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Efeito do Ácido Acetilsalicílico na Mortalidade Geral de Idosos Saudáveis

Última revisão: 06/02/2019

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Autor: Vitor Maia Teles Ruffini

 

Contexto Clínico

 

O benefício do ácido acetilsalicílico (AAS) na prevenção de doença cardiovascular ou cerebrovascular (DCV) é bem estabelecido no contexto da profilaxia secundária. Contudo, seu benefício na profilaxia primária não é tão claro. A prescrição de AAS para esse fim em populações idosas é uma prática disseminada entre os médicos. Idosos, geralmente, apresentam maior risco cardiovascular (RCV), o que potencialmente aumentaria o benefício do AAS. Porém, também apresentam maior risco de sangramento com o uso dessa medicação, o que poderia contrabalancear seus efeitos benéficos.

O ASPREE Trial concluiu que, em uma população de idosos sem DCV estabelecida ou demência, o uso de 100mg/dia de AAS não reduziu significativamente o desfecho primário de sobrevida livre de incapacidade.² O objetivo dessa análise foi avaliar o aumento de mortalidade observado no grupo AAS, com enfoque em determinação das causas específicas de mortalidade.

 

O Estudo

 

O ASPREE Trial foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, duplo-cego e placebo controlado. Foram incluídos pacientes com mais de 70 anos, que não tivessem doenças crônicas que pudessem reduzir sua expectativa de vida (deveria ser superior a 5 anos) e sem história prévia de DCV.

Foram excluídos pacientes com diagnóstico de demência, déficit cognitivo (miniexame do estado mental modificado <78), incapacidade significativa em atividades básicas da vida diária (ABVDs) no índice de Katz - escore de 4 (grande dificuldade para realizar atividade) ou 5 (incapaz de realizar atividade) em uma das seis atividades avaliadas (tomar banho, se vestir, ir ao banheiro, transferir-se de um local para o outro, caminhar e se alimentar) - contra indicação ao uso de AAS ou elevado risco de sangramento.

Os pacientes que preenchiam os critérios de elegibilidade foram submetidos a uma run-in phase de 4 semanas com uso de placebo, sendo incluídos os que tivessem uma aderência igual ou superior a 80%. Eles foram, então, randomizados (1:1) para receber 100mg de AAS de liberação entérica, 1x/dia, ou placebo. O seguimento foi feito com consultas anuais e ligações telefônicas a cada 3 a 6 meses.

Quando não se conseguia estabelecer contato com o paciente, era realizada uma busca ativa por ele, o que era feito por meio de revisão do prontuário, pesquisa nos registros de óbito públicos, contato com a família ou médico assistente da atenção primária. A ocorrência do óbito deveria ser confirmada por, pelo menos, duas fontes.

Após a confirmação, uma cópia do atestado de óbito era solicitada e resumos dos casos eram preparados. Estes eram encaminhados a dois avaliadores independentes que buscavam identificar a causa base do óbito, definida como a que mais provavelmente desencadeou o processo de adoecimento que levou à morte, e a causa imediata de morte, definida como o evento final que levou à morte.

O ASPREE Trial avaliou 19.114 participantes com idade superior a 65 anos (média de 74 anos), predominância de sexo feminino (56,4%) e caucasianos (>90%). Hipertensão arterial (74%) e dislipidemia (65%) foram altamente prevalentes. A maioria dos pacientes era robusta (58,8%) ou pré-frágil (39%) de acordo com os critérios de fragilidade de Fried modificados. O estudo foi interrompido precocemente por futilidade em junho de 2017.

Na análise da mortalidade, foi observado aumento de mortalidade no grupo AAS em relação ao placebo (5,9 versus 5,2 mortes por 1.000 pessoas/ano) com HR = 1,14 (IC 95% = 1,01?1,29). Na análise da curva de Kaplan-Meier, é possível observar que essa diferença na mortalidade começa a surgir após 3 anos de seguimento. Na análise de mortalidade por grupos de causas específicas, observou-se um aumento no grupo AAS em relação ao placebo apenas para câncer (3,1 versus 2,3 mortes por 1.000 pessoas/ano) com HR = 1,31 (IC 95% = 1,10?1,56).

Não houve diferença na mortalidade por doenças cardiovasculares, hemorragia ou outras causas. De forma análoga à mortalidade geral, essa divergência entre as curvas foi observada apenas após o terceiro ano de seguimento.

Na análise de etiologia específica do câncer, observou-se que a maior parte do excesso de mortalidade no grupo AAS provavelmente estaria associada ao aumento de mortalidade por câncer colorretal (0,8 versus 0,5 mortes por 1.000 pessoas/ano) com HR = 1,77 (IC 95% = 1,02?3,06). Os resultados se mantiveram consistentes nos diferentes subgrupos analisados, exceto país de origem, com efeito sendo observado apenas nos participantes da Austrália. As análises descritas não foram ajustadas para múltiplas comparações, o que limita a interpretação de sua significância.

 

Aplicação Prática

 

A literatura médica prévia sugeria que o uso de AAS no contexto da profilaxia primária estaria associado à redução da mortalidade por câncer, o que ocorreria principalmente após 4 a 5 anos de uso. Essa análise do ASPREE Trial demonstrou que, em uma população de idosos saudáveis, sem indicação prévia de AAS, o uso desse medicamento poderia levar a um aumento de mortalidade geral em comparação ao placebo, com um excesso de 1,6 mortes por 1.000 pessoas/ano ocorrendo nesse grupo após mediana de seguimento de 4,7 anos. Esse excesso de mortalidade parece estar relacionado a um aumento de mortalidade por câncer.

Precisamente por isso, é necessário interpretar os dados dessa análise com muita cautela. O ASPREE Trial foi desenhado para avaliar o desfecho primário e a não mortalidade geral ou por câncer. Essa análise não foi ajustada para múltiplas comparações, com elevado risco da ocorrência de erro tipo 1 (achar uma associação significante na amostra que não existe na população real). Dessa forma, o efeito de aumento da mortalidade após 3 anos observado poderia ter menor magnitude ou até mesmo não existir na população geral.

Outro fator a ser considerado é que o aumento absoluto do risco (AAR = 0,7) de morte observado no grupo AAS em comparação ao placebo foi muito baixo. Esse AAR determina um NNH de 1.436. Assim, mesmo que o aumento de mortalidade observado seja real na população e tenha a mesma magnitude que na amostra estudada, ele dificilmente terá qualquer relevância clínica.

Essa análise do ASPREE Trial não deve ser interpretada como prova conclusiva de que o AAS aumenta a mortalidade por câncer. Ao invés disso, ela coloca em dúvida a crença vigente de que o uso dessa medicação poderia ser uma medida profilática para câncer colorretal.

Assim, deve-se considerar essa análise como um alerta de que a medicação não é benéfica para profilaxia primária nessa população e pode não ser segura para uso em longo prazo como se pensava previamente. Isso reforça a ideia de que o AAS não deve ser recomendo para profilaxia primária de eventos CV em pacientes maiores de 70 anos, em conformidade com as atuais recomendações do US Preventive Services Task Force (USPSTF).³

 

Bibliografia

 

1.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   McNeil John J., Wolfe Rory, Woods Robyn L., Tonkin Andrew M., Donnan Geoffrey A., Nelson Mark R., Reid Christopher M., Lockery Jessica E., Kirpach Brenda, Storey Elsdon, Shah Raj C., Williamson Jeff D., Margolis Karen L., Ernst Michael E., Abhayaratna Walter P., Stocks Nigel, Fitzgerald Sharyn M., Orchard Suzanne G., Trevaks Ruth E., Beilin Lawrence J., Johnston Colin I., Ryan Joanne, Radziszewska Barbara, Jelinek Michael, Malik Mobin, Eaton Charles B., Brauer Donna, Cloud Geoff, Wood Erica M., Mahady Suzanne E., Satterfield Suzanne, Grimm Richard, Murray Anne M.. (2018) Effect of Aspirin on All-Cause Mortality in the Healthy Elderly. N Engl J Med 2018; 379:1519-1528. DOI: 10.1056/NEJMoa1803955. Disponível em: https:/www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa1803955

2.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   McNeil John J., Woods Robyn L., Nelson Mark R., Reid Christopher M., Kirpach Brenda, Wolfe Rory, Storey Elsdon, Shah Raj C., Lockery Jessica E., Tonkin Andrew M., Newman Anne B., Williamson Jeff D., Margolis Karen L., Ernst Michael E., Abhayaratna Walter P., Stocks Nigel, Fitzgerald Sharyn M., Orchard Suzanne G., Trevaks Ruth E., Beilin Lawrence J., Donnan Geoffrey A., Gibbs Peter, Johnston Colin I., Ryan Joanne, Radziszewska Barbara, Grimm Richard, Murray Anne M.. (2018) Effect of Aspirin on Disability-free Survival in the Healthy Elderly. N Engl J Med DOI: 10.1056/NEJMoa1800722.

3.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   Bibbins-Domingo, K. on behalf of the U.S. Preventive Services Task Force. Aspirin Use for the Primary Prevention of Cardiovascular Disease and Colorectal Cancer: U.S. Preventive Services Task Force Recommendation Statement. Ann Intern Med. 2016;164(12):836-845. DOI: 10.7326/M16-0577

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