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Encefalopatia anóxica um relato da própria paciente

Autor:

Lucas Santos Zambon

Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.

Última revisão: 20/10/2008

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Encefalopatia Anóxica: Um erro diagnóstico relatado pela própria paciente

 

Coma e Delirium Iatrogênicos: Um Erro Quase Fatal

Iatrogenic delirium and coma: a near miss. Chest 2008; 133:1217–1220 [Link para o Abstract]

 

Fator de Impacto da Revista (Chest): 3,924

 

Contexto Clínico

            A segurança do paciente é um tema emergente em todo o mundo. Relatos cada vez mais contundentes mostram o quão inseguras são nossas práticas de assistência aos pacientes principalmente no meio hospitalar2. Pessoas podem morrer e tornar-se permanentemente incapacitadas como fruto de erros na assistência médica. Muitas são as causas, mas se levarmos em conta erros ou atrasos em diagnósticos estamos diante de cerca de 10% de todas as causas de erros na assistência. Ou seja, a cada dez “iatrogenias” ou falhas na assistência médica, uma é causada por erro ou atraso no diagnóstico3.

 

O Relato de Caso

            Uma paciente do sexo feminino de 66 anos procura um pronto-socorro (PS) por dor torácica. É realizado um diagnóstico de infarto agudo do miocárdio (IAM) de parede anterior. Ainda no PS a paciente começa a apresentar uma pressão arterial sistólica de 60 mmHg e evolui com parada cárdio-respiratória (PCR) em fibrilação ventricular (FV). Ela é ressuscitada com sucesso e enviada rapidamente para realização de cateterismo cardíaco.  No exame é constatado que a artéria descendente anterior (DA) tem estenose crítica, a coronária direita tem oclusão completa e que a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) é de 35%. Durante a tentativa de angioplastia da DA ocorre dissecção da artéria e a paciente evolui com choque cardiogênico. É instalado então um balão intra-aórtico e a paciente é rapidamente transferida para a realização de revascularização do miocárdio.

No 4º dia pós-operatório a paciente ainda estava sob intubação orotraqueal e responsiva apenas a estímulos dolororos. Foi solicitado um eletroencefalograma (EEG) que mostrava ondas trifásicas, o que foi interpretado como um prognóstico ruim para a paciente. Durante a evolução a paciente não chegou a recobrar a consciência. Em alguns momentos apresentava movimentos de agitação, sendo feita restrição física e sedação com lorazepam. O marido esteve todo o tempo ao lado do leito e relatava que sentia a esposa apertar sua mão e acenar com a cabeça, mas nada disso foi presenciado pela equipe da UTI. Diversos médicos de diferentes especialidades, incluindo neurologistas, avaliaram o caso e todos concluíam em suas avaliações que a paciente estava em encefalopatia anóxica e tinha um prognóstico ruim. O marido insistia que a esposa o reconhecia e apertava sua mão como se o reconhecesse e de tanto insistir conseguiu transferir a esposa, no 27º PO, para outro hospital em busca de uma segunda opinião.

            A paciente foi admitida e na avaliação inicial estava hemodinamicamente estável, um pouco febril e recebendo suporte ventilatório via traqueostomia, arresponsiva e com restrição física nos punhos. O exame físico não tinha maiores alterações exceto as cicatrizes das feridas operatórias. Não havia nenhuma alteração neurológica focal, com resposta inespecífica a estímulos dolorosos, sem sinais de acometimento de neurônio motor superior. Seus exames laboratoriais mais significativos eram uma hemoglobina de 9,6g/dL e aumento de fosfatase alcalina e transaminases.

            Foi aventada a hipótese diagnóstica de alteração de nível de consciência secundário a medicamentos. Inicialmente realizou-se um teste com duas doses de 0,4mg de naloxone que não produziu resultado. Na seqüência foram administradas cinco doses de 0,2mg de flumazenil. Entre a 4ª e 5ª doses a paciente acordou. O cuff da traqueostomia foi desinsuflado. Perguntaram à paciente seu nome. Ela respondeu: “Shirley. Meu nome é Shirley Adams”. A paciente foi para casa em setembro de 1997 após 8 dias de internação hospitalar, no 35º PO, com um ecocardiograma que mostrou um ventrículo esquerdo com tamanho normal e função preservada.

 

Discussão do Caso

Vamos tentar discutir rapidamente a origem do erro. Uma paciente sendo desmamada de sedação instituída por conta de ventilação mecânica pode ter mais de uma evolução (figura 1). A mais simples ocorre nos casos em que a medida que a sedação vai sendo diminuída, o paciente gradativamente vai despertando e atinge nível de consciência satisfatório sem intercorrências (linha A). Mas o que ocorre mais vezes na prática com sedação de longa duração é o fenômeno rebote (linha B). A paciente descrita ficou 27 dias em um ciclo de alternância entre o coma e o delirium, ambos induzidos pelo lorazepam (as setas pequenas mostram os momentos em que ela recebia novas doses de lorazepam). A interrupção diária da sedação não evita esse fenômeno de agitação, sendo a melhor estratégia o uso de neurolépticos para controle da agitação. Aqui se configurou um erro de condução da situação clínica da paciente, gerando uma investigação que resultou num diagnóstico errado de encefalopatia anóxica (o EEG e a impressão clínica do caso). Os esforços em se buscar uma solução para a alteração de nível de consciência foram sustentados pela figura do marido. O simples uso de um antagonista reverteu a situação neurológica da paciente permitindo sua recuperação.

 

Figura 1: Nível de consciência e sedação da paciente

 

Aplicação para a Prática Clínica

Apesar de estarmos diante de um relato de caso, o que pode ser criticado em se tratando do nível de evidência que isso gera, alguns fatos tornam essa publicação um texto para profunda reflexão. Primeiro ponto: a paciente e seu marido são co-autores deste relato de caso, escrito 10 anos após o ocorrido, em uma publicação sem precedentes de uma sessão da revista Chest intitulada “Transparência em Cuidados de Saúde”. Se resumirmos rapidamente este caso, lembraremos que esta paciente foi taxada como portadora de encefalopatia anóxica, e sem prognóstico. Graças a umas poucas doses de antagonista para benzodiazepínicos, ela pôde 10 anos depois relatar seu caso em uma publicação científica, junto com seu marido que vivenciou toda a evolução do caso. Um caso que tinha alta morbidade tendo em vista que foi um IAM que levou a PCR e depois evoluiu com choque cardiogênico precisando de revascularização miocárdica de emergência. Nesse ponto, graças a condutas que foram adequadamente seguidas, a paciente pode receber alta para casa com uma função cardíaca normal. Mas ocorreram erros. De condução do caso e de diagnóstico. Erros que quase “sepultaram” uma paciente que recuperou completamente suas atividades de vida após a insistência do marido que não desistiu de achar que estava correto.

O próprio marido descreve lições no relato de caso. Como acompanhante ele relata a importância de se estar próximo ao familiar, de tirar dúvidas quanto ao tratamento médico, de achar um médico que valorize a impressão de quem conhece a pessoa, e de se pedir uma segunda opinião se necessário. E aos médicos ele faz um pedido: deixar de lado o ego e a arrogância e dividir mais informações com a família e com a equipe que cuida do caso, sejam outros médicos, sejam enfermeiros.

           

Bibliografia

1. Dunn WF, Adams SC, Adams RW. Iatrogenic delirium and coma: a near miss. Chest 2008; 133:1217–1220 [Link para o Abstract]

2.Kohn LT, Corrigan JM, Donaldson MS. To Err Is Human: Building a Safer Health System. Committee on Quality of Health Care in America, Institute of Medicine, 2000. [Link livre para o Livro Online]

3.Mendes, W. et al. Revisão dos Estudos de Avaliação da Ocorrência  de Eventos Adversos em Hospitais. Rev Bras Epidemiol 2005; 8(4): 393-406. [Link livre para o Artigo Original].

 

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