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Policitemia – Virginia C Broudy

Última revisão: 21/10/2013

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Virginia C. Broudy

Professor of Medicine and Vice Chair, Department of Medicine, University of Washington School of Medicine, and Chief of Medicine, Harborview Medical Center

 

 

Artigo original: Broudy VC. Polycythemia. ACP Medicine. 2008;1-5.

[The original English language work has been published by DECKER INTELLECTUAL PROPERTIES INC. Hamilton, Ontario, Canada. Copyright © 2011 Decker Intellectual Properties Inc. All Rights Reserved.]

Agradecimentos: Figuras 1 e 2 – Marcia Kammerer. Figura 3 – Jared Schneidman.

Tradução: Soraya Imon de Oliveira.

Revisão técnica: Dr. Lucas Santos Zambon.

 

 

Classificação das policitemias

A policitemia, também chamada eritrocitose, consiste no aumento do número de hemácias circulantes por volume de sangue, que é refletido pela elevação do hematócrito ou dos níveis de hemoglobina. As 3 categorias principais de policitemia são: (1) policitemia relativa, (2) policitemia secundária e (3) policitemia primária ou policitemia vera.

Na policitemia relativa, a massa eritrocitária permanece normal, contudo o volume de plasma está diminuído. A policitemia secundária é causada por níveis altos de eritropoietina (EPO). A policitemia vera constitui um distúrbio neoplásico de células-tronco caracterizado por uma produção excessiva e autônoma de hemácias e, muitas vezes, também de leucócitos sanguíneos e plaquetas [ver Leucemia mielógena crônica e outros distúrbios mieloproliferativos].

 

Avaliação inicial

Os pacientes em geral são assintomáticos, e os níveis altos de hemoglobina ou de hematócrito costumam ser descobertos por acaso, em exames de rotina ou em investigações diversas. Quando um aumento deste tipo é detectado, deve ser prontamente avaliado com o intuito de se descobrir sua causa [Figura 1]. Qualquer história familiar de policitemia e resultados prévios do hematócrito devem ser levados em conta na avaliação. Devem ser procurados achados de história e exame físico que sejam sugestivos de cardiopatia congênita, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) severa ou síndrome da apneia do sono. Deve-se avaliar se há presença ou ausência de esplenomegalia. Os resultados do hemograma completo, incluindo a contagem de plaquetas e a contagem diferencial de leucócitos sanguíneos, devem ser criticamente revisados para detectar quaisquer anormalidades. Os achados de leucocitose, leucócitos sanguíneos imaturos circulantes ocasionais ou aumento da concentração de basófilos são sugestivos de policitemia vera e argumentam contra a existência de causas secundárias de eritrocitose. Uma amostra de sangue periférico deve ser enviada para análise por reação em cadeia da polimerase (PCR) para detecção da mutação pontual JAK2 V617F, que está associada à policitemia vera e outros distúrbios mieloproliferativos.1 Se esta mutação for encontrada em um paciente com policitemia, o diagnóstico de policitemia vera é estabelecido [ver Policitemia vera, adiante].

 

 

Figura 1. Este fluxograma representa uma abordagem para avaliação de um paciente com policitemia, evidenciada pela elevação do hematócrito ou dos níveis de hemoglobina no hemograma completo.

*O tratamento da policitemia vera pode ser encontrada em Leucemia mielógena crônica e outros distúrbios mieloproliferativos.

DPOC = doença pulmonar obstrutiva crônica; EPO = eritropoietina; HEM = contagem de hemácias sanguíneas; PCR = reação em cadeia da polimerase.

 

Níveis de hematócrito iguais ou superiores a 60% em um homem e iguais ou superiores a 57% em uma mulher quase sempre indicam um aumento verdadeiro da massa eritrocitária (isto é, policitemia primária ou secundária). Se o hematócrito do paciente estiver abaixo destes valores, porém acima do normal e na ausência de mutação JAK2 V617F, torna-se necessário examinar a massa eritrocitária.2 Para realizar este exame, uma amostra de hemácias do paciente é marcada com cromo radioativo (51Cr) ex vivo e injetada de volta no paciente. Em seguida, uma 2ª amostra de sangue é obtida para quantificar a concentração de hemácias marcadas com 51Cr em meio às hemácias sem marcação. Paralelamente, o paciente recebe uma injeção de albumina marcada com iodo radioativo (125I), para quantificação do volume de plasma. Caso seja detectada uma diminuição do volume plasmático, o paciente tem policitemia relativa. Se não for detectado aumento da massa eritrocitária, então o paciente tem uma policitemia verdadeira (isto é, primária ou secundária). Uma vez comprovado o aumento absoluto da massa eritrocitária, o diagnóstico exato deve ser estabelecido [Figura 1].

 

Policitemia relativa

Os pacientes com policitemia relativa (síndrome de Gaisböck) costumam ser homens obesos e hipertensos, que também podem ser fumantes veementes.3 É comum estes indivíduos terem 45 a 55 anos de idade – são 10 anos mais jovens do que os pacientes típicos da policitemia vera [ver Leucemia mielógena crônica e outros distúrbios mieloproliferativos]. As estimativas apontam que 0,5 a 0,7% da população masculina dos Estados Unidos sofre de policitemia relativa. O uso de diuréticos no tratamento da hipertensão pode exacerbar o déficit de volume plasmático, sendo que a hipoxemia ou os altos níveis de carboxi-hemoglobina induzidos pelo tabagismo também podem exercer algum papel.

A policitemia relativa geralmente é leve (hematócrito < 55%). Em casos de pacientes com hematócrito abaixo de 60%, este diagnóstico deve ser considerado, e tanto a massa eritrocitária como o volume plasmático devem ser medidos [Figura 1], a fim de evitar o início de um workup extensivo e no fim das contas frustrante para pesquisar outras causas de policitemia. Os pacientes com policitemia relativa são classificados em 2 grupos principais: (1) indivíduos com massa eritrocitária normal e volume plasmático nitidamente reduzido; e (2) indivíduos com valores de massa eritrocitária e volume plasmático situados nos limites superior e inferior da faixa considerada normal. Para estes pacientes, recomenda-se a modificação do comportamento (p. ex., a adoção de um regime de exercício e o abandono do tabagismo). O hematócrito volta ao normal com o passar do tempo, em cerca de 1/3 dos pacientes.

 

Policitemia secundária

A policitemia secundária ocorre quando a produção de EPO aumenta em consequência de hipóxia tecidual crônica. As causas desta hipóxia tecidual incluem viver em locais situados a altitudes elevadas; presença de hemoglobina de alta afinidade; doença cardiopulmonar; apneia obstrutiva do sono; síndrome da hipoventilação da obesidade; e níveis séricos elevados de carboxi-hemoglobina. A policitemia também ocorre em alguns distúrbios renais e hepáticos, em distúrbios genéticos raros e como resultado do tratamento com androgênios ou EPO.

 

Policitemia causada por elevações  da produção de eritropoietina (EPO)

Viver em locais situados em altitudes elevadas

A adaptação humana inicial à alta altitude envolve elevações da frequência respiratória, débito cardíaco e nível de 2,3-bisfosfoglicerato, para facilitar a liberação do oxigênio ligado à hemoglobina para uso nos tecidos [Figura 2]. Dentro de um período de 6 a 24 horas após a ascensão de um indivíduo a altitudes elevadas, os níveis de EPO aumentam e há desenvolvimento de reticulocitose em 24 a 48 horas. No decorrer de vários dias, os níveis séricos de EPO são normalizados, porém o hematócrito permanece aumentado. Além do aumento da massa eritrocitária, há uma modesta diminuição do volume plasmático. Um relato de história de viagem deve ser buscado com o intuito de determinar a probabilidade de um efeito de altitude elevada e, com isso, possivelmente evitar o início de um workup extensivo.

 

 

Figura 2. Gráfico da curva de dissociação oxigênio-hemoglobina (linha preta sólida). A pressão parcial do oxigênio em que a saturação da hemoglobina é de 50% (P50) normalmente é 27 mmHg (linhas azuis tracejadas). A presença da hemoglobina de alta afinidade desloca a curva para a esquerda, refletindo o comprometimento da liberação do oxigênio nos tecidos (linha azul sólida). Um aumento dos níveis de 2,3-bisfosfoglicerato – uma característica da adaptação a altitudes elevadas – desloca a curva para a direita, refletindo o aumento da liberação de oxigênio nos tecidos (linha preta tracejada).

 

Viver em um lugar situado a uma alta altitude, como nas Montanhas Rochosas da América do Norte ou nos Andes da América do Sul, pode acarretar a doença das montanhas. Esta condição é caracterizada por cefaleias, tontura, retardo mental, dispneia e enfraquecimento. Nestes casos, os indivíduos podem ter hematócritos que chegam a 63% e apresentam risco de desenvolvimento de hipertensão pulmonar, doença cardiovascular de aparecimento precoce e proteinúria. O tratamento com inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) (p. ex., 5 mg/dia de enalapril, via oral [VO]) pode melhorar o hematócrito e a função renal ao longo de 1 a 2 anos.4

 

Hemoglobina de alta afinidade

A hemoglobina de alta afinidade resulta da substituição de uma cadeia alfa, de uma cadeia beta ou, mais comumente, da cadeia beta da globina. Esta substituição impede a alteração conformacional normal que ocorre durante a carga/descarga de oxigênio. Esta condição resulta no comprometimento da capacidade de liberação de oxigênio nos tecidos, com consequente hipóxia tecidual e aumento da produção de EPO. Foram descritas mais de 100 mutações determinantes de hemoglobina de alta afinidade. Estas mutações em geral são familiares e herdadas de modo autossômico dominante, mas ocasionalmente resultam de alteração espontânea. A revisão da história médica do paciente deve fornecer evidências de policitemia vitalícia. O hematócrito geralmente é inferior a 60%, enquanto as contagens de leucócitos sanguíneos e plaquetas estão normais. Deve ser determinada a pressão parcial de oxigênio em que a saturação da hemoglobina é de 50% (P50), pois seu valor está diminuído em pacientes com hemoglobina de alta afinidade [Figura 2]. A eletroforese de hemoglobina geralmente é inútil, porque as numerosas mutações que resultam na hemoglobina de alta afinidade são eletroforeticamente silenciosas. Entretanto, é possível identificar as mutações por sequenciamento de DNA. Em casos raros, os pacientes têm deficiência congênita de 2,3-bisfosfoglicerato mutase. As manifestações apresentadas por estes pacientes são similares àquelas observadas em pacientes com hemoglobina de alta afinidade. Os pacientes com hemoglobina de alta afinidade ou deficiência congênita de 2,3-bisfosfoglicerato mutase geralmente não apresentam sintomas de hiperviscosidade e dispensam terapia. Nestes pacientes, a flebotomia diminui a tolerância ao exercício e não deve ser usada.

 

Doença cardiopulmonar

A policitemia causada por defeitos cardiopulmonares (p. ex., complexo de Eisenmenger, coração univentricular e tetralogia de Fallot) resulta da falha em carregar corretamente a hemoglobina com oxigênio ao nível dos pulmões.5,6 O hematócrito pode variar de 60 a 75% e produzir sintomas profundos de hiperviscosidade, incluindo cefaleia, tontura, perturbações visuais, fadiga, parestesias, irritabilidade e diminuição da acuidade mental. Há produção excessiva de micropartículas plaquetárias na cardiopatia congênita cianótica, especialmente quando o hematócrito ultrapassa 60%. A superabundância destas micropartículas contribui para o desenvolvimento das anormalidades hemostáticas observadas nestes pacientes.7 Alguns adultos com cardiopatia congênita cianótica apresentam eritrocitose descompensada, que é caracterizada por um hematócrito instável em elevação e por hiperviscosidade sintomática. Estes pacientes podem ser beneficiados pela flebotomia.6,8 Contudo, outros pacientes adultos com a mesma cardiopatia congênita cianótica apresentam eritrocitose compensada, com um hematócrito estável (embora alto) que é mantido na ausência de sintomas evidentes de hiperviscosidade. Estes pacientes dispensam a flebotomia.6,8 Uma abordagem prática consiste em realizar uma cuidadosa flebotomia nos pacientes com hematócrito na faixa de 60 a 65% que não apresentam sintomas de hiperviscosidade.6 A extensão da flebotomia deve ser guiada pelos sintomas do paciente. A hipótese de desidratação aguda, que exacerba a policitemia, deve ser excluída do diagnóstico antes da realização da flebotomia. E o volume de sangue retirado precisa ser reposto com solução salina isotônica. A deficiência de ferro deve ser evitada com a adoção de uma terapia à base de ferro oral, se necessário, porque a deficiência de ferro severa pode alterar a reologia das hemácias e aumentar o risco de AVC.9

A DPOC severa pode estar associada à policitemia, embora os aspectos clínicos da DPOC geralmente predominem. Em pacientes que continuam a fumar, tanto a hipoxemia como os níveis altos de carboxi-hemoglobina podem contribuir para o desenvolvimento da policitemia. A diminuição do hematócrito dos pacientes com policitemia significativa causada pela DPOC resulta no aumento do fluxo sanguíneo cerebral. Nestes pacientes, os sintomas de tontura e cefaleia associados à hiperviscosidade são aliviados, e o alerta mental melhora drasticamente. Em um estudo envolvendo 7 pacientes com DPOC severa e hipertensão pulmonar, a flebotomia seriada diminuiu a pressão arterial pulmonar e melhorou a capacidade de exercício.10

 

Apneia do obstrutiva do sono

Estima-se que a síndrome da apneia do sono ocorra em 4% dos homens de meia-idade e em 2% das mulheres da mesma faixa etária. Esta condição é subdiagnosticada.11 Entre os fatores de risco, estão: obesidade, sexo masculino, distribuição central da gordura corporal e história familiar de apneia obstrutiva do sono.12 A prevalência da síndrome da apneia do sono cresce com o aumento do índice de massa corporal (IMC). Os episódios recorrentes de colapso das vias aéreas superiores durante o sono obstruem a movimentação do ar, resultando em hipoxemia noturna intermitente. Os pacientes podem ter história de ronco alto com períodos alternados de silêncio que duram 10 segundos a 1 minuto e são seguidos de sons arquejantes. O sono fragmentado resulta em sonolência diurna excessiva e comprometimento do desempenho no trabalho, além de poder aumentar o risco de acidentes de carro.13 O hematócrito pode apresentar uma elevação modesta em pacientes com apneia do sono obstrutiva severa, e a hipótese desta síndrome deve ser considerada em casos de pacientes com policitemia inexplicável. A polissonografia noturna com quantificação do índice de apneia-hipopneia pode estabelecer o diagnóstico. O tratamento desta condição pode envolver a perda de peso, manutenção de uma pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP), dispositivos orais e cirurgia14-17 [ver Distúrbios do sono; e Controle ventilatório durante a vigília e o sono].

 

Síndrome da hipoventilação da obesidade

A síndrome da hipoventilação da obesidade também é conhecida como síndrome de Pickwick, em referência à astuta descrição feita por Charles Dickens de um menino cocheiro que tinha uma sonolência excessiva durante o dia. Os pacientes com esta síndrome costumam apresentar obesidade mórbida (IMC = 40 kg/m2), além de hipercapnia e hipoxemia diurna crônica, causadas em parte por uma resposta ventilatória embotada a estes estímulos.18 Muitos destes pacientes também sofrem de apneia obstrutiva do sono obstrutiva.19 A hipoxemia estimula o aumento da produção de EPO e o desenvolvimento de policitemia. Outros aspectos clínicos associados à síndrome da hipoventilação da obesidade são a hipersonolência diurna e o cor pulmonale. O tratamento desta condição inclui a perda de peso, a pressão positiva contínua nas vias aéreas (CPAP), ou a pressão positiva em nível duplo nas vias aéreas (BiPAP)18 [Controle ventilatório durante a vigília e o sono].

 

Níveis de carboxi-hemoglobina elevados

A exposição prolongada ao monóxido de carbono resulta na elevação crônica dos níveis de carboxi-hemoglobina [ver Tratamento do envenenamento e superdosagem de fármacos]. O monóxido de carbono liga-se à hemoglobina com uma afinidade 210 vezes maior do que a afinidade da ligação do oxigênio e, assim, diminui a quantidade de hemoglobina disponível para o transporte de oxigênio. A ligação do monóxido de carbono também aumenta a afinidade dos grupos heme remanescentes pelo oxigênio, deslocando a curva de dissociação oxigênio-hemoglobina para a esquerda [Figura 2] e comprometendo a liberação do oxigênio nos tecidos. Por meio destes mecanismos, a exposição prolongada ao monóxido de carbono pode causar policitemia. Os indivíduos expostos à fumaça de cigarros e charutos, bem como aqueles sujeitos à exposição ocupacional prolongada à fumaça liberada pelo escapamento dos carros em ambientes pouco ventilados (p. ex., operadores de pedágio, atendentes de garagens subterrâneas e carregadores de caminhão) estão em situação de risco. Em média, o nível de carboxi-hemoglobina no sangue de indivíduos não fumantes é de aproximadamente 1% (ou menos). No sangue de fumantes, esta concentração é de 4% e pode chegar a 15% naqueles que fumam intensamente.

Os possíveis sintomas são a manifestação de anormalidades neuropsiquiátricas sutis e a exacerbação da angina (provavelmente como resultado do comprometimento da distribuição de oxigênio para o miocárdio). O diagnóstico pode ser estabelecido medindo-se o percentual de carboxi-hemoglobina no sangue. Como a meia-vida aproximada da carboxi-hemoglobina é de 5 horas, o teste deve ser realizado ao fim do dia, quando o paciente já fumou o número habitual de cigarros ou passou várias horas no ambiente de trabalho. Os fumantes com policitemia apresentam massa eritrocitária aumentada e volume plasmático reduzido. Para os fumantes, a terapia mais efetiva é o abandono do tabagismo, que resulta normalização dos níveis sanguíneos e plasmáticos dentro de 3 meses. Além do evitamento do local de trabalho, não há terapia disponível para os indivíduos com policitemia ocupacional.

 

Policitemia causada por distúrbios renais e hepáticos

As policitemias surgem quando a produção de EPO aumenta em decorrência de um distúrbio renal ou, menos frequentemente, hepático. Em adultos, cerca de 90% da produção de EPO ocorre no rim, e os 10% restantes, no fígado. Dada a intrincada regulação da produção de EPO no rim, a distorção da anatomia renal pode acarretar policitemia. Existem casos relatados que comprovam que os cistos renais, hidronefrose, glomerulonefrite focal ou síndrome de Bartter podem causar policitemia. Após o transplante renal, cerca de 10 a 20% dos pacientes apresentam policitemia transiente ou persistente. É importante identificar estes pacientes, que apresentam risco aumentado de sofrerem eventos trombóticos arteriais ou venosos e podem necessitar de tratamento à base de flebotomia ou inibidores de ECA.20 Além disso, as malignidades primárias de rim ou fígado podem causar policitemia. A policitemia desenvolve-se em cerca de 3% dos pacientes com carcinoma de células renais. A produção de EPO pelo carcinoma de células renais ou tecidos de hepatocarcinoma é a provável causa de policitemia nestes pacientes. Em casos raros, a hiperplasia nodular focal hepática, hemangioblastomas ou hemangiomas hepáticos ou cerebrais,21 fibroides uterinos, adenomas de suprarrenal e feocromocitomas foram relatados como causadores de policitemia. As mutações no gene de von Hippel-Lindau foram associadas ao desenvolvimento de hemangioblastomas ou câncer de células renais, seja como parte da síndrome de von Hippel-Lindau ou como mutação somática adquirida.22

 

Policitemia familiar

As policitemias familiares são doenças raras que resultam de mutações inatas afetando células hematopoiéticas ou não hematopoiéticas. Os mecanismos moleculares causadores de policitemia familiar podem ser diferentes em famílias distintas, sendo que as mutações podem ser herdadas de modo autossômico dominante ou recessivo.

Uma alta frequência de policitemia familiar autossômica recessiva é encontrada na região de Chuvash, na Rússia.23 Estudos bem conduzidos demonstraram que uma mutação pontual no gene de von Hippel-Lindau resulta em maior estabilidade do fator-1-alfa hipóxia-induzível, que regula a transcrição do gene da EPO.24 Desta forma, a policitemia de Chuvash é um distúrbio congênito da homeostasia do oxigênio. Embora seja endêmica na população russa de Chuvash, a mutação genética associada ocorre no mundo inteiro e aparentemente tem origem em um único evento antigo isolado.25,26 Os pacientes com policitemia de Chuvash apresentam a doença na adolescência, manifestada como cefaleia, tontura, fadiga e dispneia ao esforço.26 Os membros afetados destas famílias apresentam hematócrito elevado (cerca de 60%) e níveis altos de EPO, além de apresentarem distúrbios de tromboembolia e distúrbios cerebrovasculares que diminuem o tempo de vida. O tratamento consiste na flebotomia.

Na policitemia familiar dominante, as anormalidades do receptor da EPO foram identificadas em cerca de 15% dos pacientes.27-30 A EPO inicia seus efeitos biológicos ligando-se especificamente a um receptor que costuma ser expresso na superfície das células progenitoras eritroides, células precursoras e outros tipos de células. Esta ligação desencadeia uma cascata de eventos, incluindo a ativação da proteína tirosina quinase conhecida como Janus quinase-2 (JAK2) [Figura 3]. A fosforilação da tirosina no domínio citoplasmático do receptor da EPO cria sítios de ancoragem para outras moléculas transdutoras de sinal. Em uma grande família finlandesa afetada pela policitemia, uma mutação pontual no receptor da EPO tornou as células progenitoras eritroides hipersensíveis à EPO. Notavelmente, um membro desta família cujo hematócrito era de 60% conquistou 3 medalhas de ouro na prova de esqui cross-country, durante as Olimpíadas de Inverno de 1964. Outra proporção de pacientes com policitemia familiar dominante autossômica apresenta mutações no receptor da EPO que resultam na deleção da região reguladora negativa carboxiterminal do receptor.28-30 É interessante notar que a mutação JAK2 V617F, encontrada em 90% dos pacientes com policitemia vera, não é detectada em pacientes com policitemia familiar dominante autossômica.30 Os indivíduos com esta condição apresentam uma eritrocitose que permanece estável ao longo do tempo. Estes indivíduos não desenvolvem leucocitose nem trombocitose, e nenhuma consequência clínica a longo prazo foi descrita.

 

 

Figura 3. A ligação da eritropoetina ao receptor de eritropoetina em uma célula progenitora eritroide desencadeia a associação e ativação da proteína tirosina quinase Janus quinase-2 (JAK2), bem como o início da transdução de sinal, estimulando o crescimento da célula progenitora eritroide.

EPO = eritropoetina.

 

Policitemia causada pelo uso de fármacos

Os androgênios (p. ex., testosterona) podem causar policitemia ao estimularem a produção de EPO. O hematócrito geralmente sofre um aumento leve e volta ao normal em 2 a 3 meses após a descontinuação do uso do esteroide anabolizante. A disponibilização da EPO humana recombinante e da darbepoetina gerou a preocupação de que os atletas competidores envolvidos em esportes de resistência, como as corridas de ciclismo, esqui cross-country e maratonas de longa distância, poderiam fazer uso sub-reptício destes fármacos e autoinjetá-los para melhorar o desempenho atlético.31-33 A flebotomia seguida de doping de sangue comprovadamente melhora o desempenho de corredores e esquiadores. Uma elevação similar do hematócrito pode ser promovida pelas injeções de EPO, que conseguem aumentar a capacidade máxima de exercício. A elevação não monitorada da produção de hemácias pode acarretar uma policitemia significativa que, aliada à desidratação induzida pelo exercício, pode ter consequências trágicas. O uso abusivo da EPO foi associado à morte de ciclistas competidores.31 O uso da EPO ou da darbepoetina para melhorar o desempenho atlético foi banido pelo International Olympic Committee. Ambas as substâncias podem ser detectadas na urina por focagem isoelétrica.34,35

 

O autor não mantém relações comerciais com os fabricantes de produtos e prestadores de serviços mencionados neste capítulo.

 

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