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Cirrose hepática

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 20/06/2016

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Cirrose hepática pode ocorrer por diferentes mecanismos de lesão hepática que podem levar à necroinflamação e fibrogênese; histologicamente caracteriza-se pelo estágio final de um processo de regeneração nodular circundado por densos septos fibrosos com substituição progressiva do parênquima normal, causando distorção da arquitetura vascular hepática, esta distorção resulta em aumento da resistência ao fluxo sanguíneo portal e, portanto, em hipertensão portal e na disfunção de síntese hepática.

 

Epidemiologia

A  cirrose é causa de mais de 400.000 internações hospitalares ao ano e aproximadamente 50.000 mortes por ano nos EUA. No Brasil, é associada a uma taxa de mortalidade de aproximadamente de 7,89/ 100.000 habitantes ao ano. No entanto, estudos recentes mostram que a mortalidade de um ano de pacientes com cirrose varia de 1 a 57%, dependendo de complicações clínicas que ocorram. Em termos mundiais, a cirrose é uma causa crescente de morbilidade e mortalidade nos países mais desenvolvidos, sendo a décima quarta causa mais comum de morte em adultos no mundo inteiro, com mais de 1 milhão de mortes anuais. A cirrose é a principal indicação para transplante hepático. As principais causas para sua ocorrência incluem infecção pelo vírus da hepatite C,  abuso do álcool, e, cada vez mais, doença hepática gordurosa não alcoólica; a infecção pelo vírus da hepatite B, por sua vez, é a causa mais comum de cirrose hepática na África Subsaariana e na maior parte da Ásia. A prevalência de cirrose é difícil de avaliar e, provavelmente, maior do que os relatórios epidemiológicos sugerem, porque as fases iniciais são assintomáticas, em pacientes com doença clínica a prevalência mundial estimada é de 0 a 3% da população, já em estudos de necróspia mostram prevalência de cirrose em adultos de 3 a 5%.

 

Fisiopatologia

Vários processos patológicos podem cursar com cirrose. Os processos que levam à evolução da cirrose envolvem inflamação do parênquima hepático, fibrogênese hepática por ativação de mastócitos e fibroblastos e angiogênese secundária às lesões do parênquima causadas pela oclusão vascular. Este processo leva a  pronunciadas alterações microvasculares hepáticas, caracterizadas por remodelação sinusoidal, formação de shunts intra-hepáticos (devido à angiogênese e perda de células parenquimatosas) e disfunção hepática endotelial. A disfunção endotelial é caracterizada pela liberação insuficiente de vasodilatadores, entre os quais o mais importante é o óxido nítrico.

A liberação de óxido nítrico é inibida pela baixa atividade endotelial do óxido nítrico sintetase, com concomitante produção aumentada de vasoconstritores (principalmente pela estimulação adrenérgica e produção de tromboxano A2, mas também a ativação do sistema renina-angiotensina, hormônio antidiurético e endotelinas). A resistência hepática aumentada ao fluxo sanguíneo portal é o principal fator do aumento da pressão portal na cirrose. É o resultado da combinação de distúrbios estruturais associados com doença hepática avançada, com destruição de pelo menos 70% do parênquima hepático e de anormalidades funcionais levando à disfunção endotelial e ao aumento do tônus vascular hepático.

A vasodilatação esplâncnica com um consequente aumento no influxo de sangue para o sistema venoso portal contribui para o aumento da pressão venosa portal. A vasodilatação esplâncnica é uma resposta adaptativa às mudanças hemodinâmica em cirrose, os seus mecanismos são diretamente opostos aos do aumento do tônus vascular hepático. Na cirrose avançada, a vasodilatação esplâncnica é tão intensa que causa uma circulação hiperdinâmica, o que em conjunto com hipertensão portal tem um papel importante na patogênese da ascite e da síndrome hepatorrenal. O gradiente de pressão portal  (deltaP: diferença de pressão entre o sistema venoso portal e sistêmico) é o produto do fluxo portal (Q) e da resistência vascular a este fluxo (R), conforme expresso pela lei de Ohm (deltaP = Q X R).

A pressão normal na veia porta varia entre 5 e 10 mmHg,  sofrendo variações com a pressão intra-abdominal. A pressão venosa hepática também é afetada pela pressão intra-abdominal e reflete a pressão de enchimento venoso central (PVC - pressão venosa central), o gradiente de pressão portal representa a medida da pressão, que é definida pela diferença de pressão na veia hepática ocluída ou encunhada (wedge) e na veia hepática livre. O gradiente normal é menor do que 5 mmHg, pressões maiores que esta começam a evoluir com as complicações associadas e quando maiores que 10 mmHg pode ocorrer a formação de varizes esofágicas. Com a evolução do processo de destruição do fígado, quando ocorrre perda de função maior do que 75%, podem ocorrer as complicações associadas com esta disfunção, com diminuição da síntese de albumina e fatores de coagulação, metabolização de estrógenos, entre outras funções realizadas pelo parênquima hepático. A formação e a progressão no tamanho das varizes é impulsionada por fatores anatômicos, o aumento da pressão portal e por angiogênese dependente do fator de crescimento vascular endotelial, os quais contribuem para varizes complicarem com ruptura e hemorragia.

Os pacientes podem ainda apresentar dilatação dos vasos da mucosa gástrica levando à gastroparesia. Além disso, o desvio do sangue portal para a circulação sistêmica através dos colaterais portossistêmicos é um dos principais determinantes da encefalopatia hepática e interfere no metabolismo de primeira passagem de várias medicações administradas por via oral e cursam ainda com a diminuição da função do sistema reticuloendotelial. A capilarização dos sinusoides hepáticos e shunts intra-hepáticos é  igualmente importante porque essas alterações interferem com a  perfusão do hepatócito, que é um dos principais determinantes da insuficiência hepática.

A vasodilatação sistêmica associada a cirrose pode levar à alteração da relação perfusão/ventilação pulmonar e em casos graves pode ocorrer a síndrome hepatopulmonar e hipoxemia arterial.  A hipertensão portopulmonar é caracterizada por constrição vasopulmonar, que é provavelmente secundária à disfunção endotelial na circulação pulmonar.

 

Etiologias

A maioria dos casos de cirrose é causada  pela hepatite C, doença hepática não alcoólica e doença hepática gordurosa não alcoólica, que respondem por mais de 80% dos casos que são referidos para transplante hepáticos nos EUA. Causas menos comuns de cirrose incluem  hepatite B, cirrose biliar primária, hemocromatose, disfunção hepática secundária a medicações, doença de Wilson e hepatites autoimunes. A tabela 1 sumariza as principais etiologias de cirrose hepática.

 

Tabela 1: Etiologias de cirrose hepática

 

Mais comuns ( > 80%)

Menos frequentes (20%)

Hepatite C

Hepatite B

Doença Hepática alcóolica

Cirrose biliar primária

Doença Hepática gordurosa não alcoólica

Hemocromatose

 

Deficiência de alfa-1-antitripsina

 

Doença de Wilsonça de Wil?fa-1-antitripsinates auto-imunes. A tabela 1 sumariza as principais etiologias de cirrose hepalizada EV por toda a ext

 

Hepatite auto-imune

 

Medicamentos

 

Síndrome de Budd-Chiari

 

Esquistossomose

 

Colangite esclerosante primária

 

Doença celíaca

 

Ductopenia idiopática da infância

 

Doença hepática veno-oclusiva

 

Doenças granulomatosas hepáticas

 

Infecções (brucelose, sífilis, equinococose...)

 

Insuficiência cardíaca

 

Fibrose portal idiopática

 

Doença hepática policística

 

Algumas destas etiologias têm características que são descritas em outras sessões, as hepatites alcoólicas, por exemplo, cursam com aumentos de AST maiores do que de ALT e na forma aguda a relação AST/ALT costuma ser superior a 2, os valores das enzimas hepáticas costumam ser menores do que 500 u/L e na hepatite alcoólica aguda pode ocorrer leucocitose significativa.

As hepatites virais são definidas pela presença do HbSAg 4 a 6 semanas após infecção aguda no caso da hepatite B e no caso da hepatite C, testes como o EIA-2 são usados para rastreamento e o RIBA para confirmação diagnóstica. A esteatose hepática não alcóolica cursa com associação à  diabetes mellitus, hipertrigliceridemia, baixo colesterol HDL e obesidade e representa cerca de 80% das cirroses sem etiologia definida.

A cirrose biliar primária ocorre quase que exclusivamente em mulheres, podendo ser assintomática no diagnóstico, os sintomas mais comuns são fadiga e prurido devido à colestase associada, os anticorpos antimitocôndria estão presentes em > 95% dos casos. A colangite esclerosante primária, por sua vez, é uma doença colestática que ocorre principalmente em homens, de causa indeterminada e associação com as doenças inflamatórias intestinais.

As hepatites autoimunes são frequentemente associadas com outras doenças autoimunes, são mais comuns em mulheres e apresentam marcadores sorológicos como o anticorpo antimúsculo liso, Ac anti-LKM1, ANA e anticorpos anticitosol hepático. A hemocromatose hereditária já é uma doença genética, sendo a mais frequente das doenças genéticas em caucasianos e se caracteriza por acúmulo de ferro no fígado e em outros tecidos, testes de rastreamento incluem a saturação de transferrina e  ferritina.

Na deficiência de alfa-1-antitripsina, as manifestações pulmonares são mais frequentes, mas os pacientes podem evoluir com cirrose, o diagnóstico deve ser considerado na associação de cirrose e de enfisema pulmonar. A doença de Wilson, por final, é uma doença genética com manifestações neurológicas e hepáticas associadas com alterações do metabolismo do cobre e deve ser suspeitada em pacientes com cirrose principalmente na faixa etária entre 3 e 40 anos de idade.

 

Classificação

A cirrose pode ser classificada principalmente do ponto de vista morfológico e funcional. Do ponto de vista morfológico, a cirrose pode ser classificada como micronodular, macronodular, mista ou septal incompleta. Alguns autores acham que a partir da classificação morfológica também podemos chegar à etiologia da cirrose, que pode ser desconhecida em até 30% dos pacientes. A cirrose micronodular, também denominada de cirrose de Laennec, cursa com nódulos de regeneração pequenos, variando de 0,1 a 0,3 cm de diâmetro. Ocorre classicamente na fase inicial da cirrose alcoólica. Outras etiologias de cirrose micronodular incluem  hemocromatose, colestase e obstrução ao fluxo venoso. Posteriormente, a cirrose micronodular se transforma em macronodular na doença hepática alcoólica.

A cirrose macronodular cursa na sua apresentação com nódulos de regeneração maiores, de até 0,5cm. Também é denominada de pós-necrótica, irregular e pós-colapso, sendo associada principalmente com as hepatites virais. Na cirrose mista, talvez a forma mais comum, ocorre áreas com micronódulos e áreas com macronódulos. Na cirrose septal incompleta, os nódulos são maiores atingindo até 1 cm de diâmetro e a fibrose portal é proeminente.

A cirrose classicamente sempre foi considerada como uma doença terminal, mas os estudos e conceitos recentes tentam classificá-la  como um processo dinâmico cuja evolução natural pode ser dividida em quatro fases clínicas:

 

Fase 1: Cirosse compensada sem varizes esofágicas: mortalidade de 1% por ano;

Fase 2: Cirrose compensada com varizes: mortalidade anual 3%;

Fase 3: Cirrose descompensada com varizes: mortalidade anual 20%;

Fase 4: Cirrose descompensada com sangramento gastrointestinal: mortalidade > 50% ao ano.

 

As infecções e insuficiência renal são frequentemente os eventos descompensadores que levam à falência de órgãos com mortalidade de 30%.  A mortalidade é mais elevada em pacientes anteriormente compensados do que naqueles com descompensação anterior, o que sugere uma maior tolerância neste último à resposta inflamatória dos eventos desencadeadores. Os fatores precipitantes incluem infecção, cirurgia e carcinoma hepatocelular. Além disso, prognóstico é importante, especialmente para pacientes na fase assintomática. A histologia tradicional não tem um estágio além da cirrose, portanto, não pode ser usada para refinar o prognóstico, mas tamanho e largura aumentada do septo nodular é associada com reação enxerto-hospedeiro e desfechos clínicos.

Para os pacientes com doença mais avançada, escores prognósticos são amplamente utilizados para prever a sobrevivência e a necessidade de transplante. A pontuação MELD é baseada na creatinina e as concentrações de bilirrubina e o INR) predizendo a mortalidade de três meses. O UKELD acrescenta a concentração sérica de sódio para os componentes MELD e prediz a mortalidade de um ano. A pontuação MELD é complicada de se calcular e utiliza a seguinte equação:

 

MELD escore: 3,8 log (bilirrubina sérica) + 11,2 log (INR) + 9,6 log (creatinina sérica).

 

Os valores do escore MELD menores do que nove têm sobrevida  menor do que 2%, enquanto esta mortalidade é maior do que 70% em escores maiores do que 40. O escore é utilizado para priorizar as filas de transplante hepático e pacientes com escore MELD > 25 devem ter este recalculado a cada sete dias.

A classificação de Child-Pugh é baseada nas dosagens da bilirrubina, albumina, INR e a presença e gravidade da ascite e encefalopatia. Esta classificação é a mais frequentemente utilizada para avaliar gravidade em pacientes com cirrose e é sumarizada na tabela 2.

 

Tabela 2: Classificação Child-Pugh

 

                                    ESCORES (número de pontos)

 

1 PONTO

2 PONTOS

3 PONTOS

ASCITE

Ausente

Leve

Moderada

BILIRRUBINA

< 2 mg/dL

2 a 3 mg/dL

> 3 mg/dL

ALBUMINA SÉRICA

> 3,5 g/dL

2,8 a 3,5 g/dL

< 2,8 g/dL

RNI (TEMPO DE PROTROMBINA)

< 1,7 (> 50%)

1,7 a 2,3 (40 a 50%)

> 2,3 (< 40%)

ENCEFALOPATIA

Ausente

Leve a moderada

(Grau 1 ou 2)

Grave

(Grau 3 ou 4)

 

Diagnóstico

A doença hepática crônica é geralmente assintomática até que cirrose com descompensação clínica ocorra. Eventos descompensadores incluem ascite, sepse, sangramento de varizes esofágicas, encefalopatia e icterícia não obstrutiva.

As imagens por ultrassonografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética mostram um fígado irregular e nodular em conjunto com prejuízo da função de síntese hepática. Outros achados incluem um fígado diminuído, esplenomegalia e presença de colaterais portossistêmicos. O diagnóstico diferencial inclui fibrose hepática congênita, hiperplasia regenerativa nodular (cursa com nódulos, mas sem fibrose) e hipertensão portal não cirrótica. A biópsia hepática é raramente necessária, mas pode fornecer um diagnóstico definitivo e confirmar a etiologia.

Na cirrose inicialmente podem não ocorrer alterações de imagem hepática, os marcadores não invasivos de fibrose são cada vez mais utilizados, mas seu papel ainda é pouco definido.

Na avaliação da função hepática, o coagulograma com avaliação do INR e a albumina são importantes, mas o fator V é mais específico para hepatopatia e é o melhor marcador de perda de função hepática.

 

Prevenção e Tratamento de Complicações

O aumento crescente das doenças hepáticas e o problema da apresentação tardia com descompensação enfatiza a necessidade de triagem para identificar pacientes com doença hepática crônica, semelhante ao rastreio de fatores de risco cardiovasculares. Nos EUA, o rastreio de hepatite C crônica é custo-eficaz para as pessoas nascidas entre 1945 e 1965. Marcadores não invasivos de fibrose hepática poderiam ser instrumentos de triagem, especialmente para avaliar esteatose hepática não alcoólica e hepatopatia por álcool.

As pontuações para esteatose hepática não alcoólica são  baseadas  em índices simples (idade, contagem de plaquetas, albumina, aminotransferases e diabetes) e têm um valor preditivo negativo de 96% para a presença de fibrose avançada.

Mudanças do estilo de vida tendem a ser negligenciados no manejo da cirrose, mas são recomendadas para todos os pacientes. A resistência à insulina, obesidade, e a síndrome metabólica são fisiopatologicamente ligadas com a esteatose hepática não alcoólica, mas têm efeito deletério independentemente da etiologia da doença hepática. A obesidade é um fator preditor independente de cirrose hepática alcoólica e a presença de síndrome metabólica é associada com fibrose mais grave e cirrose em pacientes com doença hepática. Além disso, a resistência à insulina e síndrome metabólica são correlacionadas com mortalidade em pacientes com doença hepática crônica e são preditores da ocorrência de carcinoma hepatocelular e cirrose.

Os pacientes com sobrepeso com cirrose compensada (estádios clínicos I e II) devem ser aconselhados a perder peso para reduzir o seu risco a longo prazo de complicações hepáticas. Em pacientes com cirrose descompensada, a manutenção de nutrição adequada é importante para evitar a perda de massa muscular. Os pacientes com cirrose apresentam baixa tolerância ao jejum de longo prazo, com início precoce da gliconeogênese e subsequente exaustão muscular, o que também pode contribuir para desenvolvimento de encefalopatia hepática e devem portanto ser aconselhados a evitar jejuns prolongados.

O consumo de álcool é prejudicial em pacientes com cirrose independente de sua etiologia. Na cirrose alcoólica, a ingestão de álcool aumenta a hipertensão portal e o risco de sangramento por varizes esofágicas. Só a abstinência de álcool melhora a sobrevida em cirrose. Em pacientes com hepatite C crônica, o aumento da ingestão de álcool aumenta  o risco de cirrose hepática descompensada em duas a três vezes mesmo com ingesta moderada. Além disso, a ingestão de álcool é um fator de risco independente para o carcinoma hepatocelular. Portanto, todos os pacientes com cirrose, independentemente do estágio clínico, devem ser avisados a abster-se de álcool. Em muitos centros, a abstinência ao álcool independentemente da etiologia da doença hepática é obrigatória para o paciente ser considerado para o transplante de fígado.

Vacinação contra vírus da hepatite A e B, influenza vírus e pneumococo deve ser oferecida tão cedo quanto possível, porque a resposta antigênica torna-se mais fraca com a progressão da cirrose.

O tabagismo está associado à fibrose hepática mais severa em diferentes etiologias de hepatopatias e possivelmente aumenta o risco de carcinoma hepatocelular nas hepatites crônicas. O tabagismo também aumenta a morbidade pós-transplante e mortalidade. Alimentos ricos em antioxidantes em pequenas quantidades têm um potencial papel preventivo na cirrose, a ingestão de chocolate escuro parece melhorar a pressão portal e efeitos benéficos com o ácido ascórbico também têm sidos relatados. Os médicos devem sempre ter em mente interações medicamentosas e  eventual necessidade de reduções de dose quando se prescreve medicações para pacientes com cirrose.

As etiologias de doença hepática devem ser, se possível, tratadas com imunosupressão para hepatite autoimune e agentes quelantes de cobre ou de zinco para a doença de Wilson. Os doentes com hepatite viral devem ser avaliados para tratamento antiviral. Todos os pacientes cirróticos com HBsAg positivo devem receber terapia antiviral oral, com um regime antiviral. Um estudo mostrou, por exemplo, que o tratamento com tenofovir por cinco anos resultou na regressão da cirrose associada com vírus da hepatite B, 74% dos pacientes tratados. Em pacientes com cirrose relacionada à hepatite C, a presença de resposta virológica sustentada diminui morbidade e mortalidade e até pode levar à regressão da fibrose. Outras estratégias complementares que podem aumentar as taxas de resposta sustentada incuem perda de peso em pacientes obesos,  suplementação de vitamina D quando as concentrações são baixas e estatinas em pacientes com diabetes. Os pacientes com cirrose que respondem ao tratamento antiviral ainda precisam de vigilância regular para carcinoma hepatocelular porque o risco, ainda que reduzido, não é eliminado.

A hipertensão portal é a causa da maior parte das complicações da cirrose e mortalidade subsequente. O gradiente de pressão portal é um bom marcador substituto da hipertensão portal com implicação prognóstica. A hipertensão portal é diagnosticada se o gradiente é maior do que 5 mm Hg, valores maiores são necessários para ocorrer hipertensão portal clinicamente significativa, sendo o limiar necessário para o desenvolvimento de varizes esofágicas  acima dos 10 mm Hg. Pacientes com pressão portal inferior a 10 mm Hg têm uma probabilidade de 90% de não evoluir para descompensação durante seguimento médio de quatro anos, enquanto que para aqueles com gradiente maior do que 10 mmHg, a incidência do carcinoma hepatocelular foi seis vezes maior do que em pacientes com menor gradiente.

A formação de varizes esofágicas é a primeira consequência relevante da hipertensão portal e representa o estágio clínico 2 de cirrose. As recomendações atuais são que todos os pacientes com cirrose devem ser rastreados para presença de varizes esofágicas. O risco de desenvolvimento e crescimento das varizes é de 7% ao ano, o de primeiro sangramento é de cerca de 12% ao ano. As opções de tratamento incluem betabloqueadores para varizes, independentemente do tamanho, ou ligadura elástica endoscópica de varizes de médio ou grande calibre. A profilaxia primária de sangramento de varizes deve ser oferecida para fora todos os pacientes com varizes, especialmente aqueles com varizes de grosso calibre ou com red spots, nos outros pacientes essa profilaxia é apenas opcional. Os betabloqueadores não seletivos e ligadura elástica endoscópica são igualmente eficazes na prevenção de sangramento e  redução da mortalidade. Os betabloqueadores não seletivos diminuem o débito cardíaco e causam vasoconstrição esplâncnica reduzindo assim o fluxo portal. O carvedilol tem um efeito adicional em diminuir a resistência vascular intra-hepática, o que leva a uma maior queda na pressão portal que outros betabloqueadores e em um estudo foi superior à ligadura elástica endoscópica para a profilaxia primária de sangramento. Uma diminuição no gradiente de pressão portal de pelo menos 20% ou gradiente menor do que 12 mm Hg está associado com uma redução significativa de ressangramento de varizes.

Um estudo mostrou que a sinvastatina pode ter benefício e reduz a incidência de carcinoma hepatocelular em pacientes com diabetes e não estão associados com um aumento do risco de hepatotoxicidade em cirrose. Essa medicação pode ser administrada a pacientes com cirrose e dislipidemia.

Os pacientes com sangramento agudo de varizes precisam de uma combinação de drogas vasoativas intravenosas para reduzir a pressão portal (terlipressina, somatostatina, octreotida ou para 2-5 dias) e terapia endoscópica sendo a ligadura elástica endoscópica a preferência dentro de 12 horas do sangramento. Eles também devem receber cinco dias de antibióticos porque a infecção é fisiopatologicamente ligada com sangramento de varizes e antibióticos reduzem re-sangramento precoce e mortalidade.  Derivações portais transjugulares sistêmica são indicadas para sangramento refratário apesar do tratamento endoscópico, detalhes maiores sobre o manejo desses pacientes podemos ver em outra sessão.

Os pacientes que já tenham sofrido uma hemorragia por varizes precisam de uma combinação de ligadura elástica endoscópica e betabloqueadores não seletivos, porque esta estratégia reduz significativamente o risco de sangramentos, embora não afete o risco de mortalidade em comparação com um ou outro tratamento isolado.

Na cirrose, a hipertensão portal e a vasodilatação esplâcnica causam um aumento da produção de óxido nítrico, sendo este o principal mecanismo fisiopatológico da formação da ascite. O volume de sangue é inicialmente mantido como um resultado de um aumento compensatório do débito cardíaco. No entanto, como a cirrose progride, esse mecanismo não é suficiente e ativação homeostática de vasoconstritores e fatores antinatriuréticos desenvolve com retenção de água e sal. Finalmente, o fluido acumula-se na cavidade peritoneal como um resultado do aumento da pressão portal. O desenvolvimento de vasoconstrição renal conduz à síndrome hepatorrenal.

A síndrome hepatorrenal é caracterizada por um aumento de duas vezes das concentrações de creatinina sérica dentro de duas semanas e a síndrome hepatorrenal do tipo 2 se refere a casos com um curso mais lento. O desenvolvimento de ascite é associada com uma taxa de mortalidade de um ano de cerca de 20%. A insuficiência renal é um índice de doença hepática terminal aumentando o risco de mortalidade em sete vezes, com 50% de pacientes morrendo dentro de um mês.

Na presença de ascite, um gradiente acima de 1,1 g/L na concentração de albumina sérico/ascítica é um indicador muito preciso de hipertensão portal. O manejo inicial  consiste de educação do paciente sobre a limitação dietética de sódio para 80-120 mmoles diárias e tratamento diurético. Terapia diurética deve começar com uma dose da manhã de 100 mg de espironolactona, com ou sem furosemida 40 mg. Um estudo randomizado mostrou que essa terapia combinada está associada a melhores respostas do que a terapia sequencial introduzindo primeiro a espironolactona e apenas depois introduzindo a furosemida. A função renal e eletrólitos séricos devem ser monitorizados durante o tratamento, particularmente quando as doses estão sendo aumentadas, o objetivo é conseguir uma perda de peso adequado, que não deve ser superior a 1 kg por dia em doentes com edema periférico ou 0,5 Kg por dia em pacientes sem edema periférico. As doses máximas de espironolactona são de 400 mg e 160 mg respectivamente, mas alguns pacientes toleram essas doses sem desenvolvimento de disfunção renal. Medição aleatória de concentração urinária de sódio é útil para monitorizar a adesão à dieta pobre em sal e resposta à terapia diurética.

A ascite que não responde às doses máximas toleradas de diuréticas é denominada como ascite refratária. O uso de midodrine associado à terapia diurética em um determinado estudo melhorou o manejo desses pacientes, mas não pode ser recomendado rotineiramente neste momento.

Os pacientes com ascite refratária devem ser tratados por paracentese de grande volume com a administração intravenosa de albumina (8 g / L) quando o volume drenado excede 5 L para reduzir o risco da síndrome de disfunção circulatória pós-paracentese. Uma abordagem alternativa que significativamente melhora a sobrevida livre de transplante é um shunt transjugular porto-sistêmico para pacientes com ascite refratária e função hepática relativamente preservada. Anti-inflamatórios não esteroidais não devem ser utilizados em pacientes com ascite, porque a sua função renal é altamente dependente da síntese de prostaglandinas renais e pode induzir insuficiência renal. Embora os inibidores da enzima conversora de angiotensina possam reduzir a pressão portal e ser um potencial substituto de betabloqueadores não seletivos em pacientes com varizes e sem ascite, estes devem ser interrompidos se ascite aparece.

Os aminoglicosídeos estão associados com uma alta incidência de nefrotoxicidade e outros antibióticos devem ter suas doses reduzidas, se possível.

Quadros infecciosos aumentam a mortalidade de pacientes cirróticos em quatro vezes, com 30% dos pacientes morrendo dentro de um mês de infecção e outros 30% dentro de um ano. As causas mais frequentemente diagnosticadas incluem peritonite bacteriana espontânea, infecções do tracto urinário, pneumonia e infecções de pele. A incidência  e mortalidade das infecções aumentam com o agravamento da função hepática. Diminuição da motilidade intestinal, crescimento bacteriano excessivo e aumento da permeabilidade intestinal  aumentam o risco de a translocação intestinal bacteriana para os nódulos linfáticos mesentéricos, que predispõe os pacientes a infecções, mais comumente à peritonite bacteriana espontânea. Uma meta-análise mostrou que os betabloqueadores beta não seletivos reduzem a incidência de peritonite bacteriana espontânea em pacientes com ascite, provavelmente pelo aumento da motilidade do intestino e, assim, diminuem a translocação bacteriana, mas outros estudos precisam validar essa abordagem.

A profilaxia primária de peritonite bacteriana espontânea com norfloxacina melhora a sobrevida em pacientes com cirrose avançada ou disfunção renal de concentrações de proteína baixas na ascite (<1,5 g / L). Desde que o risco de infecções com bactérias resistentes à quinolona é alto, a profilaxia primária só deve ser realizada em pacientes internados ou em pacientes que estão na eminência de receberem transplante hepático. Por outro lado, a prevenção secundária com quinolonas orais deve ser realizada para todos os pacientes com um episódio anterior de peritonite bacteriana espontânea.

A melhor estratégia para a prevenção de peritonite bacteriana espontânea com organismos resistentes à quinolona não foi estabelecida; opções disponíveis incluem nenhuma profilaxia ou um esquema de revezamento de antibióticos.

A peritonite bacteriana espontânea é diagnosticada se a contagem de neutrófilos é maior do que 250 por mL e pode ser assintomática.  O tratamento consiste em antibióticos e albumina humana. A escolha dos antibióticos depende do uso de profilaxia com quinolona anteriormente, prevalências locais de estirpes bacterianas, e se a infecção foi adquirida na comunidade ou no hospital. Um curso de cinco dias de cefotaxima intravenosa é geralmente suficiente na maioria dos casos. Um estudo demonstrou que a albumina intravenosa (1,5 g / kg no dia 1 e 1,0 g / kg no dia 3) reduz o risco de insuficiência renal e morte de 30% a 10%. Este efeito é maior se a concentração de bilirrubina é maior do que 4 mg/dl ou creatinina maior que 1,0 mg/dl.

O  autor do trabalho recomendou previamente que a profilaxia fosse considerada apenas em pacientes com valores aumentados de creatinina e bilirrubina. Um outro estudo de pacientes cirróticos com infecções, a albumina também mostrou benefícios sobre a função renal e circulatória, mas não em sobrevida. Os inibidores das bombas de prótons devem ser usados moderadamente nestes pacientes, pois o risco de peritonite bacteriana espontânea é muito maior do que sem o seu uso e deve ser evitada em pacientes internados (exceto para aqueles com sangramento de úlcera péptica), porque o risco de infecção por Clostridium dificile é aumentado.

O desenvolvimento de encefalopatia é um sinal de mau prognóstico, porque a taxa de mortalidade associada de um ano é de até 64%. Os doentes que desenvolvem encefalopatia apesar de função hepática preservada devem ser rastreados para a presença de desvios portossistêmicos espontâneos. Embolização de grandes derivações é segura e eficaz em pacientes selecionados. A encefalopatia hepática usualmente é transitória e associada a um evento precipitante, tal como o uso de sedativos, constipação, desidratação, infecção ou hemorragia gastrointestinal.

Lactulose é a primeira escolha para a prevenção da encefalopatia recorrente; em um estudo, o risco de encefalopatia recorrente foi de 20% em comparação com 47% nos tratados com placebo. A L-ornitina-L-aspartato foi equivalente à lactulose como tratamento em um estudo. A rifaximina, um antibiótico não absorvível é eficaz quando adicionado à lactulose em encefalopatia recorrente e reduz o risco de uma recorrência de 46% para 21%.

Encefalopatia hepática mínima ou subclínica é mais comum do que a encefalopatia clínica, e influencia habilidades cognitivas ou de coordenação complexas, tais como condução, levando a um aumento dos riscos de acidentes, assim  pacientes com cirrose que dirigem devem ser rastreados para encefalopatia mínima e tratados com lactulose, se necessário.

O risco de carcinoma hepatocelular é aumentado nestes pacientes, assim as diretrizes recomendam ultrassonografia a cada seis meses, uma vez que resulta em tratamento precoce de carcinomas hepatocelulares menores, embora essa abordagem não tenha sido adequadamente validada.

O transplante hepático é o único tratamento definitivo sendo utilizado em pacientes com antecedente de complicações agudas, como ascite e peritonite bacteriana espontânea ou carcinoma hepatocelular com cirrose. As pontuações mais utilizadas para sua indicação são o MELD nos EUA e UKELD no Reino Unido e os critérios para a indicação variam em diferentes países.

 

Referências

Tsochatziz EA et al. Liver cirrhosis. Lancet 2014; 383: 1749-1761

 

Gines P et al. Renal Failure in cirrhosis New ENg J Med 2009; 361: 1279-1290.

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