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Icterícia

Autor:

César Monte Serrat Titton

Médico de família e comunidade. Médico da Estratégia Saúde da Família (ESF) da Prefeitura de Curitiba, PR.

Última revisão: 22/01/2013

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Versão resumida do capítulo original, o qual pode ser consultado, na íntegra, em Gusso & Lopes, Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática (2 vols., Porto Alegre: Artmed, 2012). Obra indicada também para consulta a outros temas de Medicina de Família e Comunidade (MFC), pela abrangência e a forma como o conteúdo é abordado, além de reunir importante grupo de autores.

Do que se trata

         Icterícia é uma condição caracterizada pela coloração amarelada de tecidos e secreções corporais decorrente do acúmulo de pigmentos biliares.

         Apesar de a Icterícia ser motivo de atendimento pouco frequente fora do período neonatal, conhecer sua abordagem é importante para identificar prontamente casos graves e diferenciar em tempo hábil causas vulneráveis ao atendimento em APS das que indiquem atendimento em outros níveis.

 

O que pode ocasionar

         A Icterícia pode originar-se de 3 processos fisiopatológicos: excesso de produção de bilirrubina no sistema hematopoiético, problemas com a metabolização da bilirrubina no fígado ou falhas na excreção da bile, podendo apresentar-se em quadros que abrangem todo o espectro de prognósticos (Quadro 154.1).

 

Quadro 154.1. Prognósticos da Icterícia

 

Produção de bilirrubinas

Metabolização hepática

Falhas de excreção da bile (colestase)

Causas mais comuns

Hemólise por trauma ou anemia hemolítica

Hepatite viral

Litíase biliar

Hepatite alcoólica

Neoplasia (pâncreas, trato biliar, fígado)

Sepse

 

Cirrose hepática

 

Síndrome de Gilbert*

 

Causas de frequência variável

Malária

Leptospirose

Colecistite

Hemoglobinopatias

Febre amarela

Constrição cirúrgica

 

Insuficiência cardíaca*

Citomegalovírus

 

Intoxicação por paracetamol

 

 

Vírus Epstein-Barr

 

Causas medicamentosas

Hidroclorotiazida, metildopa, paracetamol, AINEs, clorpromazina, betalactâmicos, rifampicina, isoniazida

AINEs

Estrogênios

Metildopa, amiodarona, valproato, antidepressivos tricíclicos, rifampicina*, penicilinas, eritromicina, izoniazida, sene, kava-kava, cáscara sagrada, anabolizantes

Clavulanato

Clorpromazina

Causas raras

Doenças autoimunes

Hepatite autoimune

Colangite

Neoplasia hematopoiética

Hiperêmese gravídica

Pancreatite

Doença hipertensiva específica da gestação (DHEG)

Esteatose aguda gestacional

Colestase gestacional

 

DHEG

Parasitose em ducto biliar

 

Síndrome HELLP

Pseudocisto pancreático

 

Síndrome de Budd-Chiari*

Linfoma

 

Doenças metabólicas

 

Malformação biliar (apresenta-se na infância)

 

* Essas afetam o metabolismo hepático antes da conjugação, com aumento de bilirrubina indireta, diferentemente das demais desse mesmo grupo (coluna).

 

O que fazer

Anamnese

         Nem sempre a Icterícia surge já nas queixas iniciais na consulta, pois pode nem ter sido percebida. Cabe lembrar que a fase exploratória da consulta médica já se inicia com investigações subjetiva e objetiva concomitantemente, podendo, o médico atento, notar a coloração da pele e dos olhos da pessoa (a identificação precoce aumenta a eficiência no uso do tempo, embora seja difícil em quadros brandos).

         O “amarelamento” pode ter sido apontado por outros que convivem com a pessoa, mas deve-se levar em conta ser comum atribuir “estar amarelo” a diversas formas de “estar doente”, como estados de desidratação, palidez ou “abatimento” (tanto que o termo “amarelão” foi consagrado em referência ao aspecto do portador de ancilostomíase, que não cursa com Icterícia e sim com anemia).

         Se a Icterícia já foi percebida, houve tempo para a pessoa pensar e conversar com conhecidos sobre ela, constituindo um conjunto de noções próprias do significado desse adoecimento. Cabe à escuta atenta do médico identificar nas falas da pessoa a descrição de tal experiência pessoal, que costuma estar entremeada nas demais informações e raramente precisa ser elicitada em separado. A ideia de “estar amarelo” pode levar à postura defensiva de negação (para evitar o enfrentamento do hábito de ingesta alcoólica), pode ter sido considerada banal (envolvendo autocuidado, como “banho de sol”), pode ser vista como problema estético a ser medicado, pode envolver medo de decorrer de doença contagiosa (sendo possível que já· tenha mudado o compartilhamento de objetos), pode trazer preocupações com a necessidade de internamento (e consequente afastamento temporário de suas funções), pode estar associada às ideias de câncer e risco de vida. Essas informações devem modular a comunicação do médico com a pessoa nas etapas de informação e negociação da consulta.

         Os sintomas mais comumente associados são astenia, hiporexia e náuseas, além de perda de peso e vômitos. O surgimento desse grupo de sintomas há menos de 15 dias sugere hepatopatia aguda ou obstrução biliar por litíase.1 Uma progressão crônica e contínua desses sintomas aumenta a chance de hepatites crônicas ou de obstrução biliar por neoplasia.1

         O curso intermitente pode indicar colelitíase recorrente ou doença hemolítica, hepatite crônica ou alguma síndrome de hiperbilirrubinemia genética – das quais a mais comum é a síndrome de Gilbert (3 a 5% da população)2, 3 –, que cursa com aumento transitório de bilirrubina não conjugada (indireta), desencadeado por outras doenças, estresse ou jejum, sem impacto em morbimortalidade.

         O curso agudo pode incluir também febre, sintomas sugestivos de etiologia específica (dor de garganta na mononucleose, mialgias na leptospirose) ou mesmo indícios de quadro infeccioso grave (possível colecistite, colangite, pancreatite ou sepse indeterminada): calafrios, palpitações, dispneia, oligúria, tontura, confusão mental.

         Em quadros agudos, intermitentes ou crônicos, a presença de dor abdominal pode fornecer pistas, por meio de suas características (intensidade, localização e irradiações), às vezes sugestivas de acometimento biliar ou pancreático (ver Capítulo 149).1 O conjunto de febre, dor e Icterícia constitui a tríade de Charcot, sinal de provável colangite.

         Prurido generalizado pode surgir anterior ou juntamente com a Icterícia, sempre indicando acúmulo de bilirrubina conjugada (direta).4 Essa bilirrubina é hidrossolúvel, sendo excretada na urina, que fica escurecida (colúria). Caso haja colestase intensa, a bilirrubina pode deixar de ser excretada nas fezes, deixando-as esbranquiçadas (acolia).5

         Quando a Icterícia parece ser o único sintoma, deve-se confirmar tal fato cuidadosamente, atento a possíveis sintomas atípicos: artralgias,2 artrite ou urticária (hepatite por vírus B ou C)2 ou sintomas depressivos (por hepatite aguda ou crônica).2 Caso a Icterícia siga como sintoma isolado, um número maior de hipóteses restará para ser verificado nos exames físico e complementar.

         A presença de Icterícia em uma gestante amplia as possibilidades diagnósticas envolvidas, devendo-se inquirir em detalhe sobre vômitos (hiperêmese gravídica) e considerar-se esteatose hepática aguda, doença hipertensiva da gestação ou colestase gestacional – esta última surge no 3 trimestre associada a prurido intenso, mesmo em quadros anictéricos, e aumenta a morbimortalidade fetal.6

         Completando a anamnese, revisar:1

 

      Possíveis substâncias tóxicas implicáveis na causa de Icterícia (verificar medicamentos prescritos ou não, chás, drogas recreativas, outros produtos químicos);

      Exposição a riscos epidemiológicos específicos para hepatites, leptospirose, febre amarela, malária (tais como contatos sintomáticos, transfusão de sangue, relações sexuais desprotegidas, viagens, contato com água ou alimentos suspeitos);

      História familiar (para anemias, hepatopatias e doenças genéticas);

      Doenças prévias relevantes (HIV, insuficiência cardíaca, doenças inflamatórias intestinais);

      Trauma recente (pode cursar com lesão de ducto biliar, sepse, hematomas compressivos ou em reabsorção, ruptura de vesícula biliar);7

      História cirúrgica (cirurgia há menos de 3 semanas pode levar à hemólise, insuficiência hepática transitória ou dano direto ao trato biliar; cirurgias remotas podem levar a constrições biliares).1

 

Exame físico

         Para confirmar a existência de Icterícia, recomenda-se avaliar a coloração das mucosas no recesso conjuntival inferior, no palato e na região sublingual, locais mais sensíveis ao efeito da hiperbilirrubinemia e mais específicos por sofrerem menos interferência da coloração basal da pele (a região fotoexposta da conjuntiva bulbar pode ser hiperpigmentada por melanina).

         Considera-se pseudoicterícia quando há coloração amarela na pele na ausência de hiperbilirrubinemia, o que pode ocorrer em pessoas com uremia ou xantodermia,4 que é a deposição cutânea de outros compostos pigmentados, como betacaroteno, licopeno ou riboflavina (vitamina B2).8 Nesses casos, a coloração é mais intensa nas palmas de mãos e solas de pés, nunca acometendo as mucosas. As causas mais comuns de xantodermia são consumo excessivo de alimentos ricos em betacaroteno (verduras, legumes e frutas amarelas, alaranjadas ou verde-escuras) ou o metabolismo alterado (por hipotireoidismo ou diabetes).9 Não há dano funcional, apenas estético, que pode durar meses, devido à grande lipossolubilidade de tais substâncias.8

         É mais fácil perceber a coloração ictérica sob luz natural, podendo ser detectada já com níveis séricos de bilirrubina de 1,5-1,7 mg/dL. Sob iluminação artificial, é difícil identificar a Icterícia se bilirrubina < 4 mg/dL.7 Esses limiares são bastante discutidos, oscilando entre 2-4 mg/dL, havendo menção a casos em que a detecção só foi possível com níveis de 8 mg/dL.1 A tonalidade pode variar do amarelo-esverdeado ao amarelo-alaranjado, com discutível utilidade diagnóstica.1

         Tendo confirmado no exame físico tratar-se realmente de uma pessoa com Icterícia, cabe buscar outros sinais que possam corroborar as hipóteses levantadas na anamnese ou indicar etiologias específicas. O mais frequente é haver sinais de hepatopatia aguda, como hepatomegalia dolorosa e sinais vitais alterados; ou crônica, como circulação colateral cutânea abdominal, telangiectasias, ascite,4 ginecomastia, atrofia testicular,2 sopro auscultável em hipocôndrio direito ou contratura de Dupuytren.1 Pacientes em insuficiência hepática podem apresentar confusão mental, também possível em quadros de sepse e intoxicação.

         A detecção de esplenomegalia, seja pelo método da palpação (mais específico) ou pela percussão (mais sensível),10 pode também implicar acometimento hepático ou ser sinal de doenças hemolíticas, mononucleose ou neoplasias.1

         O achado de vesícula biliar palpável em uma pessoa com Icterícia, denominado sinal de Courvoisier, foi considerado um sinal muito sensível e específico de colestase por neoplasia de trato biliar ou cabeça do pâncreas (e não por litíase). Tal acurácia vem sendo questionada, especialmente em pessoas com obesidade (séries recentes indicam sensibilidade de 50% e que a vesícula é palpável em até 42% dos pacientes com colelitíase).10

         Já o sinal de Murphy (parada reflexa da inspiração decorrente da palpação da vesícula) é específico para colecistite, apesar de pouco sensível (27%).

         Sinais de peritonite associada (defesa ou dor à descompressão) indicam gravidade e necessidade de avaliação em serviço de urgência cirúrgica.

         Além da Icterícia, ao avaliar-se a cor da pele e das mucosas, pode-se ver palidez compatível com anemia, reforçando hipóteses de anemias hemolíticas ou de doenças crônicas (infecciosas, cirrose ou neoplasias).4

         Outros sinais eventualmente sugerem determinadas causas, tais como: hálito etílico, linfonodomegalias (doenças infecciosas agudas ou crônicas e algumas neoplasias), petéquias palatinas e hipertrofia/eritema tonsilar (mononucleose), enchimento venoso jugular aumentado, estertores crepitantes pulmonares, alterações em ausculta cardíaca e edema em membros inferiores (insuficiência cardíaca),7 xantelasmas e xantomas (colestase crônica),1 fenômenos hemorrágicos e oligúria/anúria (leptospirose ou febre amarela).

 

Exames complementares

         Na maioria das pessoas com Icterícia, recomendam-se alguns exames laboratoriais; muitos casos têm indicação de algum exame de imagem, em especial, a ultrassonografia.

         Alguns serviços de saúde dispõem de acesso rápido ao exame qualitativo de urina, que indicará bilirrubinúria na maioria das pessoas com Icterícia, evidência de que o acúmulo é de bilirrubina conjugada (direta). Pode-se confirmar objetivamente a coloração escura característica da colúria e, se a obstrução biliar for total, estar· anormalmente ausente o urobilinogênio na urina.1, 5

         Dentre os pigmentos biliares aumentados, a biliverdina não costuma ser dosada, apenas a bilirrubina e suas frações. Os níveis séricos normais de bilirrubina total são até 1,1 mg/dL (19 µmol/L)3 – alguns consideram até 1,5 mg/dL (25,6 µmol /L)1 –, sendo a maior parte bilirrubina ainda não conjugada (indireta). Fora do período neonatal (quando a função hepática ainda é incompleta), o nível sérico de bilirrubina não apresenta variações fisiológicas significativas nas diferentes faixas etárias ou na gestação.

         Na maioria dos casos, as suspeitas clínicas envolvem doenças com hiperbilirrubinemia conjugada (direta), seja por alteração do metabolismo hepático (em especial por lesão hepatocelular), seja por obstrução ao fluxo biliar (colestase). Nessas situações, estão recomendadas inicialmente pelo menos as dosagens de bilirrubina e de marcadores de dano hepático: as aminotransferases (transaminases) e a fosfatase alcalina (FA) (Quadro 154.2).1, 5

 

Quadro 154.2. Dosagens de bilirrubina e de marcadores de dano hepático

Processo principal

 

Bilirrubina

Aminotransferases

FA

 

Total

Indireta

Direta

 

 

Hemólise

< 5 mg/dL

??

?

?

?

Dano hepatocelular

Sem limites

?

???

???

?

Colestase

< 30 mg/dL

?

???

?

???

 

         Os níveis de gamaglutamiltranspeptidase (GGT) acompanham as variações dos de FA, embora com menor sensibilidade; solicitar GGT só acrescenta informação se houver suspeita de que a elevação da FA seja de origem extra-hepática (óssea, intestinal, placentária ou de algumas neoplasias)1 por processos patológicos ou fisiológicos – na gestação e no estirão de crescimento da adolescência, os níveis séricos de FA se elevam em 50 a 100%.

         Além de a magnitude de elevação das aminotransferases auxiliar na diferenciação entre patologias com predomínio de dano hepatocelular e as patologias com predomínio de colestase, valores muito elevados (> 10.000 UI/L) sugerem dano hepático agudo por drogas ou isquemia; já cirrose hepática pode levar a valores atipicamente pouco elevados (por haver pouco parênquima hepático restante). Razões aspartato aminotransferase/alanina aminotransferase – AST/ALP ou, na nomenclatura prévia, transaminase glutâmico-oxalacética (TGO)/transaminase glutamicopirúvica (TGP) – maiores que 1 (em especial, se > 2), costumam indicar álcool como agente causador do dano hepático.2

         Em alguns casos, podem estar indicados outros exames de função hepática (além da dosagem de bilirrubina). Redução de albumina sérica é evidência de funcionamento hepático reduzido há mais de 10 dias.3 Aumento no tempo de ativação de protrombina (TAP) pode decorrer de dano hepatocelular (por menor produção de fatores de coagulação) ou de colestase (por menor absorção de vitamina K decorrente da ausência de bile no intestino – situação na qual se espera normalização do TAP em até 24 horas da administração de vitamina K).1, 3

         Outros exames laboratoriais podem ser considerados, dependendo da amplitude do caso e da sequência do raciocínio clínico já· estabelecido:

 

      Eritrograma (pode haver anemia de doença crônica)

      Leucograma (leucocitose com desvio à esquerda é comum em hepatite alcoólica aguda e colecistite)

      Sorologias para hepatite aguda ou crônica

      Lipase e amilase (se houver suspeita de pancreatite)

      Sorologia para HIV (pessoas com Aids podem ter Icterícia por infecções oportunistas ou neoplasias atípicas)11

      Sorologia para febre amarela e leptospirose

 

         Mais raramente, podem ser considerados:

 

      Sorologias para outros vírus: Epstein-Barr, citomegalovírus, herpes1, 2

      Dosagem sérica de paracetamol (acetaminofeno)12

      Testes para doenças metabólicas (hemocromatose, doença de Wilson, síndrome de Dubin Johnson, síndrome de Rotor)12

      Testes para doenças autoimunes (cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, colagenoses)1-3, 12

 

         Nos poucos casos em que as hipóteses diagnósticas resultantes da anamnese e do exame físico envolverem apenas patologias de excesso de produção de bilirrubina (como doenças hemolíticas), a primeira série de exames laboratoriais pode compor-se apenas de eritrograma e dosagem de bilirrubina. Nesses casos, seria esperado haver aumento apenas da bilirrubina não conjugada (indireta); os aspectos quantitativos e qualitativos dos eritrócitos podem estreitar as causas possíveis. A partir de então, considerar a solicitação de:

 

      Leucograma

      Teste direto de antiglobulina (Coombs) para confirmar hemólise

      Desidrogenase l·ctica (LDH) para magnitude da hemólise

      Contagem de reticulócitos (para avaliar a resposta medular)

      Testes para malária1

      Eletroforese de hemoglobina (se houver suspeita de talassemias)

      Pesquisa de hemoglobina S (se houver suspeita de anemia falciforme)

 

         Os dados obtidos em anamnese, exame físico e exames laboratoriais levam ao diagnóstico em 90% dos casos de Icterícia.5 Nos 10% restantes, a ultrassonografia é o exame mais útil3 – sendo ainda indicada em alguns dos casos já com diagnóstico provável, para confirmá-lo ou para planejar abordagem terapêutica. A ultrassonografia é mais acessível, tem menos riscos e custo que outros exames de imagem e é acurada para detecção de cálculos na vesícula biliar, nódulos hepáticos e dilatação intra-hepática do ducto biliar. Em uma revisão sistemática sobre o uso de exames de imagem na investigação de Icterícia, a ultrassonografia foi considerada o mais indicado nos seguintes cenários clínicos:13

 

      Dor abdominal e febre OU história de colelitíase OU história de cirurgia biliar

      Quadro clínico não sugestivo de obstrução biliar mecânica

      Quadros clínicos “confusos”

 

         Já para pessoas que não apresentam dor abdominal, mas têm perda de peso, fadiga, anorexia ou duração superior a 3 meses de Icterícia, a ultrassonografia foi considerada a segunda opção, sendo a primeira a tomografia computadorizada.13

         Habitualmente, outros níveis de atenção à saúde (secundário ou terciário) passam a ser responsáveis principais em caso de necessidade de outros exames de imagem de trato biliar ou de biópsia hepática.

 

Conduta proposta

Bases epidemiológicas para raciocínio clínico na APS

         As três causas mais comuns de Icterícia são a hepatite, a litíase biliar e a neoplasia,4 com os níveis etários influenciando em suas probabilidades relativas. Entretanto, existem poucos dados de incidência e distribuição etiológica de Icterícia, sendo provável que haja grande variação destas com características epidemiológicas locais.

         Um estudo no País de Gales buscou prospectivamente o diagnóstico de todos os 121 pacientes que, ao longo de 7 meses, tiveram exames com bilirrubina sérica > 7 mg/dL no laboratório central da região. A incidência anual verificada seria de 56 pessoas com Icterícia evidente em 100.000 habitantes, levando à estimativa de que um médico de família e comunidade local com 2.000 pessoas adscritas (média local) veja uma única pessoa com Icterícia a cada 1 ou 2 anos.14

         O mesmo estudo investigou quais os médicos acreditavam ser as causas mais comuns de Icterícia; os médicos de família e comunidade (MFC) citaram, em ordem, litíase biliar, neoplasia e hepatite; já os gastrenterologistas referiram neoplasia, litíase biliar e cirrose hepática por álcool. Ambos os grupos diferiram significativamente da distribuição real verificada: neoplasia (35%), sepse/choque (22%), cirrose (20,7%), litíase biliar (13%), drogas (5,8%) e apenas 2 casos de hepatite viral (1,7%) e de hepatite autoimune (1,7%).

         Outros estudos indicam variações nas incidências relativas de colelitíase e neoplasias como causa de Icterícia. Litíase biliar foi a principal causa (23,7% dos casos) em um estudo inglês restrito a pessoas > 65 anos vistas em um hospital geral (frente a apenas 16% com neoplasias)15 e foi a segunda maior causa (24,3% dos casos) em outro estudo inglês, no qual prevaleceram as neoplasias, com 28% (este baseado em uma central regional exclusivamente para referências médicas de pessoas com Icterícia).16

         Interpretando tais dados frente à realidade brasileira, pode-se supor que:

 

      Um MFC responsável por uma Equipe de Saúde da Família com 3.000 a 4.000 pessoas adscritas deve esperar anualmente ao menos uma ou duas pessoas com Icterícia a investigar;

      Características locais ou regionais podem aumentar em muitas vezes tal número, conforme a incidência de algumas doenças infecciosas (hepatites virais, leptospirose, febre amarela, malária, HIV) – o que deve ser levado em conta pelo MFC.

 

DICAS

      Se a presença de Icterícia for clinicamente duvidosa, considere procurar bilirrubinúria, quase sempre presente quando há hiperbilirrunemia conjugada (direta), ou seja, na maioria dos casos.

      Recomende manutenção de ingesta líquida adequada (prevenção de insuficiência renal) e menor ingesta lipídica (redução de dispepsia e diarreia).17

      Oriente cuidados para evitar possível transmissão de doença infecciosa durante a investigação e suspenda tal orientação quando adequado.

      Oriente a pessoa a evitar substâncias hepatotóxicas durante a investigação (e depois conforme o diagnóstico).

      Se houver prurido, considere receitar anti-histamínico ou colestiramina; se persistir, considere ursodiol (ácido ursodesoxicólico) ou naltrexona.17

      Ao identificar hiperbilirrubinemia indireta transitória sem sinais de hemólise, considere a síndrome de Gilbert, um benigno diagnóstico de exclusão.2

 

Quando encaminhar

         Pessoas com sintomas e sinais de sepse moderada ou grave e/ ou de insuficiência hepática aguda devem ser encaminhadas imediatamente para o serviço de urgência para que se iniciem medidas de suporte em paralelo com o prosseguimento da investigação.

         Pessoas com obstrução de trato biliar de etiologia provavelmente neoplásica (sinal de Courvoiser, massa obstrutiva detectada em exame) devem ser encaminhadas à atenção terciária oncológica assim que o sistema de saúde local possibilitar (um protocolo brasileiro recente estipula prazo de 15 dias).17

         A maioria dos demais indivíduos pode prosseguir investigação na atenção primária, ao menos até elucidação diagnóstica; algumas etiologias, conforme o caso, terão indicação de encaminhamento ambulatorial – principalmente para cirurgia geral, gastrenterologia e hepatologia; às vezes, para infectologia e hematologia; mais raramente para obstetrícia, cardiologia e reumatologia.

 

Erros mais frequentemente cometidos

      Considerar haver Icterícia em pessoas com xantodermia.

      Não perceber Icterícia em pessoas de pele negra ou bronzeada.

      Não revisar cuidadosamente as drogas que podem estar implicadas.

      Solicitar exames laboratoriais em demasia por não reduzir o número de hipóteses diagnósticas na anamnese e no exame físico.

      Não encaminhar para serviço de urgência paciente com sinais de sepse grave ou com necessidade de avaliação cirúrgica iminente.

 

Referências

1.        Stillman AE. Jaundice. In: Walker HK, Hall WD, Hurst JW, editors. Clinical methods: the history, physical, and laboratory examinations. 3rd ed. Boston: Butterworths; 1990.

2.        Roche SP, Kobos R. Jaundice in the adult patient. Am Fam Physician. 2004;69(2):299-304.

3.        Beckingham IJ, Ryder SD. ABC of diseases of liver, pancreas, and biliary system. Investigation of liver and biliary disease. BMJ. 2001;322(7277):33-6.

4.        Smith DS. Field guide to bedside diagnosis. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007.

5.        Cutler P. Como solucionar problemas em clínica médica: dos dados ao diagnóstico. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1998.

6.        Bremmer M, Driscoll MS, Colgan R. The skin disorders of pregnancy: a family physician’s guide. J Fam Pract. 2010;59(2):89-96.

7.        Brian JM, Fox CK. Jaundice. In: Taylor RB, editor. The 10-minute diagnosis manual: symptoms and signs in the time-limited encounter. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000.

8.        Stack KM, Churchwell MA, Skinner RB Jr. Xanthoderma: case report and differential diagnosis. Cutis. 1988;41(2):100-2.

9.        Collins RD. Differential diagnosis in primary care. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007.

10.    Mangione S. Segredos em diagnóstico físico: repostas necessárias ao dia a dia em rounds, na clínica, em exames orais e escritos. Porto Alegre: Artmed; 2001.

11.    Akhtar AJ, Shaheen M. Jaundice in African-American and Hispanic patients with Aids. J Natl Med Assoc. 2007;99(12):1381-5.

12.    Ryder SD, Beckingham IJ. ABC of diseases of liver, pancreas, and biliary system. Other causes of parenchymal liver disease. BMJ. 2001;322(7281):290-2.

13.    Foley WD, Bree RL, Rosen MP, Gay SB, Grant TH, Heiken JP, et al. Expert panel on gastrointestinal imaging. ACR Appropriateness Criteria® jaundice. Reston: American College of Radiology; 2008.

14.    Whitehead MW, Hainsworth I, Kingham JG. The causes of obvious jaundice in South West Wales: perceptions versus reality. Gut. 2001;48(3):409-13.

15.    Ajaj A, Saeed S, Brind A. Jaundice in the elderly: a retrospective study of causes and prognosis mid-east. Age Ageing. 2008;5(4)20-3.

16.    Mitchell J, Hussaini H, McGovern D, Farrow R, Maskell G, Dalton H. The “jaundice hotline” for the rapid assessment of patients with jaundice. BMJ. 2002;325(7357):213-5.

17.    Santos JS, Kemp R, Sankarankutty AK, Salgado W Jr, Souza FF, Teixeira AC, et al. Protocolo clínico e de regulação para o tratamento de Icterícia no adulto e idoso: Subsídio para as redes assistenciais e o complexo regulador. Acta Cir Bras. 2008;23 Supl. 1:133-42.

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