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Infarto muscular diabético

Autor:

Lucas Santos Zambon

Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.

Última revisão: 18/11/2016

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Especialidades: Medicina de Emergência / Endocrinologia

 

Introdução

O chamado infarto muscular diabético é uma entidade clínica muito particular, na qual ocorre uma necrose isquêmica espontânea de musculatura esquelética, porém sem relação com fenômeno ateroembólico ou de oclusão arterial. Outro termo utilizado é mionecrose diabética espontânea.

Este quadro clínico é apenas mais um entre todas as complicações micro e macrovasculares que ocorrem no paciente diabético, que incluem retinopatia diabética, nefropatia, neuropatia e doença vascular aterosclerótica. Existem também outras complicações musculoesqueléticas no paciente diabético, porém elas não serão discutidas no presente texto.

 

Epidemiologia e patogênese

O infarto muscular diabético é uma condição pouco frequente. É mais comum em diabéticos de longa data e que tem um controle glicêmico ruim. Costuma ser mais visto em pacientes diabéticos tipo 1 que já tem outras complicações microvasculares como retinopatia, nefropatia e neuropatia.

Estudos mostram que a idade média de apresentação é em torno de 45 anos, com uma duração média de doença de cerca de 15 anos, e há relação com outras complicações na seguinte frequência:

 

      nefropatia: 71% dos casos;

      retinopatia: 57% dos casos;

      neuropatia: 55% dos casos.

 

Os achados anatomopatológicos de biópsia muscular mostram necrose e edema muscular, além de oclusão de arteríolas e capilares por fibrina. O mecanismo fisiopatológico não é muito bem estabelecido, porém as teorias apontam para os efeitos deletérios sobre o endotélio causados pela hiperglicemia, afetando o processo inflamatório local, bem como a agregação plaquetária e a cascata de coagulação.

 

Quadro clínico

Normalmente, o quadro clínico se caracteriza por uma dor com características inflamatórias, de início agudo, sem relação com trauma, evoluindo ao longo de dias ou semanas, e que mais comumente afeta a coxa ou a panturrilha, sendo bem menos frequentes os casos de acometimento de membro superior. Em casos raros, pode ocorrer acometimento da musculatura cervical, especificamente do elevador da escápula, que normalmente acaba tendo como complicação tardia uma sepse por estafilococos. É comum que ocorra edema em graus variados, podendo ser algo discreto até um edema extenso e desconfortável. Febre baixa também pode acompanhar o quadro.

Um terço dos pacientes terá apresentação bilateral. Pelo menos metade dos casos terá recidiva, podendo ser no mesmo local do primeiro quadro clínico ou mesmo em outra área muscular.

 

Achados laboratoriais

Um dos exames laboratoriais mais importantes é a elevação de CPK, que ocorre em quase metade dos casos, mas depende muito do tempo de evolução do quadro e do grau de acometimento.

Existem achados compatíveis com síndrome de resposta inflamatória. Leucocitose pode ser vista em 35% dos casos, e aumento de VHS em 75%. Em quadros duvidosos, onde o diferencial com quadros infecciosos deve ser feito, recomenda-se a coleta de hemoculturas.

Biópsia muscular feita por punção com agulha pode mostrar os achados característicos de edema e necrose muscular, bem como de oclusão de arteríolas e capilares. O exame em si não exacerba a doença ou prolonga a recuperação, como biópsia excisional de músculo poderia fazer. Entretanto, é um exame que deve ser discutido antes de ser feito, uma vez que é possível fazer o diagnóstico sem a necessidade de biópsia.

 

Achados radiológicos

Radiografia do membro afetado serve para fazer diagnóstico diferencial caso mostre a presença de gás envolta do músculo.

A ultrassonografia tem pouca utilidade diagnóstica. Seu papel é muito maior como auxiliar para descartar um diagnóstico diferencial, como um abscesso muscular ou eventualmente de uma TVP.

Um exame que pode auxiliar mais no diagnóstico é a ressonância nuclear magnética. Em T2, pode-se visualizar aumento da intensidade do músculo, edema subcutâneo e fluido subfascial. Em T1, pode ser visto perda de gordura nos septos intramusculares. O uso de gadolínio como contraste pode distinguir áreas de músculo infartado, distinguindo de áreas de edema e inflamação. Lembrar que se deve evitar o uso de gadolínio em pacientes com disfunção renal (ClCr < 15 a 30 mL/min).

Outro exame com papel limitado é a arteriografia, que normalmente não é de grande importância, e como achado mostra estreitamento luminal arterial.

 

Diagnóstico

O diagnóstico é iminentemente clínico, tendo os exames complementares um papel maior na exclusão de diagnósticos diferenciais. Eventualmente, a biópsia de músculo pode ser útil para fechar o diagnóstico quando o quadro clínico não for muito definitivo.

A maior dificuldade é diferenciar este quadro – que é exclusivamente inflamatório – de um quadro infeccioso. Uma vez que a RNM pode identificar com maior precisão o músculo envolvido, a realização da biópsia guiada pode ser útil nesta diferenciação entre inflamação e infecção.

Para pacientes diabéticos de longa data, já com manifestações de complicações microvasculares, que não tenham quadro de SIRS associado ao quadro clínico de dor e edema muscular (ausência de leucocitose e de febre), basta verificar na RNM, no sinal T2, a presença de aumento muscular, edema subcutâneo e subfascial para fechar o diagnóstico.

 

Diagnóstico diferencial

Piomiosite

Existe uma maior chance de pacientes diabéticos desenvolverem piomiosite (normalmente por S. aureus), e a coxa é um local normalmente afetado. Na fase mais inicial, ela pode ser difícil de distinguir de um quadro de necrose muscular diabética, porém a piomiosite tende a formar abscesso. RNM associada a biópsia pode distinguir o diagnóstico.

 

Miosite gangrenosa espontânea

Mais relacionada a estreptococos, a miosite gangrenosa espontânea normalmente se distingue da piomiosite porque, em vez de formar abscesso, tende a dar necrose gangrenosa, tem mais relação com sepse grave e é extremamente grave, com mortalidade entre 80 e 100%. Hemoculturas podem mostrar a presença de bacteremia.

 

Mionecrose clostridial

O achado mais característico, e que pode inclusive aparecer em radiografia simples, é a presença de gás no músculo.

 

Fasceíte necrotizante

Esta é uma infecção profunda no subcutâneo, que chega a atingir a gordura e a fáscia, com destruição destes tecidos. Sempre deve ser considerada em diabéticos com celulite e presença de sepse grave.

 

TVP

Deve ser sempre lembrada no diagnóstico diferencial e pode ser facilmente descartada com uma ultrassonografia doppler do membro acometido.

 

Hematoma intramuscular

Hematomas podem surgir por traumas mesmo de baixa energia em pacientes com coagulopatias hereditárias ou adquiridas. Lembrar sempre deste diferencial em usuários de anticoagulantes. Pode levar a síndrome compartimental como complicação. O diagnóstico normalmente pode ser concluído com exame de imagem sugestivo para hematoma.

 

Calcifilaxia

A arteriolopatia urêmica calcificante é tipicamente caracterizada por áreas de necrose isquêmica que se desenvolvem na derme, gordura subcutânea e, raramente, nos músculos de pacientes renais crônicos terminais. Normalmente são alterações isquêmicas associadas a livedo, púrpuras dolorosas, nódulos subcutâneos em placas no tronco, nádegas e extremidades proximais.

 

Neoplasias

Normalmente são fáceis de diferenciar, porém infarto ou hemorragia de tumores (benignos ou malignos) em membros podem levar a dor aguda e edema/aumento do volume do membro acometido, sendo importante lembrar desta possibilidade nos diagnósticos diferenciais.

 

Tratamento

O tratamento ideal do infarto muscular diabético é algo incerto. Com base em alguns estudos, alguns tempos de recuperação podem ser vistos conforme a opção de tratamento feito:

 

      repouso e analgésicos: 8 semanas para melhora;

      antiplaquetários e anti-inflamatórios: 5,5 semanas;

      excisão cirúrgica: 13 semanas.

 

Fisioterapia não é recomendada, uma vez que parece piorar o quadro clínico. A rotina de vida diária pode causar dor, mas não é contraindicada se tolerável.

O recomendado é dar agente antiplaquetário, como aspirina, em dose baixa (100 mg 1 vez/dia) para pacientes que ainda não façam uso. Para alívio sintomático, deve-se avaliar o risco vs. o beneficio de se prescrever AINH. Eles melhoram a recuperação, porém devem ser usados com muita cautela em pacientes com insuficiência renal, insuficiência cardíaca, hipertensão arterial sistêmica e em uso de anticoagulantes. Nestes pacientes, pode-se eventualmente tentar doses mais baixas e uso por períodos curtos. Considerar proteção gástrica para pacientes com mais risco de sangramento digestivo pelo tempo de uso associado da aspirina e dos AINH.

Caso não seja possível usar AINH, prescrever analgésicos como dipirona ou paracetamol, ou mesmo algum medicamento com efeito analgésico mais potente, como tramadol ou codeína, para pacientes com dor de mais difícil controle. Sempre deve ser orientado repouso.

O infarto muscular diabético tende a se resolver espontaneamente após algumas semanas na maioria dos pacientes. Praticamente metade dos pacientes terá uma recorrência. Lembrar que estes pacientes normalmente são diabéticos graves e com doença avançada, não sendo incomum um prognóstico ruim em poucos anos, normalmente devido à ocorrência de algum fenômeno vascular agudo mais grave, como IAM, AVC ou oclusão arterial aguda de membro.

 

Bibliografia

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