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Hipocalemia

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 13/06/2011

Comentários de assinantes: 1

Quadro clínico

Paciente de 45 anos de idade em tratamento de HAS em uso de clortalidona 50 mg ao dia e furosemida 40 mg ao dia. Nos últimos meses, vem evoluindo com quadro de fraqueza muscular e mialgias progressivas; exames laboratoriais revelam potássio de 1,9 mEq/L e CPK de 4.000 U/L.

Paciente com quadro de hipocalemia, provavelmente secundária ao uso de diuréticos, que inclusive no caso da clortalidona, está em dose maior que as usuais para tratamento de HAS. Apresenta aumento de enzimas musculares que provavelmente são secundárias a miopatia ou rabdomiólise secundária à hipocalemia.

A seguir, serão resumidamente discutidas a avaliação, as etiologias e a abordagem do paciente com hipocalemia.

 

Hipocalemia

A hipocalemia é um problema relativamente comum. A entrada do potássio no organismo ocorre por via oral ou via soluções endovenosas. Sua concentração é influenciada pela translocação para as células e cerca de 95% do potássio corpóreo se encontra no meio intracelular. Em quantidades absolutas, há uma concentração intracelular de potássio de 140 mEq/L e no meio extracelular, 3,5 a 5 mEq/L. Esse gradiente entre os dois meios é responsável pela excitabilidade nervosa e muscular, que inclui o miocárdio. Pequenas alterações no potássio sérico podem implicar profunda alteração na condução e excitabilidade do coração, podendo alterar a função e o ritmo cardíacos e inclusive causar parada cardiorrespiratória. A hipocalemia é definida por uma concentração sérica de potássio menor que 3,5 mEq/L, e ocorre por deficiência de K corpóreo ou por desequilíbrio do meio extracelular para intracelular. Os principais fatores que facilitam o aparecimento de hipocalemia são citados a seguir.

 

Diminuição da ingesta de potássio

Raramente é causa de hipocalemia, pois a ingesta diária é de cerca de 40 a 120 mEq ao dia, sendo a maior parte excretada pela via urinária, mas esta excreção pode diminuir para 5 a 25 mEq ao dia em pacientes com baixa ingestão de potássio.

 

Aumento da entrada do potássio para meio intracelular

Pode ser influenciada por vários fatores, entre eles:

 

1.     Equílibrio ácido-básico: na vigência de alcalose, ocorre aumento da entrada do potássio nas células em troca de íons H+ para neutralizar o aumento do PH; o inverso ocorre em pacientes com acidose metabólica.

2.     Insulina: a ação da insulina se dá principalmente no músculo esquelético com aumento da Na/K/ATPase e consequente aumento da entrada de potássio no meio intracelular. Assim, o aumento da insulina predispõe a hipocalemia, o que é particularmente observado em pacientes na fase de recuperação de cetoacidose diabética ou hiperglicemias severas.

3.     Tônus adrenérgico: as catecolaminas, como a epinefrina via receptor beta-2, promovem a entrada do potássio para o meio intracelular predispondo à hipocalemia.

4.     Aumento da aldosterona: aumenta a atividade da Na/K/ATPase com entrada do potássio no meio intracelular. O excesso de mineralocorticosteroide também aumenta perda renal de potássio.

5.     Paralisia periódica hipocalêmica: condição também associada com desequilíbrio de potássio para meio intracelula; ocorre por defeito canais iônicos musculares; em muitos casos, é associada com hipertireoidismo que, por si só, pode causar este desequilíbrio pelo aumento do tônus catecolaminérgico.

6.     Aumento importante na produção de células sanguíneas: aumento agudo de produção de células hematopoiéticas, como acontece na reposição de vitamina B12 e ácido fólico na anemia megaloblástica, leva a aumento da captura de potássio por estas novas células e hipocalemia.

7.     Hipotermia: a hipotermia desloca o potássio para o meio intracelular.

8.     Intoxicação por bário: bloqueia os canais de potássio nas células impedindo a translocação do potássio para o meio extracelular.

9.     Cloroquina: ocorre hipocalemia por deslocamento do potássio para meio intracelular, por mecanismo não completamente explicado e que é exacerbado pelas catecolaminas.

 

Perdas extrarrenais de potássio

Podem ocorrer via gastrointestinal por meio de diarreia e vômitos. A gastroenterite infecciosa é uma causa comum de hipocalemia, bem como a diarreia por uso de laxativos, preparo de colonoscopia e pólipos secretores. Os vipomas em particular são tumores associados com a secreção de polipeptídeo intestinal associado com diarreia abundante e hipocalemia grave. Vômitos em grande quantidade, por sua vez, podem causar hipovolemia e alcalose, levando ao hiperaldosteronismo secundário que, associado à bicarbonatúria, pode ocasionar grande perda urinária de potássio.

 

Perdas renais de potássio

Podem ocorrer por múltiplos mecanismos. A maior parte da excreção renal ocorre pela secreção de potássio no néfron distal principalmente em células do ducto coletor. Esta perda é influenciada por ação da aldosterona e pela quantidade de sódio e água que chega aos néfrons. O uso de diuréticos e diurese osmótica, como as que ocorrem em hiperglicemias graves, são outra causa de hipocalemia.

As síndromes com excesso de mineralocorticosteroides incluem o hiperaldosteronismo primário, em que as suprarrenais produzem aldosterona independentemente da secreção de renina renal, estenose da artéria renal ou hipertensão renovascular, cujo aumento da aldosterona decorre da produção aumentada de renina; os tumores produtores de renina também apresentam efeito semelhante. A deficiência da enzima 11-beta-hidroxiesteroide-desidrogenase ou síndrome do excesso aparente de mineralocorticosteroide, é causado pela incapacidade de converter cortisol em cortisona. O cortisol, ao contrário da cortisona, age no receptor mineralocorticosteroide com ação similar à da aldosterona, causando hipertensão, hipocalemia, alcalose metabólica e, em crianças, dificuldade em ganhar peso.

A síndrome de Liddle é uma causa de hipocalemia associada com reabsorção de sódio e secreção de potássio. Trata-se de uma rara doença genética, autossômica dominante, que altera a função dos canais de sódio do túbulo coletor e causa hipocalemia, alcalose metabólica e aumento da pressão arterial.

Como já discutido, perda de íons H+ associada a vômitos também aumenta a perda de potássio via urinária pela bicarbonatúria. Outra causa de perda de potássio urinário é a hipomagnesemia. O mecanismo desta perda não é completamente conhecido, mas parece envolver os canais de potássio celulares.

A anfotericina está associada à hipocalemia por perda de potássio urinário, que ocorre em até 50% dos pacientes em uso da medicação. Ocorre por interação do medicamento com esteroides das membranas tubulares renais, e também pode ocorrer acidose tubular renal associada.

As nefropatias perdedoras de sal também podem causar hipocalemia por mecanismos similares aos dos diuréticos. As duas principais são as síndromes de Bartter e Gittelman e doenças tubulointersticiais.

 

Outras causas

Perda de potássio pelo suor pode ocorrer principalmente em ambientes quentes. Pacientes com fibrose cística em particular são suscetíveis a hipocalemia por este mecanismo. Perdas por diálise também são outro mecanismo raro de hipocalemia, assim como plasmaférese, sobretudo quando usado albumina como fluido de reposição.

A reabsorção de sódio nos ductos coletores ocorre por canais seletivos de sódio, criando carga eletronegativa que promove secreção de hidrogênio e potássio.

Didaticamente, as causas de hipocalemia podem ser divididas em causas associadas com HAS ou sem HAS (Tabela 1).

 

Tabela 1. Causas de hipocalemia

Pacientes com hipocalemia e HAS

Pacientes com hipocalemia sem HAS (PA normal)

Hiperaldosteronismo com HAS: hiperaldosteronismo primário

Acidose tubular renal do tipo I distal

HAS maligna

Acidose tubular renal proximal do tipo II

HAS renovascular com estenose da artéria renal

Síndrome de Barter

Tumor secretor de renina

Síndrome de Gittelman

HAS renal e uso de diuréticos

Hipomagnesemia

Síndrome de Liddle

Uso de anfotericina B

Deficiência de 11-beta-hidroxiesteroide

Medicamentos como beta-agonistas e diuréticos (obs.: paciente pode ter HAS prévia)

Hiperplasia suprarrenal congênita

Diarreia e/ou vômitos

 

Perda por sudorese excessiva

 

Paralisia periódica hipocalêmica

 

Insulinoterapia

 

Reposição de vitamina B12 e ácido fólico

 

Manifestações clínicas

Assim como na hipercalemia, os principais efeitos deletérios são em nervos e músculos, inclusive no miocárdio.

As manifestações clínicas são dependentes.

 

1.     Severidade da hipocalemia: raramente há qualquer manifestação com potássio maior que 3 mEq/L, exceto em pacientes com instalação abrupta.

2.     Velocidade de instalação da hipocalemia: quando a hipocalemia tem instalação rápida, as manifestações podem aparecer com concentrações maiores de potássio sérico. Um exemplo são os pacientes com paralisia periódica hipocalêmica, em que há manifestações mais graves para uma mesma concentração sérica de potássio que não causa sintomas em um paciente em uso crônico de diuréticos.

3.     Presença de doenças associadas: cardiopatia prévia, principalmente isquêmica, idade avançada e uso de digital aumentam o risco de complicações da hipocalemia.

4.     Nas hipocalemias mais graves (< 3 mEq/L) podem surgir:

         mialgia e fraqueza muscular, podendo evoluir para tetraplegia flácida. Isso ocorre por causa do menor potencial de membrana em repouso ocasionado pela hipocalemia, dificultando a despolarização; em geral, só ocorre com níveis de potássio abaixo de 2,5 mEq/L;

         rabdomiólise, eventualmente com mioglobinúria e insuficiência renal por lesão pela mioglobina, decorre da inibição da liberação do potássio intracelular que ocorre na hipocalemia; esta saída de potássio das células facilita a vasodilatação e a perda deste efeito pode levar a isquemia com lesão muscular;

         íleo paralítico: associado com vômitos e distensão abdominal, ocorre pelas alterações de repolarização muscular;

         poliúria: a hipocalemia pode levar à tubulopatia e pode dificultar a reabsorção de água pelos ductos coletores, causando diabetes insípido nefrogênico secundário;

         intolerância à glicose: a hipocalemia dificulta a secreção de insulina pelo pâncreas, efeito que pode explicar, pelo menos em parte, a piora do controle do diabetes em pacientes em uso de diuréticos tiazídicos;

         alcalose metabólica: pode ser tanto causa como consequência da hipocalemia, pois pode aumentar a reabsorção tubular proximal de bicarbonato e estimular a produção e a excreção de ácido pelo túbulo distal (o túbulo distal aumenta a reabsorção de K+ em troca da excreção de H+); assim, manifestações de alcalose como sonolência, espasmos musculares entre outras são comuns nestes pacientes;

         distúrbios do ritmo cardíaco: incluem extrassístoles ou taquiarritmias. Alterações características no ECG podem ocorrer, as quais serão discutidas no item Exames complementares, a seguir.

 

Exames complementares

Exames complementares podem ser úteis; por esse motivo, serão aqui discutidas suas aplicações e indicações.

 

ECG

Não existe uma boa correlação entre a hipocalemia e alterações de ECG. Isso significa que pacientes com potássio de 2,8 mEq/L podem ter onda U proeminente, enquanto outros pacientes com potássio em torno de 2 mEq/L podem não apresentar tal alteração. De modo geral, as alterações eletrocardiográficas podem ser sutis, mas devem ser prontamente reconhecidas. As alterações incluem achatamento da onda T, aparecimento das ondas U, depressão do segmento ST, prolongamento do intervalo PR e depois do intervalo QU, arritmias e, por fim, parada cardíaca que pode ser principalmente em atividade elétrica sem pulso ou assistolia.

Apesar da correlação entre os níveis de potássio e as alterações eletrocardiográficas ser imperfeita, a Figura 1 sumariza esta relação.

 

Figura 1. Relação entre níveis de potássio e alterações eletrocardiográficas.

 

 

Outros exames

Alterações de glicemia e outros eletrólitos podem ocorrer concomitantemente à hipocalemia. Assim, indicam-se as dosagens de glicemia, sódio, magnésio, cálcio e função renal.

 

Avaliação da excreção urinária de potássio

O modo mais acurado de medir a secreção de potássio urinário é por meio de coleções urinárias de 24 horas. Em pacientes com hipocalemia, a excreção urinária é de 25- a 30 mEq ao dia; perdas diárias acima disso indicam pelo menos uma contribuição da perda urinária no aparecimento da hipocalemia. A mínima concentração urinária que se consegue obter é 5 a 15 mEq aodia; valores neste nível confirmam que a causa da hipocalemia não é por perda urinária. A relação do potássio urinário com a creatinina também pode ser avaliada e, em geral, esta relação é menor que 13 mEq/g de creatinina.

O gradiente urinário transtubular de potássio (TTKG) é uma fórmula que pode ser utilizada para avaliação destes pacientes. A fórmula é a seguinte:

 

TTKG = K+ urinário/K+ plasmático

Osmolalidade urinária/osmolalidade plasmática

 

Espera-se que, em situações de hipocalemia, os rins sejam capazes de reabsorver mais de 90% do potássio filtrado (excretar < 15 mEq ao dia). hipocalemia com um TTKG > 4 sugere que a depleção de potássio é de causa renal. Em indivíduos normais em dieta regular, este gradiente é de 8 a 9; quando estes mesmos indivíduos recebem sobrecarga de potássio, este gradiente chega a 11.

 

Gasometria arterial

Pode ajudar no diagnóstico diferencial da hipocalemia:

 

         acidose metabólica sem perda de potássio urinário ocorre sobretudo em diarreias graves por laxativos e adenomas vilosos;

         acidose metabólica com perda de potássio pode ocorrer em cetoacidose diabética e acidose tubular renal dos tipos 1 e 2;

         alcalose metabólica sem perda de potássio urinário ocorre em pacientes com vômitos com perda de suco gástrico; também pode ocorrer em alguns quadros de uso de laxativos (mais comum em acidose metabólica);

         alcalose metabólica com perda de potássio urinário e pressão arterial normal ocorre em paciente com vômitos e síndromes de Bartter e de Gitelman;

         alcalose metabólica com perda de potássio urinário e HAS ocorre em pacientes com hipertensão em uso de diuréticos, doença renovascular e pacientes com excesso de mineralocorticosteroides.

 

Tratamento

O tratamento da hipocalemia inclui o tratamento da doença de base e a reposição do potássio, lembrando que a dose oral não deve exceder 20 a 40 mEq de potássio. A reposição endovenosa é indicada se a hipocalemia é severa ou sintomática, com potássio menor que 3 mEq/L.

O grau de depleção de potássio corpóreo é variável, mas, como regra geral, tem-se que para cada 1 mEq/L de redução na concentração sérica há um déficit corpóreo total de 200 a 400 mEq. Isso tem uma implicação: após correção da concentração sérica do potássio, podem ser necessários vários dias de reposição para recompor os estoques corpóreos do íon no compartimento intracelular.

Algumas regras básicas devem ser lembradas ao realizar a reposição:

 

         uso da via oral, sobretudo se o potássio estiver acima de 3 mEq/L;

         sem soluções endovenosas de potássio muito concentradas, pelo risco de flebite;

         concentração máxima em veia periférica de 40 mEq/L;

         concentração máxima em acesso venoso central: 60 mEq/L;

         velocidade ideal de reposição: 5 a 10 mEq/hora;

         velocidade máxima de reposição: 20 a 30 mEq/hora;

         sem reposição em solução glicosada, pois aumenta a secreção de insulina e pode piorar a hipocalemia;

         como o déficit corpóreo costuma ser importante, a reposição deve ser mantida por dias a semanas.

 

As principais soluções de reposição de potássio, e também as mais usadas, são as seguintes:

 

         KCl xarope 6%: 15 mL contêm 12 mEq de potássio. Dose: 10 a 20 mL após às refeições, 3 a 4 vezes ao dia.

         KCl comprimidos: 1 comprimido tem 6 mEq de potássio. Dose: 1 a 2 comprimidos após às refeições, 3 a 4 vezes ao dia.

         KCl 19,1% injetável: cada 1 mL tem 2,5 mEq de potássio. As ampolas são de 10 mL, portanto, cada ampola tem 25 mEq de potássio, estas são diluídas em solução fisiológica.

 

Neste caso, o paciente faz uso de dois diuréticos que potencializam a perda de potássio. A retirada destes é o primeiro passo na resolução do caso, e a reposição de potássio está indicada haja vista a gravidade da hipocalemia.

 

Prescrição

Tabela 2. Prescrição clínica sugerida para este paciente

Prescrição

Comentário

SF 0,9% 1.000 mL com 15 mL de KCl 19,1%

15 mL equivalem a 1,5 ampolas de KCl 19,1% com concentração, portanto, de 37,5 mEq/L; em caso de acesso venoso central, poderia ser usada dosagem maior de KCl na solução (até 60 mEq/L).

 

Medicamentos

1.     KCl xarope 6%: 15 mL contêm 12 mEq de potássio. Dose: 10 a 20 mL após as refeições, 3 a 4 vezes ao dia.

2.     KCl comprimidos: 1 comprimido tem 6mEq de potássio. Dose: 1 a 2 comprimidos após as refeições, 3 a 4 vezes ao dia.

3.     KCl 19,1% IV: cada 1 mL tem 2,5 mEq de potássio. As ampolas são de 10 mL, portanto, cada ampola tem 25 mEq de potássio, estas são diluídas em solução fisiológica.

Comentários

Por: Dr. Luiz Fernando Menegotto em 11/06/2013 às 05:57:12

"Como sempre, excelente artigo de revisão. Parabens !!!"

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