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Hipotermia Acidental

Autor:

Lucas Santos Zambon

Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.

Última revisão: 13/10/2014

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Áreas: Emergências / Terapia Intensiva

 

1. Introdução         

        A temperatura corpórea do ser humano varia normalmente entre 36,4 e 37,5°C. Hipotermia é definida como uma queda na temperatura corpórea para < 35°C, e é classificada conforme a gravidade:

 

                    Hipotermia Leve: 32°C a 35°C

                    Hipotermia Moderada: 28°C a 32°C

                    Hipotermia Grave: < 28°C

                    Hipotermia Profunda: < 24°C

 

        Existe um sistema intitulado International Commission for Mountain Emergency Medicine hypothermia scale e sua existência é baseada no fato que é mais importante reconhecer os estágios de hipotermia do que propriamente saber a temperatura do paciente. Esse sistema estima a gravidade da hipotermia com base em sinais clínicos:

 

                    HT I – Leve: estado mental normal, com tremores, temperatura estimada entre 32°C a 35°C;

                    HT II – Moderada: Alteração de nível de consciência sem tremores, temperatura estimada entre 28°C a 32°C;

                    HT III – Grave: Paciente com perda de consciência, temperatura estimada entre 24°C a 28°C;

                    HT IV – Grave: Paciente em morte aparente, temperatura estimada entre 13,7°C a 24°C;

                    HT V – Morte: Morte por hipotermia irreversível por temperatura < 13,7°C.

 

2. Fisiopatologia

          A temperatura corpórea é resultado do balanço entre produção e perda de calor. O calor é produzido pelo metabolismo celular, na sua maior parte pelo coração e pelo fígado. Já as perdas de calor são realizadas pela combinação de alguns processos que incluem evaporação, radiação, condução e convecção. A pele é responsável por 90% destas perdas, sendo o restante perdido pelos pulmões por evaporação.

         O hipotálamo é responsável pela termorregulação sendo o setpoint de temperatura corporal em torno de 37± 0.5°C. Além disso o hipotálamo é responsável por mediar uma resposta à exposição ao frio. Tal resposta é mediada por catecolaminas e consiste em vasoconstrição periférica para diminuir as perdas e tremores musculares para aumentar a produção de calor. Obviamente o organismo humano não é capaz de se adaptar a qualquer temperatura, sendo intolerável quando esta é muito baixa.

         A ocorrência de hipotermia acidental é algo comum em países frios, porém é algo que pode acontecer mesmo em outros locais desde que a situação seja propícia. Perdas de calor por convecção para um ambiente gelado e por condução para a água constituem os principais mecanismos que geram hipotermia acidental.

        As mortes relacionadas à hipotermia ocorrem basicamente em três situações: a) indivíduos que ficam expostos a baixas temperaturas e sofrem os efeitos da hipotermia propriamente dita, b) indivíduos que sofrem afogamento com asfixia associada à hipotermia e c) indivíduos em condições que alteram a termorregulação (sepse, hipoglicemia, mixedema, overdose por sedativos ou opioides, etc.) e que desenvolvem hipotermia secundariamente. Dados norte-americanos apontam que 50% dos casos ocorrem em pacientes com mais de 65 anos.

 

3. Manifestações Clínicas e Laboratoriais

         A resposta catecolaminérgica à hipotermia gera inicialmente taquicardia, taquipnéia e aumenta o consumo basal de oxigênio em até seis vezes. Ainda na fase inicial de hipotermia, manifestam-se ataxia, disartria, alteração do julgamento crítico, tremores e diurese estimulada pelo frio. Ocorre então aumento da pressão, aumentando também o débito cardíaco. Porém, ao evoluir para hipotermia moderada e severa, há diminuição das catecolaminas por queda geral da função orgânica e estes efeitos desaparecem. Sendo assim, na hipotermia moderada já ocorre redução de frequência cardíaca, hipoventilação, diminuição do nível de consciência, hiporreflexia, diminuição do ritmo de filtração glomerular e os tremores somem. Já na fase de hipotermia grave pode ocorrer edema pulmonar, oligúria, arreflexia, coma, choque, bradicardia e arritmias ventriculares. As alterações de sistema nervoso central evolutivas são as que mais guardam correlação com os diferentes graus de hipotermia.

A tabela a seguir mostra as manifestações sequenciais nos diferentes graus de hipotermia:

 

Tabela 1. Manifestações Clínicas na Hipotermia

 

Leve

Moderada

Grave

SNC

Confusão, amnésia

Letargia, alucinações

Coma

Cardiovascular

Taquicardia, hipertensão

Bradicardia, hipotensão, onda J no ECG

Taquiarritmias ventriculares, FV e assistolia

Respiratório

Taquipnéia, broncorreia

Hipoventilação

Edema pulmonar, apneia

Renal

Diurese fria,

atonia vesical

Diurese fria

Oligúria

Muscular

Tremores

Diminuição de Tremores

“Pseudo rigor-mortis”

Metabólico

Hiperglicemia

Hiper ou Hipoglicemia

Hematológico

Aumento de hematócrito, Queda de plaquetas e leucócitos,

Alarga o TP e TTPA

Gastrointestinal

Íleo paralítico, pancreatite, insuficiência hepática, úlcera de stress

        

         Diversas manifestações laboratoriais podem ocorrer na vigência de hipotermia. Logo que for feito o diagnóstico deve-se fazer uma pesquisa das principais complicações geradas pela queda de temperatura, a saber: acidose lática (por falência cardiopulmonar associada à insuficiência hepática), rabdomiólise (por abalos musculares na resposta ao frio) e diátese hemorrágica (inibição de fatores de coagulação pela hipotermia). Além disso, o reaquecimento também pode gerar alterações, mais frequentemente eletrolíticas, além de alterações de hematócrito e das provas de coagulação. Na próxima tabela se encontram as principais alterações de exames complementares achadas na hipotermia:

 

Tabela 2. Achados laboratoriais na hipotermia

Gasometria Arterial

Acidose metabólica

Alcalose respiratória

Bioquímica

Hipercalemia

Hiperglicemia/Hipoglicemia

Aumento de Amilase (pancreatite por hipotermia)

Hemograma

Leucopenia/Plaquetopenia (sequestro esplênico)

Aumento de Hematócrito (hemoconcentração)

Coagulograma

Aumento de TP e TTPa

 

         Um dado importante a ser pesquisado são as alterações eletrocardiográficas típicas da hipotermia. Além das arritmias que comumente podem ocorrer (bradiarritmias e arritmias ventriculares), a hipotermia causa uma lentificação da condução do impulso através dos canais de potássio. Isso leva a prolongamento de todos os intervalos do ECG, incluindo o RR, PR, QRS e QT. Também pode ocorrer elevação do ponto J, produzindo a característica onda J de Osborne, que representa uma distorção na fase mais precoce da repolarização. O tamanho da onda J é proporcional ao grau de hipotermia e ela é mais achada de V2 a V5. Lembrar que há diferenciais para este achado, que inclui repolarização precoce, hipercalcemia (encurta Qt) e Síndrome de Brugada. A onda J de Osborne não é patognomônica de hipotermia e pode também ser vista em hemorragia subaracnóide e em lesões cerebrais agudas.

 

 

 

Figura 1. Onda J de Osborne (setas)

 

4. Diagnóstico Diferencial

         Apesar de ressaltarmos que a maior parte dos casos de hipotermia acidental se deve à exposição ambiental (ambientes abertos ou por submersão), diversas causas se incluem no diagnóstico das causas de hipotermia. Os principais diagnósticos diferenciais separados por mecanismo fisiopatológico são os seguintes:

 

Perda Aumentada de Calor

                    Exposição Ambiental

                    Vasodilatação por álcool

                    Vasodilatação por drogas ou toxinas (ex.: benzodiazepínicos)

                    Queimaduras

                    Psoríase

                    Dermatite Exfoliativa

                    Latrogênica por diálise

                    Latrogênica por circulação extracorpórea

                    Latrogênica por infusão de soro gelado

 

Diminuição da Produção de Calor

                    Hipopituitarismo

                    Hipoadrenalismo

                    Hipotiroidismo

                    Hipoglicemia

                    Desnutrição

                    Extremos de idade

 

Perda da Regulação Térmica

                    Trauma Medular

                    Neuropatias

                    Diabetes Mellitus

                    AVC

                    HSA

                    Parkinson

                    Disfunção Hipotalâmica

                    Esclerose Múltipla

                    Anorexia

                    Drogas: ansiolíticos, antidepressivos, antipsicóticos, opióides, beta-bloqueadores

 

Outras Causas

                    Sepse

                    Pancreatite

                    Uremia

                    Carcinomatose

                    Insuficiência Vascular

                    Politrauma

 

5. Diagnóstico

         O diagnóstico da hipotermia acidental é iminentemente clínico, desde que baseado em história compatível de exposição ao frio e qualquer medida de temperatura abaixo de 35°C no paciente.

 

6. Conduta Geral

         Inicialmente como abordagem geral, o socorrista deve ter como metas prevenir a perda continuada de calor e iniciar o reaquecimento da vítima. Isso inclui retirar roupas molhadas e afastar a vítima do contato com o ambiente frio. No manejo inicial da vítima, a sequência do suporte básico de vida deve ser respeitada com avaliação das vias aéreas, respiração e circulação, porém, a despeito do estado hipotérmico, o pulso e a respiração podem ser de difícil detecção. Desta forma, o acesso inicial à respiração e posteriormente ao pulso deve ser tentado por um tempo prolongado de 30 a 45 segundos para que se confirme à parada respiratória, cardíaca ou uma bradicardia profunda que requeira ressuscitação cardio-pulmonar. Além disso, existindo a mínima dúvida quanto à presença de pulso, compressões torácicas devem ser iniciadas imediatamente. Outros pontos da abordagem geral incluem sempre manipular o paciente com cuidado, pois manipulação excessiva pode precipitar FV; monitorizar temperatura sendo que a medida axilar é a menos adequada, e deve-se dar preferência para medidas de temperatura retal, sublingual, esofágica, vesical, timpânica e em artéria pulmonar. A ressuscitação volêmica é sempre necessária, e deve ser feita com fluídos aquecidos a 43°C.

         A via aérea do paciente deve ser uma das prioridades de avaliação, assim como em qualquer emergência. Intubação orotraqueal deve ser feita prontamente quando indicada no suporte avançado do paciente (há dados na literatura que apontam para um maior risco de surgimento de arritmias nos pacientes, porém grandes séries mostram que esse risco é pequeno), pois além de proteger a via aérea, pode ser usada como via para fornecimento de calor através de oxigênio aquecido.

         Íleo paralítico por hipotermia é comum, indicando o uso de sonda orogástrica ou nasogástrica de rotina; sondagem vesical é importante para checar o andamento da ressuscitação volêmica através do débito urinário; a pele deve ser mantida seca e aquecimento das extremidades só deve ser feito depois de estabelecido um acesso venoso e ter sido iniciada a ressuscitação volêmica; pesquisar possíveis causas secundárias para a hipotermia, como intoxicação por drogas e condições clínicas subjacentes como hipotireoidismo e insuficiência adrenal.

         Quando houver parada cardíaca, deve-se estar atento para alguns pontos. Protocolos para bradicardia e arritmias ventriculares são ineficazes na hipotermia. O coração hipotérmico geralmente é irresponsivo a drogas, marcapasso e desfibrilação. Drogas devem ser feitas em temperaturas >30°C, pois ainda terão efeito, e em intervalos maiores devido ao risco de acúmulo tóxico e ao metabolismo diminuído imposto pela hipotermia. Conseguir cardioverter arritmias ventriculares é incomum quando a temperatura é <30°C. Se o caso for passível de desfibrilação, seja com desfibrilador externo automático (DEA), no ambiente extra-hospitalar ou com desfibrilador convencional, no ambiente intra-hospitalar, uma tentativa de choque pode ser feita, pois há casos descritos onde houve resposta apesar da baixa probabilidade de ocorrência de reversão. Novas tentativas de desfibrilação somente devem ser cogitadas após aquecimento corpóreo acima de 30°C a 32°C para um maior grau de sucesso. A maior parte das arritmias se resolve com o reaquecimento.

         Entretanto, alguns itens devem estabelecer limites de ressuscitação. Em primeiro lugar, a maior parte dos pacientes, por estar em hipotermia, está com proteção para o sistema nervoso central, o que estabelece a possibilidade de maior tempo de reanimação cardiopulmonar. Somente no caso de a hipotermia ter sido precedida por afogamento, é descrito que o sucesso na ressuscitação torna-se improvável. Orienta-se que a ressuscitação deva ser feita indefinidamente, por horas inclusive, até que a temperatura atinja pelo menos 35°C, quando os esforços podem ser cessados, caso o paciente permaneça em parada cardiorrespiratória.

         Entretanto, há alguns marcadores bioquímicos que devem ser levados em consideração para minimizar esforços de ressuscitação. Hipercalemia com níveis de potássio acima de 10 a 12 mEq/L, fibrinogênio baixo com valor <50mg/dL e concentrações de amônia >42pmcg/dL são todos indicadores de prognóstico grave e sugerem encerramento dos esforços de reanimação.

 

7. Conduta no Reaquecimento

         Como passo inicial do tratamento, é necessário separar os pacientes entre aqueles com ritmo perfusional e aqueles em parada cardio-respiratória. Resumidamente, temos o seguinte (maiores detalhes a seguir):

 

Pacientes com ritmo perfusional:

                    Hipotermia leve: reaquecimento passivo externo.

                    Hipotermia moderada: reaquecimento externo ativo.

                    Hipotermia grave: reaquecimento interno ativo.

 

Pacientes em parada cardio-respiratória:

                    Hipotermia moderada: iniciar RCP, desfibrilação se necessário, acesso venoso, administrar drogas em intervalos maiores de tempo, reaquecimento interno ativo.

                    Hipotermia grave: iniciar RCP, desfibrilação uma vez se necessário, não administrar drogas até que a temperatura esteja >30°C, reaquecimento interno ativo.

 

Os métodos de reaquecimento são os seguintes:

Técnicas externas passivas:

                    Tratamento de escolha para hipotermia leve;

                    Utilizar mantas térmicas, cobrindo a cabeça e o pescoço (locais de alta perda de calor por irradiação e convecção).

 

Técnicas externas ativas:

                    Indicado na hipotermia moderada e severa e nos casos leves instáveis;

                    Ar aquecido forçado;

                    Outras técnicas têm pouca evidência para utilização.

 

Técnicas internas ativas:

                    Oxigênio humidificado e aquecido entre 42 e 46°C;

                    Cristalóides aquecidos a 43°C;

                    Lavagem pleural: 10-120 L/h, líquido a 40-45°C através de tubo de toracostomia no 2º ou 3º espaço intercostal anterior esquerdo na linha hemiclavicular. O líquido deve ser retirado através de outro tubo de toracostomia locado entre o 4º e 6º espaço intercostal esquerdo na linha axilar posterior;

                    Lavagem peritoneal: colocação de dois ou mais cateteres no espaço intraperitoneal, utilizando salina aquecida. Outra opção é utilizar dialisato peritoneal, com trocas a cada 20 a 30 minutos, o que permite tratamento concomitante da insuficiência renal e da rabdomiólise;

                    Lavagem gástrica ou vesical pode ser feita com solução isotônica com temperatura máxima de 45°C. Todo líquido instilado deve ser recuperado;

                    Procedimentos extra-corpóreos: bypass cardiopulmonar, reaquecimento artério-venoso ou veno-venoso contínuo, hemodiálise e hemofiltração.

 

Um último ponto a se ressaltar é o tempo de ressuscitação.

 

8. Referências Bibliográficas

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