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Intoxicação por Litio

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 17/08/2017

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Intoxicação por Lítio no Departamento de Emergência

 

O lítio (Li) é um dos medicamentos mais eficazes para o tratamento do transtorno bipolar. Particularmente útil para o tratamento de episódios maníacos agudos, ele reduz as taxas de suicídio associadas a transtornos afetivos, e o seu uso é descrito, desde o século XIX, na forma de “água com Li”, que tinha efeitos benéficos para os casos de mania e gota.

Outras utilizações do Li incluem a ação de fármacos antidepressivos e o tratamento de agressão e do distúrbio de estresse pós-traumático. A toxicidade do Li, em geral, resulta de superdosagem acidental ou intencional, aumento da dose ou redução da depuração renal de Li.

 

Farmacologia

 

O efeito farmacológico específico responsável pelo benefício terapêutico do Li em caso de transtorno bipolar e mania é desconhecido, mas sabe-se que age tanto na via do inositol monofosfato, quanto na via do glicogênio sintase quinase-3. O Li compete com outros cátions, incluindo sódio, potássio, magnésio e cálcio, e os desloca de sítios intracelulares e extracelulares.

A interferência com íons de sódio no canal de sódio e a bomba de sódio e potássio na membrana celular é responsável pelo efeito adverso do Li sobre a atividade elétrica do miocárdio. O Li inibe o efeito da arginina-vasopressina, o qual é responsável pela poliúria e pelo diabetes insípido (DI) nefrogênico visto durante a terapia com Li.

O Li pode aumentar a liberação de serotonina, sobretudo do hipocampo, e tem sido implicado na síndrome da serotoninérgica quando combinado com outros medicamentos que alteram o metabolismo da serotonina. Além disso, tem rápida e completa absorção oral, com picos plasmáticos de concentração 1 a 2 horas após a ingestão, e, mesmo nas formas de liberação prolongada, o pico plasmático ocorre de 4 a 6 horas após a ingestão. A excreção é, quase em sua totalidade, renal, de maneira similar à excreção de sódio.

As medicações com potencial de alterar a função glomerular podem contribuir para a toxicidade do Li, particularmente os diuréticos tiazídicos. Os agentes bloqueadores neuromusculares como succinilcolina, vecurônio e pancurônio podem resultar em bloqueio neuromuscular prolongado quando administrados a pacientes que recebem terapia de Li a longo prazo.

O Li é uma causa comum de DI nefrogênico, podendo ocorrer em até 40% dos pacientes que recebem tratamento com Li a longo prazo, e por meio da diminuição da expressão da aquaporina-2 no túbulo distal do néfron. O defeito nos néfrons distais pode, ainda, causar uma incapacidade de acidificar a urina, levando a uma acidose tubular renal distal incompleta sem acidemia.

O tratamento prolongado com Li pode levar a uma nefropatia progressiva, com uma pequena redução na filtração glomerular, com um risco absoluto de 1% de necessitar de uma terapia de substituição renal. A manutenção dos níveis séricos de Li abaixo de 0,8mEq/L (0,8mmol/L) pode reduzir os danos renais a longo prazo.

Os efeitos secundários gastrintestinais, incluindo náuseas, vômitos e diarreia, são comuns no início do tratamento; porém, são, em geral, transitórios e podem ser diminuídos pela administração da medicação juntamente com alimentos ou dividindo a dose ao longo do dia. As anormalidades eletrocardiográficas comumente relatadas com o uso de Li incluem prolongamento do intervalo QT, achatamento ou inversão de onda T e bradicardia significativa.

O hipotireoidismo é a disfunção endócrina mais prevalente, ocorrendo com uma taxa quase seis vezes maior na população em geral. O hiperparatireoidismo e a hipercalcemia estão, com frequência, relacionados e podem ser associados à estimulação da hiperplasia ou a adenomas.

O Li pode apresentar três tipos de toxicidade: toxicidade aguda em pacientes não tratados previamente; toxicidade aguda em pacientes que utilizam, de forma crônica, Li a longo prazo e receberam uma superdosagem aguda; toxicidade crônica em pacientes que recebem terapia com Li a longo prazo. A diminuição da filtração glomerular ou a depleção do volume intravascular são causas precipitantes em quase todos os casos de toxicidade crônica.

Os níveis de Li têm apenas uma correlação aproximada com a gravidade da intoxicação. O Li não é ligado às proteínas plasmáticas e tem um volume de distribuição semelhante ao da água corporal, mas que pode aumentar com o passar do tempo à medida que o íon se distribui por todo o corpo. A ingestão de um único comprimido de carbonato de Li de 300mg contendo 8,12mEq de Li aumenta de forma aguda os níveis séricos de Li em 0,2mEq/L (0,2mmol/L) em um adulto de 70kg.

A distribuição de Li dentro e fora do cérebro é mais lenta, resultando em efeitos neurológicos que não se correlacionam com os níveis séricos. Os efeitos tóxicos podem persistir após a hemodiálise devido ao lento movimento do fármaco para fora do sistema nervoso central (SNC). Portanto, os níveis séricos não predizem os níveis de Li no SNC e apenas se correlacionam de forma grosseira com os sintomas clínicos.

A meia-vida de eliminação após uma única dose de Li é de 18 a 24 horas em adultos jovens e quase o dobro em idosos. Após a continuação da terapia por mais de 1 ano, a meia-vida de eliminação de Li aumenta, chegando a quase 60 horas. O Li não é metabolizado e é excretado inalterado, sobretudo na urina, sendo reabsorvido no túbulo proximal.

Os fatores que contribuem para a intoxicação por Li incluem insuficiência renal (IR), alterações eletrolíticas e depleção volêmica. Os idosos são particularmente propensos à toxicidade, sobretudo quando tratados de forma concomitante com diuréticos de alça ou inibidores da enzima conversora da angiotensina (Eca).

 

Características Clínicas

 

Os efeitos adversos durante o uso terapêutico do Li são comuns, ocorrendo em até 90% dos pacientes tratados. Os mais frequentes são tremor postural de mãos, fadiga, poliúria devido à perda da capacidade urinária de concentração, hipotireoidismo e hiperparatireoidismo com hipercalcemia. A piora de um tremor basal e o desenvolvimento de ataxia ou disartria são sinais significativos de toxicidade e podem indicar uma necessidade de diminuir a dose de Li.

O tratamento prolongado com Li pode levar a alterações eletrencefalográficas, incluindo diminuição da velocidade, aumento das ondas 0 e d e diminuição da atividade a.

O Quadro 1 contém as manifestações clínicas de acordo com o nível da severidade da intoxicação por Li.

 

Quadro 1

 

INTOXICAÇÃO POR LÍTIO

Severidade da intoxicação

Litemia sérica

Manifestações clínicas

Leve

1,5-2,5mEq/L

Náuseas, vômitos, fadiga, letargia, tremor fino.

Moderada

2,5-3,5mEq/L

Confusão, agitação, disartria, ataxia, hipertonia, hiperreflexia, nistagmo, fraqueza muscular.

Severa

>3,5mEq/L

Coma, convulsões, mioclonia, hipertermia, colapso cardiovascular.

 

Os pacientes com intoxicação aguda apresentam, inicialmente, sintomas gastrintestinais como anorexia, náuseas, vômitos e diarreia, que podem cursar com depleção volêmica e piora da função renal, agravando, por sua vez, a intoxicação. Os sintomas neurológicos são tardios e, quando aparecem, o paciente normalmente já tem melhora dos sintomas gastrintestinais, como ataxia troncal, confusão, agitação psicomotora e aumento da excitabilidade neuromuscular com mioclonias e espasmos, podendo, em casos severos, levar a convulsões, estado de mal epiléptico e até mesmo à encefalopatia.

A toxicidade do Li pode ocasionar a disfunção distal dos túbulos renais, com diminuição da resposta à arginina vasopressina, de modo que os pacientes podem desenvolver poliúria significativa compensada por polidipsia. A alteração desse equilíbrio pode levar a distúrbios eletrolíticos, como hipernatremia, depleção de volume e IR.

As anormalidades cardíacas são mais comuns na toxicidade aguda e podem causar hipotensão, bradicardia e disritmias ventriculares, apresentando-se como síncope. A toxicidade crônica do Li pode estar associada a casos raros de taquicardia ventricular. As alterações do eletrocardiograma (ECG) com um intervalo QT prolongado, a depressão do segmento ou a inversão da onda T são observadas em alguns pacientes.

Os efeitos tóxicos menos comuns incluem hipertermia, hipotermia, neuropatia periférica e leucopenia grave. Casos raros de síndrome do desconforto respiratório do adulto têm sido associados à toxicidade aguda de Li. Até 10% dos indivíduos com toxicidade grave pelo Li morrem, em geral de insuficiência respiratória ou colapso cardiovascular.

A maioria dos pacientes se recupera, com efeitos tóxicos se resolvendo com a diminuição da litemia sérica. Podem desenvolver-se lesões cerebelares e em gânglios da base. A perda de memória de curto prazo, a demência e o tremor das mãos e da cabeça podem acompanhar os sinais cerebelares.

 

Diagnóstico

 

Os pacientes com intoxicação aguda podem ter concentrações séricas bastante elevadas que não se correlacionam bem com a gravidade dos sintomas ou com o prognóstico. Aqueles com toxicidade crônica apresentam efeitos neurológicos mais precocemente e mais proeminentes em associação com menores concentrações séricas. Os níveis séricos de Li, nesses casos, se correlacionam melhor com o grau de toxicidade, porém o quadro clínico do paciente é o fator mais importante, havendo sintomas de intoxicação por Li descritos em casos de litemia sérica em níveis terapêuticos.

Os indivíduos em uso crônico de Li com suspeita de intoxicação devem ser monitorados com litemia sérica; os níveis terapêuticos de Li são considerados de 0,6 a 1,2mEq/L (0,6 a 1,2mmol/L). A faixa tóxica varia de acordo com as circunstâncias clínicas, com a maioria dos doentes manifestando efeitos tóxicos a níveis >2mEq/L (>2mmol/L).

Um ECG de 12 derivações pode ser útil na identificação de um nível >1,2mEq/L (>1,2mmol/L), com o intervalo QTc >440ms, e as inversões de onda T difusas com razões de verossimilhança positivas de 7 e 4, respectivamente, para o diagnóstico de intoxicação por Li. O hipotireoidismo induzido por Li pode ser grave, precipitando até mesmo o estado mixedematoso. Portanto, é fundamental verificar os níveis de hormônio estimulador da tireoide (TSH) e tiroxina livre (T4L) em pacientes com alteração da consciência.

O Quadro 2 contém os exames indicados para os pacientes com intoxicação por Li.

 

Quadro 2

 

EXAMES INDICADOS PARA PACIENTES COM INTOXICAÇÃO POR LÍTIO

               ECG

               Ureia, creatinina

               Sódio, potássio

               Cálcio, magnésio

               Hemograma completo

               TSH e T4L (em caso de nível alterado de consciência)

               Litemia sérica

               Glicemia capilar

               Exame toxicológico para outras possíveis intoxicações (por exemplo, acetaminofeno)

               ß-HCG em mulheres com potencial gestação

ECG: eletrocardiograma; ß-HCG: gonadotrofina coriônica humana; TSH: hormônio estimulador da tireoide; T4L: tiroxina livre.

 

Tratamento

 

A estabilização inicial do paciente inclui a proteção das vias aéreas e o suporte ventilatório e hemodinâmico. O tratamento depende da gravidade clínica. A primeira medida é a reposição volêmica, comumente iniciada com solução salina fisiológica, com uma quantidade de, aproximadamente, 2 a 3L. A dose típica em adultos é um bolus intravenoso de soro fisiológico normal, 20mL/kg, seguido de infusão contínua em 1,5 a 2 vezes a manutenção da taxa, com a reposição volêmica restabelecendo a eliminação do Li.

A diurese induzida por diuréticos não aumenta a eliminação do Li, e, de fato, os diuréticos de alça e tiazídicos promovem a perda de água, que é seguida pela retenção de Li. Deve ser realizada a monitorização do débito urinário devido à possibilidade de DI nefrogênico associado, tentando manter o paciente com estado euvolêmico. Os eletrólitos, se possível, devem ser mantidos dentro da normalidade.

Os doentes com episódios convulsivos devem receber benzodiazepínicos endovenosos como o lorazepam. Deve-se obter toxicologia e consulta de neurologia para convulsões refratárias. A fenitoína é ineficaz no controle de convulsões induzidas por fármacos.

A lavagem gástrica não tem papel na maioria dos casos de intoxicação por Li. O xarope de ipeca para induzir vômitos também não é recomendado. A irrigação intestinal com solução de polietilenoglicol, 2L/h, é eficaz na remoção de Li do corpo após uma ingestão aguda de preparações de liberação sustentada, desde que não haja alteração do estado mental; porém, não é recomendada de rotina. O uso de carvão ativado não previne a absorção e não é recomendado.

O poliestireno sulfonato de sódio (Kayexalate®) é uma resina de troca que se liga ao Li, com eliminação de uma quantidade moderada da carga corporal de Li e reduzindo a meia-vida de eliminação. As doses utilizadas em estudos observacionais, sobretudo em casos de toxicidade crônica, são de 30g dissolvidos em 120mL de água, por via oral, a cada 4 a 6h, com uma diminuição da litemia sérica e da meia-vida do Li - abordagem não recomendada, já que essa medicação é de difícil uso em pacientes com alteração do nível de consciência devido ao risco de aspiração, ao potencial de hipocalemia e de constipação e à eficácia de outras terapias.

O Li pode ser removido por hemodiálise, mas há muito debate sobre o limiar para iniciar esse tratamento. A hemodiálise é indicada para os indivíduos com sintomas de toxicidade grave, os que não podem tolerar o tratamento com reposição volêmica ou aqueles cuja função renal é prejudicada e que não têm a capacidade de eliminar o Li.

Recomenda-se o tratamento com hemodiálise nas seguintes situações:

               litemia sérica >4,0mEq/L na presença de IR (creatinina >2,0mg/dL);

               litemia sérica >5mEq/L, independentemente dos sintomas;

               coma, convulsões ou manifestações com risco de vida, independentemente da litemia sérica;

               litemia sérica >2,5mEq/L e sintomas significativos de toxicidade por Li.

Os níveis séricos de Li devem ser monitorados por até 8h após a hemodiálise. Se os sintomas de toxicidade se repetirem ou piorarem ou se os níveis aumentarem de forma significativa, recomenda-se repetir a hemodiálise. A diálise peritoneal tem sido utilizada no tratamento da toxicidade do Li, porém as taxas de depuração são quase equivalentes às da depuração renal normal.

As decisões de admissão hospitalar devem ser tomadas considerando-se a presença e a persistência de fatores predisponentes de toxicidade, a gravidade da toxicidade e as circunstâncias que levaram a essa condição. Os pacientes assintomáticos com ingestão aguda devem ser monitorados durante 4 a 6h, com litemia sérica mensurada. Qualquer paciente com ingestão aguda de uma preparação de liberação prolongada deve ser admitido independentemente do nível sérico de Li.

Os doentes com toxicidade leve que não apresentam fatores de risco adicionais podem ser tratados por meio de hidratação com soro fisiológico durante 6 a 12h, de forma frequente, em uma unidade de observação. Quando os níveis repetidos da litemia sérica diminuem para <1,5mEq, esses pacientes podem receber alta após a avaliação psiquiátrica se necessário. Aqueles com toxicidade moderada requerem internação hospitalar, e os com toxicidade grave necessitam de cuidados intensivos.

Os pacientes que tomam Li podem procurar atendimento no departamento de emergência para condições não relacionadas à saúde mental ou à toxicidade ao Li. Deve-se evitar prescrever fármacos que afetem negativamente a filtração glomerular e a função renal. Os diuréticos tiazídicos, os fármacos anti-inflamatórios não esteroidais, os inibidores da Eca e os bloqueadores dos receptores da angiotensina são alguns agentes comuns que têm potencial para predispor a intoxicação por Li.

 

Referências

 

1-Schneider SM, Cobaugh DJ, Kessler BD. Lithium in Tintinalli Emergency Medicine 2016.

2- Timmer RT, Sands JM. Lithium intoxication. J Am Soc Nephrol 1999; 10:666.

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