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Dores recorrentes em membros em crianças e adolescentes

Autor:

Ana Cecilia Silveira Lins Sucupira

Médica pediatra. Professora da disciplina de Atenção Primária à Saúde (APS) I da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Matriciadora de Saúde da Criança da Residência em Saúde da Família e Comunidade da FMUSP. Especialista em Saúde Pública pela USP. Mestre em Medicina Preventiva pela USP. Doutora em Pediatria pela USP.

Última revisão: 31/10/2012

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Versão resumida do capítulo original, o qual pode ser consultado, na íntegra, em Gusso & Lopes, Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática (2 vols., Porto Alegre: Artmed, 2012). Obra indicada também para consulta a outros temas de Medicina de Família e Comunidade (MFC), pela abrangência e a forma como o conteúdo é abordado, além de reunir importante grupo de autores.

  

Do que se trata

         As dores recorrentes nos membros são uma queixa bastante frequente em crianças e adolescentes. Não há estudos populacionais no Brasil que indiquem a prevalência dessa queixa. De acordo com o estudo de Oster e Nielsen, a maior incidência ocorre entre os escolares de 6 a 10 anos de idade, com uma prevalência estimada de 15 a 20%. Em apenas 3 a 4% dos casos, pode-se identificar uma doença orgânica como causa da dor.1

         Em crianças, utiliza-se o conceito de dor recorrente, sendo as dores persistentes ou crônicas raras, acontecendo, geralmente, naquelas com doenças de base. Utilizando a definição de Naish e Apley, a dor recorrente nos membros trata-se de um quadro de pelo menos três episódios de dor, não articular, durante um período mínimo de três meses, de intensidade suficiente para interferir nas atividades habituais da criança.2

 

O que pode ocasionar

         Na literatura, há várias tentativas de explicar essas dores, entretanto a etiologia e a fisiopatologia das dores recorrentes nos membros ainda não estão esclarecidas. Alguns autores colocam essas dores entre as síndromes dolorosas musculoesqueléticas não inflamatórias da criança.3, 4 A hipótese aceita é que seja uma das formas de expressão do modo como a criança e o adolescente vivenciam as situações do dia a dia, principalmente os problemas que enfrentam.

 

Formas clínicas

         Na avaliação da criança e do adolescente com queixa de dor recorrente nos membros, a história, o exame físico e os exames complementares vão direcionando o raciocínio clínico para um diagnóstico.

         Dois grandes grupos de crianças e adolescentes com queixa de dor recorrente nos membros podem ser identificados: com e sem manifestações sistêmicas, sendo esse último o mais frequente.

         No grupo sem manifestações sistêmicas, destacam-se as chamadas “dores de crescimento”, a fibromialgia juvenil, a síndrome da hipermobilidade articular juvenil e a síndrome do superuso.

 

Dor recorrente inespecífica nos membros (“dor de crescimento”)

         Não existe um consenso sobre a denominação para os quadros de dor recorrente nos membros sem etiologia orgânica, em função da dificuldade de se estabelecer uma etiologia definida para essas dores. Na literatura, o termo mais encontrado nos textos sobre esse tema é o de dores de crescimento, o qual foi referido inicialmente em 1823, por Duchamps, em seu texto Maladies de la Croissance.5-7

         Vários autores reconhecem que se trata de um nome inadequado, por não haver nenhuma correlação com o processo de crescimento.3, 7 Naish e Apley, em 1951, já questionavam a inadequação do termo, uma vez que eles descobriram que a ocorrência da dor era mais frequente entre 8 e 12 anos, período da infância no qual a velocidade de crescimento não é acelerada.2

         A ausência de correlação entre o crescimento e a queixa de dor foi demonstrada por Oster e Nielsen, em 1972, em estudo no qual o crescimento foi avaliado pela altura, peso e a relação peso/altura das crianças estudadas.1

         Neste texto, adotou-se o termo “dor recorrente inespecífica nos membros”, visando a desvincular a queixa de dor do processo de crescimento. Na prática, são as próprias famílias que questionam o médico quando ele afirma que se trata de “dor de crescimento”: “Mas, doutor, como pode ser isso, se ele nem está crescendo?”.

         Lowe e Hashkes3 referem que as dores recorrentes inespecíficas nos membros podem ser classificadas como uma das síndromes dolorosas não inflamatórias da criança. Algumas outras hipóteses tentam explicar a fisiopatologia desse quadro de dor, tais como diminuição do limiar de dor, alterações na perfusão vascular, anormalidades anatômicas posturais ou ortopédicas, superuso e ainda uma possível associação com a hipermobilidade articular.3, 7-10 Entretanto, para nenhuma dessas hipóteses há suficientes evidências que as coloquem como possíveis etiologias ou mecanismos fisiopatológicos para as dores recorrentes nos membros.

         Evans e Scutter em estudo realizado na Austrália, com crianças de 4 a 6 anos, concluem que não há suporte para a teoria de que as dores de crescimento tenham relação significativa com anormalidades posturais nos pés.6 Moysés e colaboradores também não encontraram relação entre alterações posturais e dor nos membros em crianças atendidas no ambulatório de pediatria do Instituto da Criança de São Paulo.11 Horlé e Wood referem que as dores de crescimento fazem parte do que eles chamam de síndromes dolorosas musculoesqueléticas não inflamatórias.4 Hashkes e colaboradores encontraram maior quantidade de pontos dolorosos e baixo limiar de dor nos membros nas crianças com dores de crescimento do que naquelas sem dores, indicando que as dores de crescimento podem representar uma variação da síndrome de dor não inflamatória das crianças.8 Uziel e colaboradores também confirmam esse baixo limiar nessas crianças e consideram as dores de crescimento como uma síndrome de amplificação da dor na infância.9

         Viswanathan e Khubchandani sugerem que haja uma forte associação entre hipermobilidade articular e dores de crescimento em crianças em idade escolar e que é possível que a hipermobilidade articular tenha um papel na patogênese das dores de crescimento. Entretanto, mais estudos são necessários para estabelecer o significado clínico dessa associação.7

         Vários autores associam essas dores a problemas emocionais ou a alterações na dinâmica familiar.3 Na perspectiva adotada neste texto, essas dores podem ser uma das formas de expressão do modo como a criança e o adolescente reagem às situações do dia a dia, principalmente aos problemas que enfrentam.5, 12, 13

         Na literatura, há referência de que as dores recorrentes inespecíficas nos membros seriam um diagnóstico de exclusão, entretanto, atualmente aceita-se que há um quadro clínico bem definido que comporta critérios de inclusão e de exclusão; dentre esses últimos, destacam-se a presença de manifestações sistêmicas e outros sinais que indicam a presença de uma doença orgânica.3 Os critérios de Peterson para definir as dores recorrentes inespecíficas nos membros envolvem dores não articulares intermitentes, que acometem os membros inferiores, bilaterais, que acontecem geralmente no final da tarde ou durante a noite, sem alterações ao exame físico e com exames laboratoriais normais.14 As características mais importantes apresentadas por crianças e adolescentes com essa queixa estão no Quadro 107.1.

 

Quadro 107.1. Características das dores recorrentes inespecíficas nos membros

Mais frequentes em crianças de 6 a 13 anos de idade, mas podem estar presentes a partir dos 3 anos.

Dores musculares intermitentes, de intensidade e frequência variáveis.

A dor habitualmente ocorre nos membros inferiores, mas pode surgir também nos membros superiores e é sempre não articular.

Localização: principalmente na coxa, na face anterior da tíbia, no cavo poplíteo e nas panturrilhas.

Dor de caráter difuso, geralmente bilateral e pode ocorrer ora em um membro, ora no outro, ora em ambos.

A dor é mais frequente no final do dia ou à noite e pode despertar a criança do sono noturno, sendo que, na manhã seguinte, a criança acorda sem dor.

Correlação variável com esforço físico.

Boa resposta a calor, massagem e analgésicos.

Sem história de traumatismos, nem de sinais e sintomas de comprometimento sistêmico.

Exame físico normal.

Fonte: Zuccolotto e colaboradores.5

 

Fibromialgia juvenil

         Na literatura, começam a aparecer referências à ocorrência de fibromialgia em adolescentes e crianças, entretanto são quadros mais raros de queixa de dor recorrente nos membros. A descrição e os critérios para os pontos dolorosos são definidos pelo American College of Rheumatology (ACR) e são os mesmos utilizados para os adultos (ver Capítulo 206).5 No estudo de Yunus e Masi, esse diagnóstico é mais frequente no sexo feminino, e a idade de início dos sintomas varia de 5 a 17 anos, sendo, em média, 12,3 anos. Eles usaram critérios diferentes do ACR e encontraram os pontos dolorosos mais referidos localizados na região cervical, na interlinha medial dos joelhos e no epicôndilo lateral.15

         Como a fibromialgia em adultos, a fibromialgia juvenil é um quadro associado a estresse, fadiga, frio e ansiedade. Presume-se que, em crianças e adolescentes, os fatores causais também estejam relacionados a situações de estresse e tensão diante dos inúmeros compromissos que as crianças e adolescentes vêm assumindo nos dias de hoje, tais como aulas de idiomas, dança, computação, entre outras. O médico deve pesquisar as relações familiares e, com a abordagem aqui proposta, identificar situações que possam estar desencadeando essas dores. Em crianças, não se recomenda o uso de medicamentos pelos seus efeitos colaterais, sendo mais importante intervir nos fatores que estão gerando o estresse, a fadiga e a ansiedade.5

 

Síndrome da hipermobilidade articular benigna (SHB)

         Trata-se de uma queixa de dores musculoesqueléticas recorrentes difusas que podem ter um componente periarticular ou ainda artralgia e artrite. A dor costuma ocorrer em uma ou duas articulações, recorrendo no mesmo local. Para o diagnóstico de SHB, é preciso afastar sinais que indiquem o diagnóstico de síndrome de Marfan e de Ehlers-Danlos, que são doenças hereditárias do tecido conjuntivo.

         Em crianças menores de 5 anos, certo grau de hipermobilidade é um achado comum, por isso esse diagnóstico só deverá ser feito a partir dessa idade. Na prática, a hipermobilidade encontrada na SHB é uma variação normal da mobilidade articular.

         Na abordagem dessas crianças, deve-se ter o cuidado de tranquilizar a criança/adolescente e os pais, salientando o caráter benigno dessa entidade. O maior problema é que são exatamente essas crianças que têm um melhor desempenho em esportes como ginástica olímpica, balé e capoeira, atividades que devem ser evitadas, pois, a médio e longo prazo, provocam microtraumatismos, ruptura de ligamentos e de tendões e artrose precoce. Recomenda-se fisioterapia ativa e/ou prática de natação para fortalecer a musculatura periarticular.5 Analgésicos só devem ser utilizados em casos de dor intensa.

 

Dor localizada

         As queixas de dores nos membros recorrentes localizadas são menos frequentes em crianças e, por terem pontos dolorosos fixos, já apresentam um sinal de alerta vermelho que indica a necessidade de prosseguir na investigação da causa da dor. Em geral, na história e exame físico, já estão presentes sinais e sintomas que direcionam para o diagnóstico.

         Entre os quadros de dores localizadas nos membros mais frequentes, destacam-se as osteocondrites, os tumores ósseos e a síndrome de superuso. Essa última está associada à prática de esportes específicos ou ao uso prolongado de computadores e jogos eletrônicos.

         Nos casos em que há manifestações sistêmicas ou sinais de alerta, é preciso se estar atento para os sinais e sintomas mais importantes presentes nas principais categorias de doenças orgânicas (ver Quadro 107.2).

 

Quadro 107.2. Sinais e sintomas que sugerem outros diagnósticos que evoluem com dor nos membros

Sintomas e sinais

Diagnósticos possíveis

 

Doenças reumatológicas

Infecção

Trauma

Trauma “não acidental”**

Neoplasias

Doença congênita

Outras

Sintomas

 

 

 

 

 

 

 

Trauma

+

+

Dor assimétrica

+

+

+

+

+

+

+

Dor óssea

+

+

+

+

+

História discordante do exame físico

+

+

Fadiga

+

+

+

+

FSSL*

+

+

+

Claudicação

+

+

+

+

+

+

+

Dor que continua pela manhã

+

+

+

+

+

+

+

Doença infecciosa recente

+

+

Perda de peso

+

+

Sinais

 

 

 

 

 

 

 

Aparência doente

+

+

+

Movimentação anormal das articulações

+

+

+

+

Massa abdominal

+

+

Artrite

+

+

+

Hepatoesplenomegalia

+

+

+

Claudicação

+

+

+

+

+

+

+

Linfadenopatia

+

+

+

Rash

+

+

+

* FSSL – febre sem sinais localizatórios.

** Trauma “não acidental”: família não admite (abuso) violência. Fonte: Modificado de Lowe e Hashkes.3

 

O que fazer

Anamnese

         A anamnese tradicional é insuficiente para a abordagem dessas crianças e adolescentes. A utilização de um modelo de anamnese ampliada, que possibilite conhecer em detalhes a queixa da dor, a criança/adolescente e o seu contexto familiar nas diversas dimensões psicoafetivas e sociais faz a consulta ter, por si só, um efeito terapêutico.12

         Com as perguntas mostradas nos Quadros 107.3 e 107.4, é possível identificar a duração da dor, sua frequência, sua localização, a relação dos episódios com o período do dia e o local onde ocorrem, os fatores de melhora e piora e como a dor vem evoluindo. Nas dores recorrentes nos membros, é possível identificar dores descritas como diferentes e que poderão ser caracterizadas como formigamento ou adormecimento. A intensidade é avaliada pela interferência nas atividades da criança/adolescente. A referência a um evento crítico, como o nascimento de um irmão ou a morte de um familiar, deve ser interpretada com cautela, pois pode não ter relação com a queixa e estar encobrindo os verdadeiros determinantes da dor.

 

Quadro 107.3. Anamnese de crianças e adolescentes com queixa de dor recorrente nos membros

Conhecendo a dor

Conhecendo a criança

Há quanto tempo tem essa dor?

Qual a sua rotina de vida? O que a criança/adolescente faz no seu dia a dia?

Como foi a 1a vez em que teve essa dor?

Quais as atividades preferidas?

Onde é a dor? Tem alguma irradiação?

Como é o temperamento da criança/adolescente?

Como é a dor?

Houve alguma mudança de comportamento recente?

Com que frequência ela ocorre?

Como é o relacionamento com os pais e irmãos?

Quando e onde ocorrem os episódios?

Como é o relacionamento com os colegas e professores?

Quais os principais desencadeantes da dor?

Como a criança/adolescente reage à dor?

O que faz a dor melhorar ou piorar?

O quanto a dor atrapalha a vida da criança/adolescente?

Existem outros sintomas associados, como febre, perda de peso, mal-estar?

 

A dor vem melhorando ou piorando?

 

Tem ou já teve outras queixas de dores recorrentes, como cefaleia e dor abdominal?

 

Há história recente de alguma virose?

 

 

Quadro 107.4 .anamnese de crianças e adolescentes com queixa de dor recorrente nos membros

Conhecendo a família

Como os pais costumam reagir diante da dor da criança/adolescente?

Costumam levar ao pronto-socorro? Já fizeram algum tipo de tratamento para a dor?

A família costuma dar medicamentos para a dor?

Como é o relacionamento dos pais com os filhos e com esse filho em especial?

Entre os parentes próximos, alguém tem queixa de dor ou doença crônica?

Houve algum evento crítico na família recentemente?

Como a família reage nos momentos de conflito?

 

         É frequente a associação, em uma mesma criança, de diferentes tipos de dor, o que pode ser identificado na história atual ou nos antecedentes pessoais da criança. É comum observar, nos familiares próximos, uma alta frequência de dores recorrentes. Essas famílias apresentam, também, uma prevalência maior de doenças crônicas, a tal ponto que Naish e Apley as chamaram de “famílias doloridas”.2

         Essa proposta de anamnese ampliada muitas vezes gera a queixa de que o tempo de consulta é insuficiente para o levantamento de todos esses dados. Não se trata, entretanto, de, na primeira consulta, completar todas as informações. É necessário retomar algumas questões da anamnese nas consultas subsequentes. É preciso dar tempo para que a família reflita e perceba os desencadeantes e a própria representação do sintoma no contexto familiar. Assim, deve-se informar, na consulta inicial, que outros encontros serão necessários para se ter uma conclusão sobre o diagnóstico.13

         Na abordagem da criança/adolescente com essa queixa, é importante entender os possíveis fatores que interferem na origem da dor, a partir do conhecimento das reações da criança ou do adolescente mediante as diferentes situações de conflito enfrentadas. Um aspecto característico é a queixa por parte da mesma criança/adolescente de outros tipos de dores recorrentes, como a cefaleia e a dor abdominal. Oster encontrou uma incidência de 39,2% de cefaleia e de dor abdominal em crianças com dores de crescimento.1

         A partir da anamnese ampliada e do exame físico completo, é possível estabelecer o diagnóstico de dor recorrente inespecífica nos membros. Não há necessidade de nenhum exame complementar, nem de encaminhamento para especialistas.3, 16

 

Identificando a hipótese diagnóstica da criança/adolescente e da família

         Apesar de essa ser uma queixa sem comprometimento orgânico, a dor é real, ou seja, a dor causa um sofrimento físico, assim como uma angústia e um medo de que seja uma doença grave. É preciso, portanto, entender como a criança/adolescente está vivenciando essa dor e como a família lida com essa situação. Nesse sentido, três perguntas são fundamentais de serem feitas, tanto para a criança/adolescente como para a família:

 

1.    “O que você acha que é a dor?” – Em geral, respondem que não acham nada.

2.    “O que você pensa que pode ser a causa da dor?” – Em geral, respondem que nunca pensaram nada.

3.    “O que você tem medo que seja essa dor?” – às vezes, ainda não se obtém uma resposta, sendo preciso explicitar: “Tem medo que seja um tumor?”. Nesse momento, a família costuma revelar seus temores.

 

         É importante esclarecer qual a hipótese diagnóstica que a família e mesmo a criança ou o adolescente elaboraram para a queixa de dor. Só assim ser· possível desfazer medos, angústias e todo o sofrimento que essa queixa provoca.

 

COMENTÁRIO

Dificuldades na abordagem da queixa de dores

Em investigação feita pela autora sobre as principais dificuldades que alguns médicos tinham na abordagem da queixa de dores recorrentes, foram obtidas as seguintes respostas:

 

               Explicar para a mãe que a causa não é orgânica.

               Verificar se a queixa é da mãe ou da criança.

               Afastar gravidade, diferenciar quando é um quadro orgânico ou não.

               Lidar com a pressão que as mães fazem: pedem investigação, exames e tratamentos medicamentosos.

               Informar o paciente quando não há causa orgânica, tranquilizar a mãe.

               Convencer os pais de que a dor é benigna.

               Lidar com a ansiedade da mãe e do paciente por um diagnóstico e uma resolução rápida.

 

         Pode-se acrescentar que a ansiedade também é do médico em achar um diagnóstico e uma resolução rápida. Fica evidente que o modelo biomédico não dá conta de lidar com a queixa de dores recorrentes em crianças e adolescentes, daí a importância da anamnese ampliada e do modelo centrado na pessoa.

 

Exame físico

         A realização de um exame físico completo e bem feito contribui para tranquilizar a família que percebe a importância que o profissional está dando à queixa, ao mesmo tempo em que busca identificar sinais que possam indicar a presença de manifestações sistêmicas que sugerem a presença de doenças específicas.

         Diante dessa queixa de dor, a avaliação do sistema musculoesquelético é fundamental e poderá ser feita observando-se a marcha, a postura, a movimentação, a posição que a criança/ adolescente assume na mesa de exame, visando identificar assimetrias e deformidades. É importante a palpação dos membros para identificar a presença de pontos dolorosos, a palpação dos pulsos periféricos e a avaliação da força muscular. Na semiologia articular, deve-se realizar a inspeção, palpação e movimentação passiva e ativa de todas as articulações, incluindo a do quadril.5

 

Exames complementares

         Uma vez que a ocorrência de doença orgânica é muito baixa, a abordagem proposta é suficiente para esclarecer o diagnóstico. Só haverá necessidade de exames complementares quando estiver presente algum sinal de alerta vermelho para a presença de doença orgânica (Quadro 107.5).

         A partir desses exames, a continuidade da investigação dever· ser direcionada pelas alterações encontradas. Na presença de alertas vermelhos, se os exames propostos não esclarecerem o diagnóstico, ser· necessário ouvir a opinião de um ortopedista para prosseguir com exames mais específicos.

 

Quadro 107.5. Alertas vermelhos e estratégias de investigação

Sinais

Estratégias de investigação

 

HMG

PCR ou VHS Raio X

Presença de dor localizada em pontos fixos, mas que não faça parte dos critérios de fibromialgia

x

x*

Dor com características “diferentes” (parestesias, como formigamento, adormecimento)

x

 

Dor à palpação muscular

x

 

Dor à movimentação passiva

x

x*

Diminuição da força muscular

x

 

Dificuldade ou alterações à marcha

x

xx**

Manifestações sistêmicas associadas ao quadro de dor

x

 

Evolução com dor persistente e/ou que não responde a analgésicos

x

x*

HMG – hemograma completo; PCR – proteína C-reativa, VHS – velocidade de hemossedimentação.

* Radiografias do segmento acometido e do contralateral para comparação.

** Radiografias das articulações coxofemorais do membro acometido e do contralateral.

 

Conduta proposta

Tratamento

Tratamento da dor recorrente inespecífica nos membros (“dor de crescimento”)

         O principal aspecto do tratamento é reassegurar a natureza benigna da dor. Esclarecer que as avaliações feitas permitem excluir a presença de doença orgânica. É importante que, já na primeira consulta, seja levantada a hipótese de a dor ser a expressão de como a criança enfrenta as situações de conflito e angústia presentes no seu dia a dia. Uma forma de esclarecer a relação entre as tensões emocionais e a dor é utilizar o exemplo da cefaleia tensional em adultos, nos quais esses episódios não têm relação alguma com doenças orgânicas e desaparecem sem que seja necessário nenhuma investigação. Assegurar para a família que não foi encontrado nenhum sinal de alerta e nenhuma alteração ao exame físico. Não se deve dizer quais são os sinais de alerta, pois o conhecimento desses sinais pode influenciar tanto as crianças e adolescentes como os pais na evolução da dor.

         Não há necessidade de terapêutica medicamentosa. Massagens e calor local são, na maioria das vezes, suficientes para aliviar o sintoma da dor.3, 5, 15 É importante conversar com a família no sentido de evitar o uso de analgésicos nas crises.

         Deve-se informar sobre o caráter recorrente da dor, que evolui em crises, podendo ficar ausente por longo tempo. O acompanhamento da criança ou do adolescente, inicialmente com retornos próximos, possibilita um maior vínculo, favorecendo a identificação de fatores que possam estar envolvidos na gênese da dor.

 

COMENTÁRIO

Nos casos de dores recorrentes em crianças e adolescentes, é comum só considerar ser um problema médico quando existe uma doença orgânica que possa ser diagnosticada com exames e resolvida com medicamentos. Na mesma investigação, já citada, da autora, as respostas sobre o que os médicos pensavam em relação à evolução dos casos atendidos por eles foram as seguintes:

 

               A maioria ficou assintomática espontaneamente;

               Com o tempo, a dor desapareceu – tende a melhorar com o passar do tempo;

               O caso resolveu sozinho, sem qualquer intervenção;

               A dor é autorresolutiva;

               Resolve-se sem necessidade de investigação.

 

É interessante observar que mesmo utilizando a proposta de abordagem descrita, os médicos negam o seu trabalho e o efeito terapêutico da consulta e acham que a dor desapareceu sozinha, com o tempo, sem nenhuma intervenção deles.

 

DICAS

      O médico deve mostrar que compreende e se solidariza com o sofrimento da criança/adolescente e da família.

      Sempre se identificar qual a hipótese diagnóstica que a criança/adolescente e a família têm para a dor.

      Verificar se a família conhece alguém com essa mesma queixa e que tipo de evolução essa pessoa teve.

      Conversar sempre diretamente com a criança (mesmo que tenha menos de 5 anos) e com o adolescente, escutando seus medos.

      De início, colocar para a família o caráter benigno da dor e a possibilidade grande de não existir uma causa orgânica.

      Esclarecer sempre que a evolução desse tipo de dor é benigna,

      Reforçar que se deve evitar o uso de medicamentos para a dor, preferindo-se massagem e calor local.

 

Quando encaminhar (Figura 107.1)

         A grande maioria dos casos tem boa evolução. O encaminhamento deve ser feito quando houver sinais de alerta vermelho e necessidade de aprofundar a investigação com especialistas. Nesses casos, a suspeita diagnóstica definir· para qual especialista dever· ser feito o encaminhamento. Com maior frequência, os encaminhamentos são para o ortopedista ou para o reumatologista.

 

Figura 107.1. Fluxograma.

 

 

Erros mais frequentemente cometidos

         O fato de a dor recorrente inespecífica nos membros ter alguma causa orgânica em apenas 3 a 4% dos casos gera, muitas vezes, duas condutas, que, embora opostas, são bastante prejudiciais na abordagem de indivíduos com essa queixa.

         Assim, observa-se uma tentativa de afastar uma etiologia orgânica por meio de investigações extensas, onerosas e injustificadas, o que muitas vezes provoca mais ansiedade para a criança/adolescente e a família, sendo mais um fator intensificador da queixa. Nesses casos, só se aventa a possibilidade de haver um componente emocional quando não se consegue encontrar uma etiologia orgânica.

         Outro tipo de conduta é a negação do problema, com afirmações simplistas, como “isso não é nada”, “com o tempo passa” ou “a criança está querendo chamar a atenção com a dor”. Essas posturas expressam a dicotomia entre o orgânico e o não orgânico, como se o compromisso do médico fosse com a doença e não com a criança.

         É importante enfatizar novamente que, já na primeira consulta, o médico deve levantar a hipótese de que a dor tenha origem no modo como a criança enfrenta seus conflitos e problemas emocionais. Um depoimento de uma mãe exemplifica bem como é o entendimento da família quando só após vários exames o médico informa que pode ser de origem emocional: “Ele fez todos os exames e não achou nada, agora está dizendo que o problema da menina é na cabeça. Mas, doutora, a dor dela é nas pernas!”.

 

Prognóstico e complicações possíveis

         As dores recorrentes inespecíficas nos membros têm evolução benigna. Quando se consegue que a criança/adolescente e a família explicitem suas angústias e medos, eles ficam mais tranquilos e os episódios tornam-se mais espaçados. Nos casos nos quais há uma doença orgânica, o prognóstico vai depender da doença específica.

 

Atividades preventivas e de educação

         A prevenção de novos episódios de crises de dor pode ser obtida pelo efeito terapêutico da consulta. O estabelecimento de um vínculo com a criança/adolescente e a família permite intervenções que podem melhorar o modo como eles reagem aos conflitos vivenciados no seu cotidiano.

 

Referências

1.        Oster J, Nielsen A. Growing pains: a clinical investigation of a school population. Acta Paediatr Scand. 1972;61:329-34.

2.        Naish JM, Apley J. “Growing pains”: a clinical study of non arthritic limb pains in children. Arch Dis Child. 1951;26:134.

3.        Lowe RM, Hashkes PJ. Growing pains: a noninflammatory pain syndrome of early childhood. Nat Clin Pract Rheumatol. 2008;4(10):542-9.

4.        Horlé B, Wood CH. Growing pains in children: myth or reality? Arch Pediatr. 2008;15(8):1362-5.

5.        Zuccolotto SMC, Sucupira ACSL, Almeida da Silva CA. Dores recorrentes em membros. In: Sucupira ACSL, Kobinger MEBA, Saito MI, Bourroul MLM, Zuccolotto SMC. Pediatria em consultório. 5. ed. São Paulo: Sarvier; 2010. p. 721-35.

6.        Evans AM, Scutter SD. Are foot posture and functional health different in children with growing pains? Pediatr Int. 2007;49(6):991-6.

7.        Viswanathan V, Khubchandani RP. Joint hypermobility and growing pains in school children. Clin Exp Rheumatol. 2008;26(5):962-6.

8.        Hashkes PJ, Friedland O, Jaber L, Cohen HA, Wolach B, Uziel Y. Decreased pain threshold in children with growing pains. J Rheumatol. 2004;31(3):610-3.

9.        Uziel Y, Chapnick G, Jaber L, Nemet D, Hashkes PJ. Five-year outcome of children with “growing pains”: correlations with pain threshold. J Pediatr. 2010;156(5):838-40.

10.    Kaspiris A, Zafiropoulou C. Growing pains in children: epidemiological analysis in a Mediterranean population. Joint Bone Spine. 2009;76(5):486-90.

11.    Moysés MAA, Kiss MHB, Bresolin AMB, Suzuki I, Silva CHM. Dores em membros na infância: resultados preliminares em 71 crianças. Pediatria. 1986;8(1):50-4.

12.    Sucupira ACSL, Bresolin AMB, Zuccolotto SMC. Dores recorrentes. In: Sucupira ACSL, Kobinger MEBA, Saito MI, Bourroul MLM, Zuccolotto SMC. Pediatria em consultório. 5. ed. São Paulo: Sarvier; 2010. p. 696-698, 2010.

13.    Resegue R, Sucupira ACSLS. Dores recorrentes. São Paulo: Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo; 2003. p. 205-10. Caderno Temático da Criança.

14.    Peterson H¡. Leg aches. Pediatr Clin North Am. 1977;24:731-6.

15.    Yunus MB, Masi AT. Juvenile primary fibromyalgia syndrome. A clinical study of thirty three patients and matched normal controls. Arthritis Rheum. 1985;28:138.

16.    Asadi-Pooya AA, Bordbar MR. Are laboratory tests necessary in making the diagnosis of limb pains typical for growing pains in children? Pediatr Int. 2007;49(6):833-5.

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