desorientação, alucinações e comportamento bizarro, muitas vezes separados por intervalos lúcidos. A hidrofobia é seu sintoma mais característico, ocorrendo de um terço à metade dos casos; a aerofobia também é comum em 10% dos casos. A hiperventilação é frequente, assim como as convulsões e a disfunção hipofisária.

A disfunção autonômica ocorre em 25% dos pacientes, e sintomas incluem hipersalivação, lacrimejamento, sudorese, hipertermia alternada com hipotermia, taquicardia, hipertensão, piloereção, arritmias cardíacas e priapismo e agitação em 50% dos pacientes.

A raiva paralítica ocorre em menos de 20% dos pacientes e geralmente começa com paresia na extremidade mordida com disseminação para quadriparesia e fraqueza facial bilateral similar a síndrome de Guinlain-Barré. Há progressão da raiva paralítica para coma e falência de órgãos, tipicamente com um curso clínico mais longo do que na raiva encefalítica.

Coma quase sempre ocorre dentro de 10 dias após o início dos sintomas. A morte ocorre devido a uma variedade de complicações, incluindo disfunção hipofisária, convulsões, disfunção respiratória com hipóxia progressiva, disfunção cardíaca com arritmias e parada, disfunção autonômica, insuficiência renal e infecções bacterianas secundárias.

 

Diagnóstico e Tratamento

 

A raiva deve ser incluída no diagnóstico diferencial de qualquer paciente com encefalite aguda, rapidamente progressiva e inexplicada, especialmente na presença de instabilidade anatômica, disfagia, hidrofobia, paresia ou parestesia.

Condições que poderiam ser confundidas com raiva incluem tétano, poliomielite, síndrome de Guillain-Barré, botulismo, mielite transversa, encefalomielite pós-vacinal, lesões de massa intracraniana, acidentes vasculares cerebrais, envenenamento com compostos semelhantes à atropina e causas infecciosas de encefalite viral (por exemplo, herpes simples, varicela-zóster, encefalite viral transmitida por artrópodes, como encefalite equina oriental).

Em paciente não imunizado com antecedente de mordida por animal e com hidrofobia, o diagnóstico de raiva é relativamente simples e não exige exames complementares. O diagnóstico costuma ser realizado retrospectivamente pós-morte. Durante o período de incubação da raiva, nenhum teste diagnóstico está disponível para animais ou humanos que indique infecção.

Em pacientes com suspeita de raiva, múltiplas amostras de tecidos como pele (sobretudo próximo a inervações), saliva, córnea, tecido cerebral, líquor, entre outros, devem ser coletadas para o diagnóstico. A dosagem de anticorpos séricos contra raiva ou RT-PCR pode realizar o diagnóstico. O teste rápido de inibição de foco de fluorescência (RFFIT) é a referência para dosagem de anticorpos antirraiva.

A ressonância nuclear magnética (RNM) do cérebro pode ser normal ou pode mostrar lesões em áreas de substância cinzenta do parênquima cerebral, incluindo o tronco cerebral. A análise do líquido cefalorraquidiano frequentemente mostra uma leve pleocitose mononuclear.

 

Profilaxia Pré-Exposição

 

A medida mais importante para prevenção da raiva é o manejo da raiva em animais, mas a profilaxia pré-exposição com a vacina antirrábica é altamente recomendada para pessoas cujas atividades recreativas ou ocupacionais as colocam em risco de raiva. Doses nos dias zero, 7, 21 e 28 costumam ser suficientes, e não é necessária, em imunocompetentes, dosagem de anticorpos para verificar sua eficácia.

Sorologia e doses adicionais a cada 2 ou 3 anos podem ser necessárias em indivíduos de alto risco. Uma dose de reforço IM da vacina deve ser administrada se o título do soro cair para manter o valor da neutralização completa em uma diluição de soro de 1:5 pelo teste de inibição rápida do foco fluorescente.

A vacinação pré-exposição não elimina a necessidade de terapia adicional após uma exposição à raiva, mas simplifica a profilaxia pós-exposição, eliminando a necessidade de imunoglobulina humana contra a raiva (HRIG), diminuindo o número de doses de vacina necessárias.

 

Risco Pós-Exposição

 

O risco de desenvolver raiva após uma mordida ou arranhão por um animal raivoso depende se a ferida foi uma exposição por mordida, arranhão ou não mordida. A avaliação de risco para a profilaxia pós-exposição inclui a determinação da epidemiologia da raiva na área em que ocorreu o contato e o conhecimento das espécies de animais envolvidos.

O maior determinante para prevenção da raiva humana é o cuidado apropriado das feridas, o que reduz o risco de raiva humana em 90%. Irrigação e lavagem da ferida com água e sabão são medidas eficazes, mas é recomendado o uso de algum agente viricida como iodopovidine. Mordidas na face e nas mãos representam o maior risco, mas o local da picada não influencia a decisão para começar a terapia. Exposições sem mordeduras de animais muito raramente causam raiva. O cão e o gato com vacinação completa têm baixíssima probabilidade de estarem infectados com raiva.

Após o cuidado com a ferida, deve-se decidir sobre a necessidade de medidas adicionais. Avaliar se a mordida foi causada por um ataque provocado ou não é uma tarefa fútil, pois a maioria das mordidas de animais é “provocada” do ponto de vista do animal. Além disso, 15% dos animais com raiva não exibem comportamento agressivo, mas, sim, tem comportamento apático.

No caso de animal doméstico conhecido e saudável, deve ser confinado e observado por 10 dias. Ao primeiro sinal de doença durante o confinamento, esses animais devem ser avaliados por um veterinário e um relatório imediatamente feito no departamento de saúde. Se surgirem sinais sugestivos de raiva, o animal deve ser sacrificado e sua cabeça removida e enviada sob refrigeração (não congelada) para exame do cérebro por um laboratório qualificado.

Existem relatos anedóticos de transmissão de raiva interpessoal. Apesar da falta de transmissão comprovada pelos serviços de saúde, cerca de 30% dos profissionais de saúde que tiveram contato com um ser humano diagnosticado com raiva receberam profilaxia pós-exposição. A exposição da pele ou mucosas à saliva infectada de pacientes com raiva deve receber profilaxia pós-exposição.

Em pacientes que expressam preocupação com a exposição à raiva, mesmo que a avaliação do risco seja praticamente nula, a vacinação pode ser oferecida juntamente com uma explicação dos seus riscos e benefícios. Se o risco de raiva é nulo, deve ser desencorajada a administração de HRIG.

 

Profilaxia Pós-Exposição

 

A profilaxia pós-exposição consiste em um regime de uma dose de HRIG e quatro doses de vacina contra raiva durante um período de 14 dias, exceto em pacientes imunocomprometidos, que devem receber uma série de 5 doses de vacina durante um período de 28 dias. Em pacientes não vacinados, tanto a vacina quanto a HRIG devem ser administradas o mais precocemente possível após a exposição, preferencialmente dentro de 24 horas.

Se a HRIG não foi administrada quando do início da vacinação, pode ser até 7 dias após a administração da primeira dose da vacina. O músculo deltoide é o único local aceitável de vacinação para adultos e crianças mais velhas. Para crianças menores, o aspecto externo da coxa (aspecto anterolateral) pode ser usado. A vacina nunca deve ser administrada na área glútea. A dose de HRIG é de 20U/kg, IM, idealmente em volta da ferida se possível. Em pacientes previamente vacinados, a recomendação é de não aplicar HRIG, mas revacinar com 2 doses no dia zero e no dia 3.

As vacinas antirrábicas disponíveis nos EUA incluem vacina de células diploides humanas (produzidas em células diploides humanas) e vacina de cultura de células embrionárias purificadas. A resposta ativa dos anticorpos requer cerca de 7 a 10 dias para se desenvolver, e anticorpos neutralizantes contra o vírus da raiva detectáveis geralmente persistem por vários anos.

Os efeitos colaterais da vacina de células diploides humanas incluem eritema leve, edema e dor no local da injeção, e relatados em 10 a 90% dos vacinados. Reações sistêmicas como cefaleia, náusea, dor abdominal, dores musculares e tontura são relatadas em 5 a 40% dos receptores. Reações do tipo doença do soro (hipersensibilidade do tipo III) foram observadas em, aproximadamente, 6% das pessoas que receberam doses de reforço da vacina de células diploides humanas e ocorrem 2 a 21 dias após a administração da dose de reforço.

Tais reações não são fatais e não foram relatadas com a vacina purificada de cultura de embrião de galinha. A anafilaxia e os sintomas neurológicos raramente têm sido associados às vacinas contra a raiva atuais. Quando uma pessoa com histórico de hipersensibilidade grave à vacina contra a raiva deve ser revacinada, anti-histamínicos podem ser administrados. A adrenalina deve estar prontamente disponível para neutralizar as reações anafiláticas, e a pessoa deve ser observada com cuidado imediatamente após a vacinação.

Após o sétimo dia após o início da vacinação, a HRIG não é indicada porque se presume que uma resposta vacinal já ocorreu. A HRIG não deve ser administrada a pessoas com deficiências de imunoglobulina A (IgA), pois pequenas quantidades de IgA podem estar presentes no HRIG e podem causar uma reação alérgica grave.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a indicação de profilaxia pós-exposição depende do contato com o animal suspeito de raiva. Logo, há três categorias a serem observadas:

               Categoria I: tocar ou alimentar os animais, lambedura em pele intacta (isto é, sem exposição).

               Categoria II: mordiscou pele, pequenos rasgos ou abrasões sem sangramento.

               Categoria III: mordidas ou arranhões transdérmicos únicos ou múltiplos, contaminação da membrana mucosa com saliva de lambidas, lambidas em pele quebrada, exposição a morcegos.

Para exposições de categoria I, nenhuma profilaxia é necessária. Para a categoria II, a vacinação imediata é recomendada. Para a III, a vacinação imediata e a administração de HRIG. De acordo com a OMS, os fatores que devem ser levados em consideração ao decidir se iniciar ou não a profilaxia pós-exposição incluem a probabilidade epidemiológica do comprometimento.

A imunização de pessoas imunocomprometidas apresenta desafios especiais. Primeiramente, as vacinas podem representar um perigo para o indivíduo imunocomprometido. Em segundo lugar, a resposta imune à vacinação pode ser insuficiente. Doses mais altas ou imunizações adicionais podem ser necessárias. Como a vacina contra a raiva apresenta vírus inativado, ela não representa um perigo para pessoas imunocomprometidas e pode ser administrada usando-se as doses e o programa padrão recomendados.

As recomendações para o uso de HRIG são as mesmas para pessoas imunocompetentes. Entretanto, corticosteroides, agentes antimaláricos, outros agentes imunossupressores e doenças imunossupressoras podem interferir no desenvolvimento da imunidade ativa e predispor o paciente ao desenvolvimento da raiva. Agentes imunossupressores não devem ser administrados durante a profilaxia pós-exposição, a menos que sejam essenciais para o tratamento de outras condições.

O fosfato de cloroquina, e possivelmente outros antimaláricos como a mefloquina, que são administrados para a quimioprofilaxia da malária podem interferir na resposta do anticorpo à vacina contra a raiva por via intradérmica. Assim, a via IM, não a via intradérmica, deve ser usada para pessoas que utilizam cloroquina.

As pessoas mordidas ou arranhadas por um animal em uma área com raiva endêmica devem receber profilaxia pós-exposição apropriada se a lesão tiver ocorrido dentro do período de incubação conhecido (o que raramente pode se estender por 5 ou mais anos).

A dose da vacina antirrábica para a profilaxia pré-exposição e pós-exposição é a mesma em bebês e crianças que em adultos. A dose de HRIG para profilaxia pós-exposição é baseada no peso corporal real. Para crianças pequenas com múltiplas mordidas, a dose calculada de HRIG pode ser insuficiente para se infiltrar em todas as feridas. No entanto, a solução salina estéril pode ser usada para diluir o volume duplo ou triplo para permitir a infiltração completa.

Nenhuma terapia específica tem demonstrado benefício na raiva clínica. O tratamento com a vacina antirrábica, imunoglobulina antirrábica, ribavirina IV ou interferon não é eficaz. Em modelos animais, o uso de corticosteroides encurta o tempo de incubação e aumenta a mortalidade e, por esse motivo, os esteroides são contraindicados. Sobrevivência com função neurológica normal foi relatada para uma menina de 15 anos em que o coma foi induzido e o tratamento com quetamina, midazolam, ribavirina e amantadina foi fornecido. Atualmente, o tratamento é direcionado para as complicações clínicas da doença. Embora a raiva não seja tratável, todas as tentativas devem ser feitas para se obter um diagnóstico rápido, pois se justifica tomar medidas de saúde pública para limitar os contatos com o paciente, permitindo a reconstrução de uma história para identificar outras pessoas que possam ter sido expostas à mesma fonte infecciosa.

 

Referências

 

1-Singh K et al. Rabies in Mandell Infectious Diseases 2015.

2-Weber D. Rabies in Tintinalli Emergency Medicine 2016.

3-Warrell MJ, Warrell DA. Rabies and other lyssavirus diseases. Lancet 2004; 363:959.

4- Lafon M. Immunology. In: Rabies: Scientific Basis of the Disease and its Management, 3, Jackson AC (Ed), Elsevier Academic Press, Oxford 2013. p.387.

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