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Acidentes por Animais Peçonhentos – Serpentes

Autor:

Lucas Santos Zambon

Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.

Última revisão: 01/03/2009

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EPIDEMIOLOGIA

No Brasil, anualmente, temos uma estimativa de 20 a 25 mil casos de acidentes com serpentes. Entretanto, acredita-se que esses valores não reflitam o real número de casos devido a uma notificação que não é fidedigna. Esses números aparentam estar em queda nos últimos anos, mas os dados de notificação têm sido pouco trabalhados pelo governo.

A mortalidade total desses acidentes é de 0,43% para serpentes, porém é diferente entre os gêneros: 0,31% para o gênero Bothrops (jararaca), 1,85% para o gênero Crotalus (cascavel), 0,95% para o gênero Lachesis (surucucu) e 0,36% para o gênero Micrurus (coral).

Na Tabela 1 são apresentados os dados de detalhes de prevalência dos acidentes.

 

Tabela 1: Dados epidemiológicos de acidentes ofídicos

Sexo

Masculino: 70%

Faixa etária

15 a 49 anos: 52,3%

Região anatômica

Pernas e pés: 70,8%

Mão e antebraço: 13,4%

Serpentes mais frequentes

Bothrops: 90,5%

Crotalus: 7,7%

Lachesis: 1,4%

Micrurus: 0,4%

Local de ocorrência

Zona rural

Ocupação

Lavradores

Época do ano

Novembro a abril

Momento do acidente

Período diurno

 

ETIOLOGIA

No Brasil, há mais de 300 espécies de serpentes, sendo 17% classificadas como peçonhentas. Estas estão distribuídas entre a família Viperidae (jararacas, cascavéis e surucucus) e Elapidae (corais verdadeiras). As primeiras têm como característica a presença de fosseta loreal, um órgão termorreceptor localizado entre o olho e a narina e com presas do tipo solenóglifas, com alta eficiência para inoculação de veneno (Figura 1). O tipo de cauda que estas apresentam ajuda a identificar a qual gênero pertencem (Figura 2). Já as corais verdadeiras são desprovidas de fosseta loreal e suas presas são do tipo proteróglifa, que são anteriores, mas pequenas (Figura 3).

 

Figura 1: Família Viperidae (jararacas, cascavéis e surucucus).

 

Figura 2 Tipos de caudas.

 

Figura 3 Família Elapidae (corais verdadeiras).

 

Os gêneros Bothrops (jararacas) e Micrurus (corais) podem ser encontrados em todo o país, enquanto o gênero Crotalus (cascavéis) ocorre mais no Sudeste e Sul, e as Lachesis (surucucus), na Região Amazônica. Pelo Quadro 1, épossível identificar as principais serpentes de interesse clínico.

 

Quadro 1: Principais serpentes de interesse clínico.

Jararaca

Cascavel

Coral

Surucucu

 

DIAGNÓSTICO

Serpentes

O primeiro passo para se tentar estabelecer o diagnóstico é reconhecendo o tipo de serpente que causou o acidente. O conhecimento quanto a aspectos morfológicos das principais serpentes peçonhentas do Brasil ajuda no seu reconhecimento, direcionando o tratamento (Algoritmo 1).

 

Algoritmo 1: Diagnóstico por identificação da serpente.

 

Outra forma de fazer o diagnóstico da serpente que causou o acidente é conhecendo os efeitos dos venenos dos 4 principais gêneros de serpentes peçonhentas do nosso meio. É fundamental esse conhecimento, pois o mais comum é que o acidentado não consiga trazer o animal que causou a picada. Na Tabela 2, temos essa descrição (ver também Achados Clínicos para auxiliar no entendimento desse conteúdo).

 

Tabela 2: Mecanismos de ação dos principais venenos ofídicos.

Veneno

Ações

Efeitos

Botrópico

Inflamatória

Necrose local

Coagulante

Ativação da cascata inflamatória

Hemorrágica

Consumo de fibrinogênio e formação de coágulos de fibrina – incoagulabilidade sanguínea e formação de trombos na microvasculatura

Laquético

Inflamatória

Necrose local

Coagulante

Ativação da cascata inflamatória

Hemorrágica

Consumo de fibrinogênio e formação de coágulos de fibrina – incoagulabilidade sanguínea e formação de trombos na microvasculatura

Neurotóxica

Estimulação parassimpática (vagal)

Crotálico

Neurotóxica

Impede a liberação de acetilcolina na junção neuromuscular – bloqueio

Miotóxica

Necrose de fibras da musculatura esquelética

Coagulante

Atividade similar à trombina – incoagulabilidade sanguínea

Elapídico

Neurotóxica

Afinidade por receptores de acetilcolina na placa motora – bloqueio similar ao curare

 

ACHADOS CLÍNICOS

Nas Tabelas 3 a 6, podem-se verificar aspectos dos acidentes com cada gênero de serpente de interesse clínico. São descritos os efeitos locais, os efeitos sistêmicos e as alterações laboratoriais pertinentes a cada acidente.

 

Tabela 3: Acidente botrópico.

Efeitos locais

Podem ser visíveis dois orifícios no local da picada. Pode haver sangramento pelos orifícios da picada. Edema e dor local podem progredir em poucas horas. Equimose no local e no território de drenagem linfática associado. Algumas horas após, podem surgir bolhas de conteúdo variável (seroso, hemorrágico, purulento). Formação de necrose e abscessos em 1 a 20% dos casos (germes Gram-negativos e anaeróbios), e evolução com celulite ou erisipela. Complicações raras, porém graves: síndrome compartimental, necessidade de amputação, déficit funcional.

Efeitos sistêmicos

Manifestação mais frequente: incoagulabilidade sanguínea com ou sem hemorragia. Sangramentos mais comuns: gengivorragia, equimose local e hematúria. Casos graves: hipotensão e choque (hemorrágico + distributivo) que podem evoluir em poucas horas. Insuficiência renal aguda: complicação rara, mas que pode evoluir nas primeiras 24 horas. Decorrente de necrose tubular aguda.

Alterações laboratoriais

Hemograma: anemia discreta, leucocitose com neutrofilia e desvio à esquerda, plaquetopenia. Bioquímica: elevação de ureia, creatinina e potássio nos casos raros de IRA; um pouco de elevação de CPK, DHL e TGO. Urina: hematúria, proteinúria e hemoglobinúria (raro). Coagulação: tempo de coagulação aumentado ou incoagulável. Hipofibrinogenemia, alargamento de TP e TTPA.

 

Tabela 4: Acidente laquético.

Efeitos locais

As alterações locais são semelhantes às manifestações dos acidentes botrópicos (Tabela 3).

Efeitos sistêmicos

Assim como no acidente botrópico, também evolui com incoagulabilidade sanguínea com ou sem hemorragia. As manifestações hemorrágicas ficam mais limitadas ao local da picada na maioria dos casos. Síndrome colinérgica (ativação do sistema nervoso autônomo parassimpático): sudorese, cólicas abdominais, náuseas, vômitos, diarreia, hipotensão arterial e bradicardia.

Alterações laboratoriais

As alterações laboratoriais são semelhantes às manifestações dos acidentes botrópicos (Tabela 3).

 

Tabela 5: Acidente crotálico.

Efeitos locais

Discretos, com edema leve e parestesia no local da picada.

Efeitos sistêmicos

Fenômenos de bloqueio neuromuscular entre 3 e 6 horas da picada: ptose palpebral, anisocoria, oftalmoplegia. Menos frequentes: paralisia velopalatina, disfagia, diminuição do reflexo de vômito. Casos graves: perda de força generalizada e insuficiência respiratória aguda. Miotoxicidade: mialgia generalizada por rabdomiólise que pode levar a mioglobinúria e escurecimento da urina. Casos graves podem evoluir com insuficiência renal aguda com instalação nas primeiras 48 horas.

Alterações laboratoriais

Hemograma: leucocitose com neutrofilia e desvio à esquerda. Bioquímica: grande elevação de CPK, DHL e TGO nas primeiras horas devido à rabdomiólise. Se evoluir com IRA, ocorre aumento de ureia, creatinina, potássio e ácido úrico. Urina: mioglobinúria. Coagulação: 40% dos pacientes têm sangue incoagulável com hipofibrinogenemia.

 

Tabela 6: Acidente elapídico.

Efeitos locais

Não se observa processo inflamatório.

Efeitos sistêmicos

Fenômenos de bloqueio neuromuscular de rápida instalação após a picada: ptose palpebral, anisocoria, oftalmoplegia. Menos frequentes: paralisia velopalatina, disfagia, diminuição do reflexo de vômito. Casos graves: perda de força generalizada e insuficiência respiratória aguda.

Alterações laboratoriais

Não há alterações laboratoriais específicas.

 

TRATAMENTO

A soroterapia deve ser a mais específica possível e deve ser administrada por via endovenosa. Dilui-se o soro em solução fisiológica ou glicosada a 5%, na proporção de 1:5 (a ampola tem 10 mL), em 30 a 60 minutos.

As reações precoces podem aparecer na infusão ou nas primeiras horas e são reações anafiláticas ou anafilactoides. Pode-se tentar a prevenção com administração de bloqueadores anti-histamínicos H1 e H2 associado a corticoide, 15 minutos antes da administração do soro. Se houver reação, suspender momentaneamente o soro e administrar adrenalina. Outra reação é a doença do soro, que se manifesta 5 a 24 dias após, com quadro de febre baixa, prurido, artralgias, linfadenopatia, edema periarticular e proteinúria. Em geral, apresentam boa evolução.

 

Tabela 7: Acidente botrópico: classificação de gravidade e soroterapia recomendada.

Manifestações e tratamento

Gravidade

Leve

Moderada

Grave

Locais: dor, edema, equimose

Ausentes ou discretas

Evidentes

Intensas

Sistêmicas: hemorragia grave, choque, anúria

Ausentes

Ausentes

Presentes

Tempo de coagulação

Normal ou alterado

Normal ou alterado

Normal ou alterado

Soroterapia (soro antibotrópico ou soro antibotrópico-crotálico)

2 a 4 ampolas

4 a 8 ampolas

8 a 12 ampolas

Observações específicas

Verificar TC após 12 e 24 horas do término do soro. Se estiver alterado, complementar com 2 ampolas de soro. Profilaxia de tétano. Hidratação. Abscesso: ATB para Gram-negativo e anaeróbio. Síndrome compartimental: fasciotomia.

 

Tabela 8: Acidente laquético: classificação de gravidade e soroterapia recomendada.

Orientação para o tratamento

Soroterapia

Poucos casos estudados. Gravidade avaliada pelos sinais locais e intensidade das manifestações locais e das manifestações vagais (bradicardia, hipotensão, diarreia)

10 a 20 ampolas de soro antilaquético ou soro antibotrópico-laquético

Observações específicas

Profilaxia de tétano. Hidratação. Abscesso: ATB para Gram-negativo e anaeróbio. Síndrome compartimental: fasciotomia.

 

Tabela 9: Acidente crotálico: classificação de gravidade e soroterapia recomendada.

Manifestações e tratamento

Gravidade

Leve

Moderada

Grave

Fáscies miastênica / visão turva

Ausente ou tardia

Discreta ou evidente

Evidente

Mialgia

Ausente

Discreta

Presente

Urina vermelha ou marrom

Ausente

Ausente ou pouco evidente

Presente

Oligúria / anúria

Ausente

Ausente

Ausente ou presente

Tempo de Coagulação

Normal ou alterado

Normal ou alterado

Normal ou alterado

Soroterapia (soro anticrotálico ou soro antibotrópico-crotálico)

5 ampolas

10 ampolas

20 ampolas

Observações específicas

Profilaxia de tétano. Hidratação. Diálise precoce, se necessário. IOT e VM, se necessário.

 

Tabela 10: Acidente elapídico: classificação de gravidade e soroterapia recomendada.

Orientação para o tratamento

Soroterapia

Acidentes raros. Devem ser sempre considerados graves pelo risco de insuficiência respiratória aguda.

10 ampolas de soro antielapídico

Observações específicas

Profilaxia de tétano. Hidratação. Insuficiência respiratória aguda: neostigmina (prostigmina) 0,5 mg EV, precedida de atropina 0,6 mg EV para evitar efeitos muscarínicos (bradicardia e hipersecreção). Manutenção com 0,05 a 0,1 mg/kg EV a cada 4 horas. IOT e VM, se necessário.

 

BIBLIOGRAFIA

1.    FUNASA. Manual de diagnóstico e tratamento de acidentes por animais peçonhentos. 2. ed. Brasília: Fundação Nacional de Saúde, 2001.

2.    Martins HS, Damasceno MCT, Awada SB. Pronto-socorro: condutas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 2. ed. Barueri: Manole, 2008.

3.    Bochner R, Struchiner CJ. Acidentes por animais peçonhentos e sistemas nacionais de informação. Cad Saúde Pública. 2002;18(3):735-746.

4.    Bochner R, Struchiner CJ. Epidemiologia dos acidentes ofídicos nos últimos 100 anos no Brasil: uma revisão. Cad Saúde Pública. 2003;19(1):7-16.

5.    Azevedo-Marques MM, Cupo P, Hering SE. Acidentes por animais peçonhentos: serpentes peçonhentas. Medicina. 2003;36:480-489.

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