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Psicopatologia e diagnóstico da depressão

Autor:

Elie Cheniaux

Psiquiatra. Mestre e Doutor em Psiquiatria pelo
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Pós-doutor pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE)
da UFRJ e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor Associado na Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FCM/UERJ). Docente do Programa de Pós-graduação em Psiquiatria e Saúde Mental
do IPUB/UFRJ.

Última revisão: 01/08/2014

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Versão original publicada na obra Quevedo J, Da Silva AG. Depressão: teoria e clínica – Porto Alegre: Artmed; 2013.

 

Introdução

O termo “depressão” está associado a três diferentes significados. Em primeiro lugar, ele pode referir-se a um sintoma ou queixa. Nesse caso, “depressão” equivale a “tristeza”, ou “humor triste”. A tristeza pode estar presente em situações patológicas, mas é, antes de tudo, um sentimento humano normal. Assim, em função de uma perda, decepção ou qualquer evento desagradável, uma pessoa pode ficar triste, mas, na grande maioria das vezes, isso não está relacionado a uma doença mental.

“Depressão” pode representar também uma síndrome psiquiátrica. Define-se síndrome como uma associação de sinais e sintomas que evoluem em conjunto, provocada por mecanismos vários e dependente de causas diversas.1 Dessa forma, a síndrome depressiva pode ser classificada como primária ou secundária. A depressão primária (genuína, idiopática ou essencial) caracteriza-se pelo desconhecimento de sua causa. A depressão secundária, por sua vez, é associada a fatores causais bem definidos, como substâncias exógenas (p. ex., medicamentos anti-hipertensivos) ou uma condição médica geral (p. ex., hipotireoidismo). Sendo a depressão uma síndrome, os sinais e sintomas são os mesmos, não importando se ela é primária ou secundária.

Por fim, o termo “depressão” pode ser empregado ainda para designar um transtorno mental: o transtorno depressivo maior (episódio único ou recorrente), no DSM-IV-TR;2 ou o episódio depressivo e o transtorno depressivo recorrente, na CID-10.3

 

Aspectos psicopatológicos da síndrome depressiva

Funções afetivo-volitivas

A síndrome depressiva está relacionada a alterações em praticamente todas as funções mentais, mas são mais afetadas as funções afetivo-volitivas. Tradicionalmente, as alterações do humor ou do afeto são consideradas as mais importantes na depressão (assim como na mania), o que classifica o transtorno depressivo maior (TDM) como um transtorno do humor. Todavia, mais recentemente isso tem sido questionado, e as alterações relacionadas à energia vital e à atividade psicomotora têm sido apontadas por alguns autores4,5 como sendo, na verdade, as fundamentais.

 

 

 

 

Na Tabela 3.1, estão listadas as alterações psicopatológicas mais comuns na síndrome depressiva. Entre as funções afetivo-volitivas, incluem-se a afetividade, a conação e a psicomotricidade. Na depressão, observa-se com frequência (mas nem sempre, como veremos adiante) um aumento da intensidade ou da duração da tristeza, o que pode ser chamado de exaltação afetiva.6

A psicopatologia descritiva caracteriza-se por uma significativa falta de uniformidade quanto aos conceitos e termos utilizados.7 Com relação à classificação das alterações do afeto na depressão e na mania, isso é particularmente verdadeiro. Diversos autores8-10 usam o termo “hipertimia” para designar a alegria (ou irritabilidade) patológica da síndrome maníaca e o termo “hipotimia” com referência à tristeza da síndrome depressiva. Isso se apoia principalmente em Kurt Schneider,11 que criou o conceito de personalidade hipertímica (incorporada ao chamado espectro bipolar), cujas características incluem uma leve e duradoura elevação do humor. Contudo, Nobre de Melo,8 fiel à etimologia, assinala que “hipertimia e hipotimia correspondem, respectivamente, ao aumento e à diminuição da intensidade e duração dos afetos”. Assim, coerentemente com essas definições, Alvim12 defende que “hipertimia” é o termo mais adequado para designar qualquer estado de exaltação afetiva, seja para o polo da alegria ou para o da tristeza. O problema de se designar a tristeza patológica da depressão como hipotimia (e não como hipertimia ou exaltação afetiva) é a estar aproximando do estado de embotamento afetivo, que ocorre, por exemplo, na esquizofrenia, e no qual, diferentemente da depressão, há uma diminuição da expressão afetiva.6

Na síndrome depressiva, além da alteração quantitativa da afetividade, a exaltação afetiva, há uma alteração qualitativa: a rigidez afetiva. Esta se caracteriza pela perda da flexibilidade na expressão afetiva.13 O deprimido mantém-se longamente triste, e seu estado de humor é pouco ou nada influenciado pelos eventos que o cercam, mesmo os positivos.

O termo “depressão” está relacionado à ideia de que algo está alterado para menos, para baixo. Se não há uma redução na intensidade da expressão afetiva, o que então está para baixo na depressão? A resposta é a conação, que representa a atividade psíquica direcionada à ação e compreende os impulsos e a vontade.13 Há uma diminuição ou abolição global da conação: hipobulia ou abulia, respectivamente. O paciente apresenta fraqueza, desânimo ou falta de energia; perda da iniciativa, da espontaneidade e do interesse pelo mundo externo; indecisão e dificuldade de transformar as decisões em ações.

A hipobulia e a abulia correspondem ao que classicamente se chamava de tristeza vital. De acordo com a classificação de Max Scheler, os sentimentos psíquicos distinguem-se dos sentimentos vitais. Os primeiros não são localizados no corpo e são reativos. Por exemplo, ficar triste se algo de ruim acontece, ficar irritado quando se é contrariado, etc. Já os segundos são corporais, difusos e não reativos. São exemplos de sentimentos vitais as sensações de bem-estar, mal-estar, vigor, desânimo, fome, sede e fadiga, além do orgasmo.14 Na depressão, a tristeza psíquica comumente está presente, todavia, a tristeza vital parece ser mais característica da síndrome. Alguns pacientes, inclusive, conseguem distinguir um tipo de tristeza do outro.

Outras alterações quantitativas da conação, relacionadas a impulsos específicos, podem ser observadas em pacientes com depressão. Frequentemente há insônia, que pode ser inicial (dificuldade de conciliar o sono) ou terminal (o indivíduo acorda cedo demais e não consegue voltar a dormir). Contudo, também pode ocorrer hipersonia, principalmente em crianças e adolescentes, que representa um aumento do tempo total de sono. A perda da libido é bastante comum. Quanto ao apetite, ele costuma estar diminuído, mas também pode estar exacerbado, o que acarreta uma redução ou um aumento do peso, respectivamente.

Há ainda alterações qualitativas relacionadas à conação: o negativismo e os comportamentos e pensamentos suicidas. O negativismo representa uma resistência não deliberada, imotivada e incompreensível às solicitações externas.15 O deprimido, por falta de interesse ou de energia, não coopera com o exame médico, não responde às perguntas da entrevista e, em casos mais graves, fica em mutismo. O risco mais grave em um paciente com depressão é o suicídio, que constitui um desvio em relação aos impulsos de autopreservação.6 O indivíduo quer morrer para obter alívio para o seu sofrimento ou porque perdeu a esperança em um futuro melhor. Pode haver desde meramente pensamentos de que a vida não vale a pena até tentativas concretas de tirar a própria vida.

Frequentemente se observa hipocinesia (inibição, retardo ou alentecimento psicomotor): uma diminuição generalizada dos movimentos voluntários, que ficam mais lentos e menos frequentes. O extremo da hipocinesia é a acinesia (ou estupor), encontrada em casos mais graves de depressão ou com características catatônicas.10 A psicomotricidade fica abolida, ou seja, o indivíduo fica imóvel durante longos períodos, algumas vezes dias seguidos, e, em função disso, pode até morrer de inanição. Alternativamente, alguns pacientes com depressão apresentam hipercinesia (exaltação ou agitação psicomotora). Nesses casos, o aumento da atividade psicomotora costuma estar relacionado a ansiedade,10 mas, algumas vezes, pode indicar a ocorrência de um estado misto, no qual sintomas depressivos e maníacos são concomitantes.5

 

Funções cognitivas

Os quadros de depressão ocorrem sob lucidez da consciência. Todavia, a atenção está frequentemente prejudicada. Pode ocorrer hipoprosexia, que é a diminuição global da atenção:15 o indivíduo não consegue concentrar-se em nada (hipotenacidade), mas também, por desinteresse, fica alheio ao ambiente e, consequentemente, pouco desvia sua atenção diante do surgimento de novos estímulos externos (hipomobilidade). Em alguns casos, diferentemente, ocorre rigidez de atenção, e o indivíduo fica tão intensamente aderido a determinadas lembranças dolorosas que ignora tudo mais (hipertenacidade com hipomobilidade da atenção).6,16

Com relação à sensopercepção, ocorre hipoestesia, ou seja, os estímulos são percebidos com menor intensidade.8 Assim, a comida parece insossa; as cores, mais opacas; os sons, pouco vibrantes, etc. Eventualmente, encontram-se ilusões catatímicas: o estado afetivo de tristeza ou medo causa a deformação de uma percepção. Um exemplo disso seria o indivíduo erroneamente identificar um som de tiros a partir de ruídos corriqueiros.17

Alterações da memória comumente estão presentes. Como consequência da dificuldade de concentração e do desinteresse em relação ao ambiente, ocorre hipomnésia de fixação (ou anterógrada), que é a diminuição da capacidade de registrar novas informações, de formar novas lembranças de longo prazo. Quando a inibição psíquica é muito intensa, há também hipomnésia de evocação (ou retrógrada), ou seja, diminuição da capacidade de recuperar lembranças que foram anteriormente armazenadas. Muitas vezes há hipermnésia seletiva: determinados fatos dolorosos ou desagradáveis são recordados com excessiva frequência, intensidade ou riqueza de detalhes. Alomnésias, uma alteração qualitativa da memória, também podem ser observadas. Nesse caso, algumas lembranças são deturpadas pelo indivíduo e tornam-se inadequadamente carregadas de tristeza, ruí­ na ou autorreprovação.16

Alterações da fala ou da linguagem são frequentes. A pessoa com depressão normalmente fala pouco (oligolalia ou laconismo) e, em casos com características catatônicas, apresenta mutismo. Além disso, fala em um volume baixo (hipofonia) e devagar (bradilalia), podendo haver um aumento da latência pergunta-resposta.9 Algumas vezes, ocorre diminuição ou perda da modulação afetiva da fala: hipoprosódia ou aprosódia, respectivamente.

Quanto ao pensamento, há alentecimento do curso (ou inibição do pensamento), o que corresponde à bradilalia.15 Pode ocorrer, como uma alteração da forma, perseveração: o sujeito, em seu discurso, sempre volta aos mesmos temas negativos ou desagradáveis, ou não consegue sair deles. Com relação ao conteúdo do pensamento, nos casos de depressão psicótica, podem ser encontradas ideias deliroides (ou delírios secundários), que decorrem diretamente da alteração do humor. Entre os temas dessas ideias deliroides incluem-se ruína (“estou na miséria, não tenho dinheiro nem para comprar comida”), culpa (“a segunda guerra mundial começou por minha causa”), negação (“os meus órgãos apodreceram, pararam de funcionar”) e hipocondria (“tenho certeza de que estou com câncer”).15

E, ainda em relação à cognição, o indivíduo deprimido apresenta um baixo desempenho intelectivo18 e uma diminuição da criatividade.9

 

Outras funções psíquicas

Os pacientes em depressão com frequência apresentam uma aparência descuidada. Muitas vezes deixam de tomar banho, escovar os dentes, pentear os cabelos, fazer a barba (homens) ou depilar as pernas (mulheres). É comum a preferência por roupas escuras. A atitude pode ser lamuriosa, com o paciente queixando-se o tempo todo de seu sofrimento, ou indiferente, quando ele se volta excessivamente para dentro de si e ignora o ambiente e as outras pessoas.6

Pode ocorrer uma desorientação alopsíquica, principalmente quanto ao tempo, como consequência de um estado de apatia e desinteresse. Além disso, a pessoa tende a ter uma vivência subjetiva da passagem do tempo alentecida: para ela, as horas custam muito a passar.15

Uma alteração fundamental na depressão é em relação à consciência da existência do eu, que representa a consciência de estar vivo, de existir plenamente, de estar fisicamente presente. Assim, por definição, a consciência da existência do eu está diretamente relacionada aos sentimentos vitais. Na depressão, como já visto, está presente a tristeza vital, e, consequentemente, há diminuição da consciência­ da existência do eu. Esta pode até estar abolida, nos casos em que há ideias deliroides de negação.14 Alguns pacientes com depressão apresentam vivências de despersonalização (uma alteração da consciência da identidade do eu), isto é, vivências de estranheza quanto a si próprios ou à sua própria identidade.13

O pragmatismo, a capacidade de rea­lizar o que se planeja, costuma estar prejudicado. O pessimismo é outra característica marcante da depressão. Por fim, a consciência de morbidade pode estar preservada, mas, em alguns casos, está diminuída ou mesmo abolida. Alguns pacientes acreditam que o seu sofrimento se deve a uma doença física, e não mental, enquanto outros, apresentando ideias deliroides de culpa, julgam que não estão doentes, estão, na verdade, sendo castigados por Deus, em função de seus terríveis pecados.6

 

Diagnóstico de transtorno depressivo maior

Características básicas do transtorno depressivo maior

O TDM caracteriza-se pela ocorrência de uma síndrome depressiva, a qual se apresenta em episódio único ou de forma recorrente. Essa síndrome depressiva é primária, ou seja, embora se conheçam diversos fatores etiológicos relacionados a ela (como os genéticos, os bioquímicos, etc.), sua verdadeira causa é desconhecida. Em outras palavras, não se consegue identificar uma doença sistêmica ou cerebral ou uma substância exógena que, por si só, possa explicar o surgimento do quadro depressivo. Assim, o diagnóstico do TDM é eminentemente clínico, não podendo ser formulado ou confirmado por meio de exames laboratoriais. Estes só são úteis para se descartar a possibilidade de uma depressão secundária (ou orgânica).

Além disso, nunca houve um episódio maníaco, hipomaníaco ou misto na história clínica do paciente, pois, caso contrário, o diagnóstico adequado seria o de transtorno bipolar. Dessa forma, o TDM pode ser classificado como depressão unipolar.

 

Critérios para o diagnóstico de transtorno depressivo maior

A Tabela 3.2 apresenta os critérios do DSM-IV-TR2 para o diagnóstico de um episódio depressivo maior. Como pode ser observado, o quadro clínico tem de durar pelo menos duas semanas e devem estar presentes no mínimo cinco de uma lista de nove sintomas. Além disso, um desses cinco sintomas tem de ser necessariamente humor deprimido ou perda do interesse ou do prazer.

É importante ressaltar que tanto o DSM-IV-TR2 como a CID-103 permitem que um episódio depressivo seja diagnosticado na ausência de humor deprimido (que corresponde à tristeza psíquica na classificação de Max Scheler). Isso pode acontecer desde que haja perda do interesse ou do prazer, no DSM-IV-TR,2 ou, no caso da CID-10,3 perda do interesse ou do prazer e energia diminuída ou fadiga excessiva (sintomas esses mais relacionados à tristeza vital).

O DSM-IV-TR2 apresenta, ainda, critérios diagnósticos relacionados à presença de sofrimento subjetivo ou prejuízo sócio-ocupacional significativo e à exclusão de sintomas maníacos concomitantes e, ainda, de uso de substâncias, presença de condições médicas gerais ou luto que possam explicar melhor a ocorrência dos sintomas depressivos.

Para a formulação de um diagnóstico do TDM, de acordo com o DSM-IV-TR,2 é necessária a ocorrência de um ou mais episódios depressivos maiores, configurando, respectivamente, o “transtorno depressivo maior, episódio único” ou o “transtorno depressivo maior, recorrente”. O DSM-IV-TR2 estabelece também critérios para diferenciar o TDM do transtorno bipolar e dos transtornos psicóticos, como será visto na próxima seção.

 

Diagnóstico diferencial

Em primeiro lugar, o TDM precisa ser distinguido da tristeza normal. A intensidade não é um critério útil, já que um quadro depressivo pode apresentar um nível leve de gravidade e uma tristeza normal pode ser extremamente intensa. Ter ou não uma relação temporal com um evento de estresse também não serve para essa diferenciação, pois, embora uma tristeza normal em geral ocorra como uma reação a uma perda ou frustração, frequentemente a depressão é desencadeada por algum acontecimento dessa natureza. Além disso, em contraste com a depressão, a tristeza normal não melhora com o uso de antidepressivos e não cursa com os chamados sintomas somáticos ou vegetativos (tais como alterações do apetite e do peso, do sono, da libido, da energia vital e da psicomotricidade, e, ainda, piora matinal). Além disso, na depressão, em oposição ao que acontece na tristeza normal, há uma perda da reatividade do humor e, assim, mesmo que eventos positivos ocorram, o indivíduo em nada melhora.19,20

 

 

Para ser formulado o diagnóstico de um TDM, precisam ser descartadas, por meio da anamnese clínica ou de exames complementares, as diversas causas de depressão secundária ou orgânica. Entre elas, incluem-se o uso de anti-hipertensivos (bloqueadores de cálcio, reserpina, propranolol, clonidina), propiltiouracil, metoclopramida, contraceptivos hormonais, álcool, benzodiazepínicos e cinarizina; quadros de abstinência a estimulantes (cocaína, anfetamina, metilfenidato); infecções, como sífilis cerebral, Aids e mononucleoses (influenza, etc.); distúrbios endócrinos ou metabólicos, como hipotireoidismo, hipertireoidismo, doença de Addison, hiperparatireoidismo, hipoparatireoidismo, hiperprolactinemia, hipercalcemia, deficiência da vitamina B1 ou B12, pelagra e doença de Cushing; além de acidente vascular cerebral (à esquerda), mal de Parkinson, carcinoma de pâncreas, esclerose múltipla, epilepsia e lúpus eritematoso sistêmico. Diferentemente do TDM, a depressão secundária costuma apresentar um curso contínuo, não cíclico, e, em geral, não está associada a uma história familiar de depressão.19,20

O que distingue o TDM do transtorno bipolar, segundo o DSM-IV-TR,2 é a ocorrência, neste último, de um episódio maníaco, hipomaníaco ou misto. Um episódio depressivo maior está presente em ambos os transtornos mentais, obrigatoriamente no primeiro e muito frequentemente no segundo. Todavia, o diagnóstico de um mesmo paciente pode mudar durante o curso de sua doença, o que, por sinal, não é nada raro. Por exemplo, pode ter havido um total de cinco episódios afetivos, todos eles de depressão; até esse momento, o diagnóstico correto, de acordo com os critérios do DSM-IV-TR,2 é o de TDM. No entanto, se mais tarde o paciente apresenta um sexto episódio afetivo, e este é de mania, hipomania ou misto, transtorno bipolar passa a ser o diagnóstico mais adequado.

Um diagnóstico diferencial importante, e muitas vezes difícil de ser feito, é entre o TDM e os transtornos psicóticos. Na depressão, pode haver sintomas psicóticos, como delírios e alucinações. Mais comumente, esses sintomas psicóticos, se presentes, são congruentes com o humor, isto é, apresentam uma temática típica de depressão (ruína, culpa, negação, hipocondria). No caso de serem delírios, são ideias deliroides ou delírios secundários, que decorrem da alteração do humor.6 Todavia, em consonância com a concepção atual de que não existem sintomas específicos da esquizofrenia, o DSM-IV-TR2 admite a ocorrência, nos transtornos do humor, de sintomas psicóticos incongruentes com o humor. Assim, ideias delirantes de perseguição não relacionadas à temática depressiva (delírios primários, portanto) e, inclusive, sintomas de primeira ordem de Kurt Schneider (como o roubo ou a imposição do pensamento),11 antes considerados exclusivos da esquizofrenia, podem estar presentes no TDM.

Se não é o tipo de sintomatologia psicótica, então o que diferencia o TDM de um transtorno psicótico, quando um mesmo paciente apresenta tanto uma síndrome depressiva como delírios ou alucinações? Se a duração dos sintomas depressivos é breve em comparação ao tempo da doença, os diagnósticos de esquizofrenia, transtorno esquizofreniforme e transtorno delirante são os mais adequados, em detrimento do diagnóstico de TDM. No entanto, o DSM-IV-TR2 lamentavelmente não define de forma precisa o que representa esse “breve”.

É especialmente mais complicado o diagnóstico diferencial com o transtorno esquizoafetivo, visto que este tem limites muito pouco nítidos, não apenas com os transtornos do humor, mas também com a esquizofrenia.21 De acordo com o DSM-IV-TR,para ser formulado o diagnóstico de transtorno esquizoafetivo (e não o de TDM), os sintomas depressivos estiveram presentes por “uma porção substancial” da duração total da doença e houve um período em que a síndrome depressiva e sintomas de esquizofrenia foram concomitantes, mas, por pelo menos duas semanas, com os sintomas psicóticos ainda presentes, os sintomas depressivos deixaram de ser proeminentes.

O TDM precisa também ser distinguido dos transtornos de ansiedade. Isso pode ser particularmente problemático, já que a depressão pode cursar com ansiedade e os transtornos de ansiedade podem ser acompanhados de sintomas depressivos na chamada síndrome de desmoralização (o paciente sente-se triste e isola-se em função das limitações em suas atividades sociais ou ocupacionais impostas pelo transtorno de ansiedade). Além disso, a comorbidade entre depressão e um transtorno de ansiedade é frequente, e ambas as condições respondem ao uso de antidepressivos. Contudo, alguns elementos clínicos podem ajudar nessa diferenciação. Embora a insônia inicial possa ocorrer tanto nos transtornos de ansiedade como no TDM, a insônia terminal é particularmente sugestiva de depressão. Nos transtornos de ansiedade, a reatividade do humor é maior. Por fim, o curso da doença, mais cíclico na depressão, e a história familiar também podem ajudar na formulação mais correta do diagnóstico.19,20

Outro diagnóstico diferencial importante é em relação a demência. Nos quadros demenciais frequentemente há sintomas depressivos, e a depressão costuma cursar com alterações cognitivas (quando essas alterações são mais intensas, em especial em idosos, fica caracterizada a chamada pseudodemência depressiva). Outro complicador na distinção entre as duas­ síndromes é o fato de que o início do processo demencial da doença de Alzheimer muitas vezes é precedido por um episódio depressivo em idade avançada, o primeiro na vida do indivíduo. Todavia, na depressão, os prejuízos cognitivos tendem a desaparecer ou, pelo menos, melhorar quando o estado de eutimia é restaurado, o que em geral não acontece na demência (embora haja demências reversíveis, como aquelas decorrentes de distúrbios metabólicos ou endócrinos). Além disso, na demência, faltam os sintomas somáticos da depressão, como as alterações do sono, do apetite, da libido, de psicomotricidade e da energia vital.19,20

 

Controvérsias sobre o conceito de depressão maior

O diagnóstico psiquiátrico nas classificações atuais baseia-se na descrição da sintomatologia e não em conhecimentos sobre a etiopatogenia, e, em função disso, é considerado pouco válido. Em outras palavras, a grande maioria dos transtornos mentais que constam no DSM-IV-TR2 e na CID-103 muito provavelmente não correspondem a doenças reais.22,23 Assim, na psiquiatria, são comuns os questionamentos sobre os limites entre uma categoria nosológica e as demais, e sobre os limites entre uma categoria nosológica e a normalidade.

Nesse sentido, alguns autores24 consideram que a depressão recorrente e o transtorno bipolar, separados no DSM-IV-TR,2 representam, na verdade, uma única entidade clínica: a doença maníaco-depressiva, conforme descrita por Kraepelin25na virada do século XIX para o XX.

Outra questão controversa refere-se ao TDM “com características melancólicas”, uma subclassificação da depressão encontrada no DSM-IV-TR.São incluídos entre os sintomas de melancolia, comumente chamados também de somáticos ou vegetativos, os seguintes: anedonia (perda da capacidade de sentir prazer), diminuição da reatividade do humor, piora matinal, insônia terminal, inibição ou agitação psicomotora, anorexia ou perda de peso, culpa excessiva ou inadequada e “qualidade distinta de humor depressivo” (esta última, uma alteração claramente relacionada ao conceito de tristeza vital, uma tristeza vivenciada no corpo, diferente da tristeza psíquica).

Uma crítica que se faz aos critérios do DSM-IV-TR2 para o diagnóstico de TDM é que eles são excessivamente inclusivos e identificam amostras de pacientes muito heterogêneas. Diante disso, alguns autores26,27 defendem que a melancolia seja classificada como um transtorno do humor independente, pois ela tem uma psicopatologia distinta e, além disso, está relacionada a anormalidades endócrinas (como o aumento dos níveis plasmáticos do cortisol) e a uma resposta típica a terapêuticas biológicas (antidepressivos e eletroconvulsoterapia). Assim, essa nova categoria nosológica, a melancolia, nasceria com uma validade maior do que o atual­ TDM.

 

Referências

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2.American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais:DSM-IV-TR. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2002.

3.Organização Mundial de Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento daCID-10: critérios diagnósticos para pesquisa. São Paulo: Artes Médicas; 1993.

4.Benazzi F. Is overactivity the core feature of hypomania in bipolar II disorder? Psychopathology. 2007;40(1):54-60.

5.Cheniaux E. A mania ansiosa ou depressiva de Kraepelin: relato de um caso. Rev Bras Psiquiatr. 2011;33(2):214-5.

6.Cheniaux E. Manual de psicopatologia. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011.

7.Cheniaux, E. Psicopatologia descritiva: existe uma linguagem comum? Rev Bras Psiquiatr.2005;27(2):157-62.

8.Nobre de Melo AL. Psiquiatria. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1981.

9.Paim I. Curso de psicopatologia. 11. ed. São Paulo: Pedagógica e Universitária; 1998.

10. Sá Jr LSM. Fundamentos de psicopatologia: bases do exame psíquico. Rio de Janeiro: Atheneu; 1988.

11. Schneider K. Psicopatologia clínica. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou; 1978.

12. Alvim CF. Vocabulário de termos psicológicos e psiquiátricos. Belo Horizonte: Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais; 1971.

13. Scharfetter C. Introdução à psicopatologia geral. 2. ed. Lisboa: Climepsi; 1999.

14. Jaspers K. Psicopatologia geral. Rio de Janeiro: Atheneu; 1987.

15. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed; 2000.

16. Cabaleiro-Goas M. Temas psiquiatricos: algunas cuestiones psicopatologicas generales. Madrid: Paz Montalvo; 1966.

17. Alonso-Fernández F. Fundamentos de la psiquiatria actual. 3. ed. Madrid: Paz Montalvo; 1976.

18. Sims A. Sintomas da mente: introdução à psicopatologia descritiva. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2001.

19. Hales RE, Yudofsky SC, Gabbard GO. Tratado de psiquiatria clínica. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2012.

20. Sadock BJ, Sadock VA. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre: Artmed; 2007.

21. Cheniaux E, Landeira-Fernandez J, Lessa TL, Lessa JL, Dias A, Duncan T, et al. Does schizoaffective disorder really exist? A systematic review of the studies that compared schizoaffective disorder with schizophrenia or mood disorders. J Affect Disord. 2008;106(3):209-17.

22. Hyman SE. Neuroscience, genetics, and the future of psychiatric diagnosis. Psychopathology.2002;35(2-3):139-44.

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24. Goodwin FK, Jamison KR. Doença maníaco-depressiva: transtorno bipolar e depressão recorrente. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2010.

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