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Envenenamento por picadas de escorpião

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 09/02/2015

Comentários de assinantes: 3

Todos os anos, mais de 1 milhão de casos de escorpionismo, ou envenenamento por picadas de escorpião são relatados em todo o mundo. Embora a mortalidade resultante seja menor do que a do envenenamento de cobra, existe uma morbidade substancial e particularmente em crianças um risco de morte. Todos os escorpiões produzem veneno, que pode ser inoculado através do abdome pelo ferrão. O envenenamento por escorpiões é ocasionado pela picada e não por mordedura.

Quase todos os casos de picadas de escorpiões são associados à dor significativa no local da picada. A síndrome da excitação autonômica mista (neuroexcitatório) é dentre os acidentes com animais peçonhentos a única para picadas por escorpiões; a síndrome varia em tipo e gravidade de acordo com o tipo de escorpião. Além disso, uma síndrome de envenenamento citotóxica foi avaliada em áreas do Irã em que Hemiscorpius lepturus é endemico.

 

Epidemiologia

Embora milhões de picadas de escorpião ocorram anualmente, a maioria dos casos são simples, com dor localizada e envolvimento sistêmico mínimo. No entanto, envenenamento grave é um importante problema de saúde pública em certas partes do mundo, como na América Central e do Sul, Norte da África e em partes da Ásia. A maioria dos escorpiões que causam  problemas médicos graves pertencem à família Buthidae, que inclui escorpiões dos gêneros leiurus no Oriente Médio e Próximo, androctonus e buthus no Norte da África, tityus na América do Sul, centruroides na América Central, mesobuthus na Ásia (especialmente a Índia), e parabuthus na África do Sul. No México, provavelmente centenas de milhares de picadas por escorpiões Centruroides ocorrem anualmente. Número semelhante de casos ocorre em outras áreas onde picadas por escorpiões são endêmicas (por exemplo, em Tunisia e outras partes do norte da África e da Índia).

 

Fisiopatologia

Os escorpiões costumam esconder-se em lugares escuros e frescos, como sob pedaços de madeira, telhas e pedras, e picam apenas quando são molestados, tendendo preferencialmente a fugir quando confrontados com humanos, assim a maior parte das picadas é acidental. Os escorpiões têm um ferrão, também denominado de telson, em sua cauda que contém glândulas de veneno. O escorpião prende a cauda sobre seu corpo, o que permite que o ferrão penetre na pele e inocule veneno. Numerosas toxinas foram identificadas em venenos de escorpião, a maioria das quais são pequenas toxinas peptídicas que têm como alvo os canais iônicos encontrados em ambos os mamíferos e insetos. As toxinas de maior importância médica consistem de 61-76 polipeptídeos que se ligam a um sítio específico no canal de sódio regulado pela voltagem de mamífero. Uma vez que a toxina liga-se a um local, que inibe a inativação do canal,  resulta em despolarização prolongada e, consequentemente, em excitação neuronal. Outras toxinas em escorpião agem sobre os canais de potássio e de cálcio, mas estas toxinas parecem ser menos importantes no envenenamento humano.

A excitação neuronal via toxinas estimula os centros autonômicos, tanto simpático e parassimpático, o que resulta em excitação autonômica, além disso as neurotoxinas escorpiônicas causam liberação endógena maciça de epinefrina e norepinefrina, bem como de outros peptídeos vasoativos, tais como o neuropéptido Y e endotelina-1. Em comparação com efeitos simpáticos, os efeitos parassimpáticos são menos graves; quando eles ocorrem  são muitas vezes vistos logo após a picada. Em contraste, a combinação de excitação simpática e a liberação de catecolaminas no plasma são responsáveis pela maioria dos efeitos sistêmicos graves, incluindo lesão do miocárdio, edema pulmonar e choque cardiogênico.

Há um aumento inicial da pressão sanguínea e débito cardíaco, seguido de uma diminuição da função ventricular esquerda e hipotensão. Os mecanismos de disfunção cardíaca e edema pulmonar após o acidente escorpiônico são complexos, mas parecem resultar de uma combinação de miocardite induzida por catecolaminas e isquemia do miocárdio por vasoconstrição coronária e, possivelmente, um efeito direto da toxina no miocárdio.

Os efeitos diretos de toxinas de escorpião nos canais de sódio neuronais do sistema nervoso somático e craniano podem causar os sintomas neuromusculares clássicos de excitação vistos depois de picadas por escorpiões nas Américas, como os que ocorrem com as espécies Centruroides. Efeitos no sistema nervoso central, por sua vez, são incomuns e geralmente estão relacionadas aos efeitos de grave envenenamento porque as toxinas não podem atravessar a barreira hemato-encefálica.

 

Manifestações clínicas

Apesar da variedade de escorpiões encontrados em todo o mundo, o envenenamento sistêmico é caracterizado por síndromes de excitação neurotóxicas relativamente semelhantes, independentemente da espécie, mas algumas diferenças existem e devem ser discutidas. Centruroides e escorpiões parabuthus estão associados principalmente com toxicidade neuromuscular, enquanto que o envenenamento grave de androctonus, buthus e mesobuthus escorpiões estão  associados com a toxicidade cardiovascular que resulta da hiperestimulação dos centros autonômicos e  liberação de catecolaminas.

Ao exame físico pode-se observar apenas dor importante no local da picada. Crianças podem apresentar quadros de exacerbação autonômica semelhante aos descritos para picadas de Phoneutria. Esses casos podem ter evolução, decorrente da intoxicação adrenérgica generalizada, com insuficiência cardíaca de alto débito e edema agudo de pulmão. A maioria das picadas de escorpião causa apenas dor localizada, e apenas 10% dos casos de picadas evoluem com sintomas sistêmicos, mesmo quando envolvendo os escorpiões mais perigosos. Edema, eritema, parestesias, fasciculações musculares e dormência podem ocorrer no local da picada. É frequentemente difícil ver o local da picada ou identificar a inflamação no local. A maioria dos casos de envenenamento grave ocorre em crianças. Envenenamento sistêmico é caracterizado por anomalias neuromusculares decorrentes de efeitos sobre os nervos cranianos e somáticos, excitação do sistema nervoso autônomo tanto colinérgica como adrenérgica, edema pulmonar e efeitos cardíacos. As manifestações são causadas por excitação neuronal e liberação de neurotransmissores.

Os efeitos parassimpáticos da estimulação neuronal incluem efeitos colinérgicos que podem incluir salivação, sudorese profusa, lacrimejamento, miose, diarreia, vômito, bradicardia, hipotensão, aumento de secreções respiratórias e priapismo. Os efeitos adrenérgicos incluem taquicardia, hipertensão, midríase, hipertermia, hiperglicemia, e agitação. Enquanto a maioria dos efeitos parassimpáticos tende a ocorrer precocemente e com duração limitada, efeitos simpáticos persistem por causa da liberação de catecolaminas e são responsáveis pelos envenenamentos graves.

Uma série de anomalias da condução cardíaca ocorrem em cerca de um terço da metade dos pacientes com envenenamento sistêmico. Estes efeitos incluem taquicardia atrial, extrassístoles ventriculares, inversão da onda T, alterações do segmento ST-T, e, menos frequentemente, bloqueios de ramo. O estímulo causado pelo aumento dos efeitos vagais sobre o coração e estimulação simpática são as prováveis causas desses efeitos. A hipertensão arterial é comum e ocorre no início da resposta à estimulação simpática. Hipotensão é menos comum, e ocorre no envenenamento grave, e muitas vezes necessita de intervenção com vasopressores e reanimação com líquidos.

O desenvolvimento de hipotensão tem causas multifatoriais com a estimulação colinérgica causando vasodilatação. Também são mecanismos envolvidos a perda de líquidos e depressão do miocárdio. A disfunção cardíaca resultante de miocardite induzida por catecolaminas e isquemia do miocárdio complica o envenenamento grave por Androctonus, buthus, mesobuthus e tityus. Esta última complicação pode resultar em edema pulmonar cardiogênico e choque.

A estimulação do sistema nervoso periférico resulta em atividade neuromuscular descoordenada que se manifesta com acatisia, movimentos oculomotores anormais, distúrbios visuais e fasciculações musculares e espasmos da face e da língua e os braços e incordenação neuromuscular de membros inferiores, principalmente, e ocasionalmente com comprometimento respiratório.

Alterações da excitação neuromuscular são mais comumente reportadas com envenenamento por escorpiões centuroides, mas também pode ocorrer após picadas de espécies parabuthus e tityus.

Vômitos e dor abdominal são comuns após picadas de escorpião, e aumento da motilidade gástrica e diarreia são também relatados. Muitos desses efeitos são devidos à estimulação colinérgica. Pancreatite aguda tem sido relatada com picadas de alguns escorpiões, incluindo leiurus quinquestriatus e tityus.

Uma síndrome clínica, que é diferente do típico envenenamento sistêmico ocorre com picadas do H. lepturus escorpião do Iran. As picadas não causam dor imediata. A maioria dos casos é caracterizada  por eritema e lesões purpúricas e bolhosas que podem resolver-se, mas em cerca de 20% dos casos é relatada necrose localizada que desenvolve em períodos de horas ou dias. Os sintomas sistêmicos incluem náuseas, vômitos, febre, efeitos autonómicos, hemólise com hemoglobinúria e lesão renal aguda, que muitas vezes exigem diálise. A síndrome parece ser semelhante à associada a picadas por aranhas do género Loxosceles.

 

As picadas por centruroides sculpuratus ou exilicauda têm achados que podem ser divididos em quatro estágios:

 

Estágio 1: Dor e parestesias no local da picada, usualmente sem inflamação local, às vezes não se percebe o local exato da picada e nem se nota que um escorpião está envolvido. Ao se estimular o local da picada, uma exacerbação importante da dor pode ocorrer, o que sugere a etiologia da lesão ser secundária à picada por escorpiões.

 

Estágio 2: O paciente também apresenta dor local e parestesias como no estágio 1, porém os sintomas dolorosos se irradiam para extremidades distais de membros e até mesmo para membros colaterais, ou se tornam generalizadas. Em crianças eventualmente temos choro inconsolável e agitação.

 

Estágio 3: Ocorre o envolvimento de pares cranianos ou disfunção neuromuscular somática. Manifestações incluem alterações visuais ou de movimentos oculomotores, hipersalivação, fasciculações de língua entre outros achados, eventualmente podem ocorrer dificuldades respiratórias se alterações bulbares associadas ou excesso de secreções.

 

Estágio 4: Ocorrem ambos envolvimento de pares cranianos e disfunção neuromuscular somática. Pode-se encontrar hiperatividade neuromuscular e em casos mais severos estridor e sibilância. Insuficiência respiratória, edema pulmonar, rabdomiolise, pancreatite, pleocitose liquórica e eventualmente coagulação intravascular disseminada são descritos nestes casos.

 

As picas do escorpião centruroides sculpturatus tipicamente têm início de sintomas imediatamente e atingem seu pico em 5 horas, em crianças pode ocorrer evolução para estágio IV em 30 minutos. Em geral, os casos de envenenamento por escorpião, embora mais comuns em adultos têm pior evolução em crianças.

 

Exames complementares

Não existem exames diagnósticos específicos recomendados para picadas de escorpião; na maioria dos casos, nenhuma investigação é necessária, particularmente em muitas regiões do mundo onde é difícil de realizar testes de diagnóstico. Os exames laboratoriais devem se concentrar em possíveis complicações de picada de escorpião; por exemplo, os níveis de creatinina devem ser medidos para avaliar se injúria renal ocorreu. Os níveis de enzimas pancreáticas devem ser medidos para determinar se a picada induziu pancreatite. Eletrocardiograma deve ser obtido, quando possível, uma vez que alterações eletrocardiográficas são bastante comuns. Outros exames que podem ser pedidos que incluam a ecocardiografia, avaliação de marcadores séricos de lesão cardíaca, e outras investigações cardíacas conforme a gravidade da doença. Em casos de envenenamento severo alguns exames são recomendados e estão especificados na tabela 1.

 

Exames recomendados em picada por escorpião evoluindo com envenenamento grave:

 -Eletrólitos (Sódio, Potássio e Cálcio);

-Ureia e creatinina;

-Transaminases (AST e ALT);

-CPK;

-Lipase e amílase séricas;

-Eletrocardiograma;

-Urina 1;

-Coagulograma;

-Hemograma completo.

 

Tratamento

Os pacientes apresentam dor local importante e o uso de anestésicos locais sem vasoconstritores. Analgésicos comuns como paracetamol e ibuprofeno podem ser utilizados e vacina antitetânica deve ser realizada, caso  vacinação não esteja em dia, cuidados locais como a limpeza da ferida com água e sabão também são necessários.

Numerosos tratamentos específicos têm sido recomendados para o escorpionismo, incluindo o soro antiescorpiônico, prasozin, agentes inotrópicos, atropina, vasodilatadores e benzodiazepinicos. No entanto, as evidências para a eficácia da maioria dos tratamentos é variável e tipos de tratamento aparecem de acordo com região. Em envenenamento grave, os pacientes podem evoluir com edema agudo pulmonar e choque cardiogênico cujo tratamento inclui o uso de inotrópicos e vasodilatadores específicos. São considerados medidas de suporte relevantes para estes pacientes:

-Sucção frequente de secreções orais;

-Entubação orotraqueal em pacientes com insuficiência respiratória;

-Monitorização cardíaca e respiratória;

-Uso de opioides para controle da dor, preferencialmente com fentanyl, pois ao contrário da morfina não leva a liberação histamínica;

-Benzodiazepínicos para sedação e controle da espasticidade muscular, no caso de soro antiescorpiônico não ter  sido utilizado no caso da última indicação, pois os benzodiazepínicos podem causar supersedação quando em associação com o soro.

 

O uso do soro antiescorpiônico é controverso, uma vez que os resultados de ensaios clínicos foram duvidosos. Um estudo da Tunísia não mostrou nenhum benefício a partir da administração rotineira do soro antiescorpiônico. No entanto, muitos casos em estudos não são graves ou não tiveram envenenamento sistêmico, no qual o soro poderia ter efeitos benéficos maiores. Em contraste, um pequeno ensaio clínico norte-americano sobre picadas de escorpião centruroidesmostrou que os efeitos neurotóxicos do envenenamento são resolvido dentro de quatrio horas em todos os oito pacientes que receberam soro antiescorpiônico, em comparação com apenas 1 dos 7 pacientes que receberam placebo. Em um estudo randomizado, aberto na Índia envolvendo 70 pacientes que haviam sido picadas por escorpião vermelho (Mesobuthus tamulus), os pacientes que receberam soro e prazosin tiveram uma recuperação mais rápida do que aqueles que receberam prazosin isoladamente. Um estudo recente de escorpionismo em 50 crianças também comparou o uso de soro antiofídico e prazosin com prazosin isoladamente e mostrou que as crianças que receberam o soro mais prazosin tinham uma rápida recuperação (média da diferença entre os grupos de 9 horas), eram menos propensas a sofrer progressão para síndrome de envenenamento grave, e precisaram de menos prazosin do que as crianças que não receberam o soro.

Embora a evidência em favor do soro seja heterogênea, dada a pequena dimensão dos ensaios com resultados positivos e os diferentes tipos de escorpião, a literatura sugere que a administração do soro antiescorpiônico depois de uma picada é de algum benefício em pacientes com envenenamento grave como no estágio III e IV do envenenamento por centruroides.

Uma análise de custo-efetividade do uso do soro para escorpionismo nos Estados Unidos mostrou que em seu preço atual, o soro antiescorpiônico não é rentável e seu uso deve ser limitado a casos de envenamento grave. No entanto, uma vez que o envenenamento grave se desenvolveu como regra geral, nos casos considerados moderados são necessárias 2 a 3 ampolas por via endovenosa e, em casos graves, 4 a 6 ampolas endovenosas. Estas ampolas são diluídas em geral em 50 a 100 ml de salina fisiológica. Inicialmente se faz o uso de uma única ampola do soro, que é repetido em 30 minutos caso não ocorra resposta com resolução dos sintomas, reações anafiláticas ao soro antiescorpiônico podem ocorrer e o uso de anti-histamínicos e outras medidas para anafilaxia são recomendadas nestes casos.

 

Referencias

1-Isbister GK, Bawaskar HS. Scorpion envenomation. N Engl J Med. 2014 Jul 31;371(5):457-63.

Comentários

Por: Atendimento MedicinaNET em 30/07/2015 às 10:19:24

"Prezado Felipe, agradecemos seu contato. Em casos leves, a observação por 4 horas é suficiente e segura com validação de literatura para este tempo. Em casos graves, não se aplica muita observação, pois estes pacientes têm indicação de intervenção e permanecem internados até a resolução das suas manifestações. Atenciosamente, Os Editores"

Por: felipe leão em 17/07/2015 às 23:16:04

"Professor,qual o tempo minimo de observação de acordo a intensidade do quadro?"

Por: felix moesch em 31/01/2015 às 14:04:25

"muito bom.....parabéns professor rodrigo Antônio.....acidentes escorpiônicos vemos muito aqui no interior...."

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