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crise renal esclerodérmica

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 09/05/2017

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Crise Renal Esclerodérmica

 

A esclerose sistêmica (ES), ou esclerodermia, é uma doença do tecido conjuntivo que envolve múltiplos órgãos, sendo caracterizada por alterações estruturais e funcionais de pequenos vasos sanguíneos, fibrose de pele secundária ao depósito de colágeno e ativação do sistema imune. As lesões vasculares podem se manifestar como fenômeno de Raynaud, isquemia digital, hipertensão arterial pulmonar (HAP) ou Crise Renal Esclerodérmica (CRE).

Até o final da década de 1970, a crise esclerodérmica era bastante comum, ocorrendo em 8,3% dos pacientes de uma série de casos com ES e sendo a maior causa de morte desses indivíduos. Atualmente, a doença pulmonar intersticial e a HAP são as duas principais causas de morte relacionadas com a esclerodermia, com CRE, ocorrendo em 5% dos pacientes, sobretudo aqueles com ES difusa cutânea.

O uso rotineiro de inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECAs) diminuiu a mortalidade da CRE de 75% para menos de 15% nos EUA. A CRE é uma manifestação rara da ES que se apresenta como aparecimento de hipertensão acelerada ou rápida deterioração da função renal, com frequência acompanhada por sinais de hemólise microangiopática, podendo haver manifestações clínicas de encefalopatia por hipertensão.

 

Epidemiologia

 

A prevalência da ES é pouco conhecida, mas a doença é relativamente rara, com cerca de 20 casos por milhão de habitantes nos EUA. Cerca de 80% dos pacientes têm formas limitadas de esclerodermia, sem envolvimento visceral. A incidência de CRE tem diminuído – em 4 a 6% dos indivíduos com ES, ocorrendo quase que exclusivamente nos pacientes com a forma difusa da doença.

Alguns fatores de risco para o desenvolvimento de CRE incluem a presença de anemia, doença cardíaca associada, bem como autoanticorpos RNA polimerase, além do uso de prednisona em doses >15-20mg/dia, que foi demonstrado ser um forte causador da doença, e de ciclosporina. A CRE também pode ocorrer em pacientes transplantados renais.

 

Fisiopatologia

 

A fisiopatologia da CRE ainda não foi compreendida em sua totalidade, e os mecanismos patogênicos são múltiplos. A doença parece iniciar-se na camada íntima vascular renal, causando estreitamento luminal e diminuição do fluxo sanguíneo, com vasoconstrição local e perfusão renal diminuída. A CRE costuma ocorrer com maior frequência no inverno – o que sugere que existe um papel na modulação do fluxo vascular. A presença de lesões em “casca de cebola”, com múltiplas camadas em vasos renais, mostra o envolvimento da camada vascular íntima.

Entre outros mecanismos, a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona desempenha um papel importante no processo renovascular, causando hipertensão arterial. A renina plasmática é extremamente elevada, tendo sido encontrada hiperplasia do aparelho justaglomerular em autópsias. Como em todas as causas de hipertensão arterial renovascular, os níveis hormonais são elevados, mas não se correlacionam com a gravidade ou ocorrência de CRE.

Os níveis circulantes de endotelina 1 (ET-1) estão aumentados nos pacientes com CRE. Alterações vasculares e hiperreninemia podem estar presentes em pacientes com ES assintomáticos, e fatores adicionais que podem causar redução do fluxo sanguíneo renal (FSR), como sepse, desidratação, arritmia cardíaca e insuficiência cardíaca congestiva (ICC), podem desencadear a CRE.

 

Manifestações Clínicas

 

Cerca de 90% dos indivíduos com CRE são hipertensos, e observam-se sintomas de hipertensão maligna (HM). Os sinais clínicos sugestivos incluem cefaleia e sinais de encefalopatia hipertensiva, insuficiência cardíaca (IC) e arritmia. Alterações como hematúria são bastante comuns.

Os pacientes podem apresentar encefalopatia hipertensiva, com início agudo ou subagudo de alterações como letargia, fadiga, confusão, cefaleia, alterações visuais como borramento e, em casos raros, cegueira e convulsões, sendo bastante grave, mas relativamente específica para o diagnóstico. A hemorragia cerebral é um evento raro. As convulsões podem ser focais ou generalizadas. Alguns indivíduos podem ter derrame pericárdio e, inclusive, hemorragia alveolar, a qual pode ser fatal em alguns pacientes.

A CRE ocorre em cerca de 10% dos pacientes sem hipertensão, ainda que alguns deles desenvolvam, posteriormente, hipertensão arterial. Pacientes normotensos com CRE são, com frequência, expostos a glicocorticoides; dois terços deles têm microangiopatia trombótica, e seus prognósticos são piores do que quando a hipertensão é presente. A CRE costuma ocorrer em 1 ano após o aparecimento da esclerose difusa de pele. Outras alterações frequentes que acompanham a doença incluem fenômeno de Raynaud recente, fadiga, perda de peso e poliartrite.

 

Exames Complementares

 

A creatinina sérica pode ser aumentada de forma significativa no início da CRE. Mesmo depois do controle adequado da pressão arterial (PA), a creatinina sérica pode continuar a aumentar por vários dias. O exame de urina mostra, com frequência, proteinúria moderada (0,5-2,5g/L). Hematúria microscópica, muitas vezes detectada por tiras reagentes, também pode corresponder à hemoglobinúria na maioria dos pacientes.

A microangiopatia trombótica, definida como anemia hemolítica e trombocitopenia, ocorre em 43% dos pacientes com CRE. A trombocitopenia é, em geral, moderada com a maioria dos pacientes com mais de 50 mil plaquetas/mm3 e, com frequência, retorna para dentro do intervalo normal assim que a PA é controlada.

A presença de anticorpos antinucleares é comum. Os anticorpos anti-Scl-70 são detectados em cerca de 35% dos casos. A dosagem de anticorpos anti-RNA polimerase II raramente está presente na população, mas é preditiva de desenvolvimento de CRE. A positividade do anticorpo anticentrômero não se correlaciona com CRE, porém esses anticorpos são encontrados em apenas 1 a 3% dos pacientes com CRE, tornando menos provável sua ocorrência quando presentes.

A biópsia renal não é essencial para o diagnóstico, e deve ser evitada em pacientes com mau estado geral. Apesar disso, ela pode oferecer algumas vantagens: exclusão de diagnósticos diferenciais, confirmação do diagnóstico e avaliação do prognóstico com base na histologia renal. No caso de formas atípicas, a biópsia renal torna-se obrigatória para confirmar o diagnóstico de CRE.

Para alguns pacientes, a biópsia renal deve ser obtida somente após a PA ser controlada, de modo que os médicos tenham tempo para decidir se ela é necessária ou não. Se a trombocitopenia é grave, a biópsia renal não deve ser realizada ou, então, deve ser feita através de uma veia jugular.

As lesões histológicas podem ser vasculares, glomerulares, tubulares e intersticiais. O processo isquêmico pode ser responsável por infartos renais e hemorragias subcapsulares. As lesões são semelhantes às observadas em HM. Modificações em paredes vasculares ocorrem por alterações endoteliais, com espessamento da camada íntima mucosa e proliferação celular miointimal sem células inflamatórias. Em alguns pacientes, a presença de necrose arteriolar fibrinoide ou trombose indica microangiopatia trombótica. São comuns, também, as alterações glomerulares, em geral focais, podendo os glomérulos serem normais ou isquêmicos.

 

Prognóstico

 

Antes da década de 1980, e do advento dos IECAs, a CRE quase sempre resultava em insuficiência renal (IR) e morte, normalmente dentro de meses. O uso de IECA melhorou de forma drástica o prognóstico do CRE: as taxas de sobrevida em 1, 2, 5, e 10 anos, para os pacientes com CRE, foram de 70,9, 66,6, 60 e 41,9%.

Fatores de risco identificados com mau prognóstico incluem:

               sexo masculino;

               idade avançada;

               ICC;

               creatinina sérica >3mg/dL no início do tratamento;

               necessidade de mais de 3 dias para o controle da PA.

A taxa de sobrevivência foi menor para pacientes que evoluíram com necessidade de diálise.

 

Tratamento

 

A longo prazo, além do manejo de fase terminal de IR, da diálise e do transplante, é indicado também o tratamento de esclerodermia grave. Os indivíduos com CRE têm, normalmente, mau estado geral e, muitas vezes, sequelas que podem ser difíceis de manejar.

Os IECAs são o principal tratamento para a CRE. Antes do uso generalizado dessa família de medicamentos, os resultados eram ruins e a mortalidade, alta. Os inibidores da angiotensina II (ATII) são uma opção; as respostas aos IECAs ou aos inibidores da ATII não são boas em todos os pacientes, o que pode estar refletindo a heterogeneidade de polimorfismos genéticos em pacientes com ES.

Os IECAs devem ser prescritos para todos os pacientes ES, mesmo aqueles com IR. A curta duração de ação do IECA é recomendada (por exemplo, captopril em 6,5-12,5mg/8h). A dose pode ser aumentada, de forma progressiva, até que a PA normalize e a função renal melhore – esses são os objetivos do tratamento. Aproximadamente, metade dos pacientes necessita de diálise. Uma vez que um IECA foi iniciado e é eficaz, a função renal, em geral, se estabiliza.

Outros fármacos anti-hipertensivos podem ser adicionados a um IECA caso ele não responder ao tratamento. Medicamentos que levem à vasodilatação, como os bloqueadores dos canais de cálcio (BCC), são os fármacos de escolha. Os ß-bloqueadores não devem ser prescritos, exceto para pacientes com IC quando puderem melhorar a função cardíaca. Em pacientes com CRE com PA normal, um IECA também pode ser prescrito, porém cuidados com a PA, estado volêmico e monitoramento da função renal são necessários.

A terapia adjuvante com doses contínuas, baixas, de prostaciclina foi recomendada, sem fortes evidências de que melhoram o prognóstico na CRE de curto e longo prazo. A plasmaférese, que foi proposta para microangiopatia trombótica, não demonstrou eficácia e não deve ser prescrita, com exceção dos pacientes raros com CRE que possam desenvolver microangiopatia trombótica associada a anticorpos anti-ADAMTS-13.

Em pacientes submetidos à diálise crônica, devido aos altos riscos associados de infecção, entre outras complicações, o transplante renal tem de ser considerado. A decisão final para transplante não deve ser feita antes de 2 anos após o início da CRE. Em uma série de 260 pacientes com ES submetidos a transplante renal nos EUA, a taxa de sobrevida do enxerto em 5 anos foi de 56,7%. Nesse estudo, o risco de recorrência da CRE foi maior para os pacientes com IR precoce. A recorrência é comum nos primeiros meses.

 

Prevenção

 

Montanelli e colaboradores relataram, recentemente, uma análise retrospectiva de 410 pacientes com ES, com tempo de doença inferior a 5 anos, cujo risco de desenvolver CRE foi drasticamente reduzido em relação aos BCCs prescritos. O uso de IECA profilático continua a ser motivo de debate, pois alguns pacientes com ES desenvolveram CRE na vigência desses agentes. Normalmente, indivíduos que recebem um IECA para tratamento de CRE continuam o tratamento sem nenhuma recomendação para interrupção dele.

Os IECAs têm sido propostos para tratar outras manifestações vasculares em pacientes com ES. Eles não demonstraram nenhum benefício em relação ao fenômeno de Raynaud ou úlceras digitais. Continua sendo uma questão controversa se a baixa dose profilática de IECA protege contra CRE ou se leva ao aumento do risco de CRE mais grave.

 

Referências

 

1-Hudson M. Scleroderma renal crisis. Curr Opinin Rhematol 2015; 27: 549-554.

2-Guillevin L, Mouthon L. Scleroderma renal crisis. Rheum Dis Clin North Am 41 (2015) 475–488.

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